Herança

Marta Morais da Costa

Foto por Sohel Patel em Pexels.com

Herdara da mãe uma panela de ferro, três copos de vidro cristalino que, na infância, chamavam orgulhosamente de taças de vinho e só usavam nos natais. E uma lata de 20 litros que na origem havia armazenado margarina no armazém do seu Lalau.

A mãe ganhara a lata porque seu Lalau sabia que na casa dela não tinha moringa nem outra vasilha para armazenar a água do poço. Depois de uma boa esfregada com um pedaço de pano, cinzas e sabão, a lata quase se podia dizer nova, não fosse a estampa colorida de uma moça branca e loira, de longos cabelos lisos, sorriso de dentifrício a apresentar a margarina Regina, a rainha do forno e fogão.

Só assim para margarina entrar em casa: a mais constante das gorduras era a banha de porco, mais barata, e que seu Ari, do açougue, nem olhava para a balança ao embrulhar o quilo da mercadoria, colocando sempre muitos gramas a mais, por causa dos olhos verdes e tristes de minha mana mais velha. Margarina Regina era apenas uma rima, jamais alimentação.

O que agora chamava de casa desmerecia ainda mais o casebre da infância. Nele havia experimentado a necessidade de roupa, comida, conforto e afeto. Nele, vira o pai morrer  numa poça de vômito da última bebedeira. Nele, repartira a cama com três irmãos, dos quais era a única sobrevivente. Nele, aprendera que solidariedade dura uma única doação e muitas cobranças de reconhecimento. Que falta é palavra mais frequente do que bom dia. Que a barriga tem mais buracos por onde a comida se esvai do que paredes para impedir a fome de entrar. Que o sono é sem sonhos, que a vida é de pouco sono, que a morte tem sono pesado sem despertar.

Por isso, uma panela, copos e uma lata são quase os tesouros do rei da história que ouvira o palhaço contar na praça da cidade. Era o tempo do circo ficar na cidade e do desfile pelas ruas com os artistas convidando o público para os espetáculos. A criançada tinha direito a histórias, algumas mágicas, palhaços a trocar tabefes de mentira e a caírem de barriga postiça no chão a berrarem feito o porco quando vai para o sacrifício. Na época dois irmãos e eu íamos para a praça aproveitar o que era de graça. Sabíamos que nas noites seguintes, somente veríamos as luzes do pavilhão e ouviríamos a música da bandinha. Eram os efeitos luminosos e musicais da imaginação que corria solta em nossas cabeças, sentados os três na porta do casebre. Quando uns poucos amigos, mais sortudos, iam aos espetáculos, no dia seguinte andávamos a persegui-los para que contassem o que viram, ouviram e sentiram. Com esses retalhos de conversa e exageros montávamos nosso circo pessoal em tendas imaginárias, que carregávamos dia e noite por muito tempo.

Nem circo, nem margarina, muito menos vinho no Natal. Os copos passavam o ano inteiro protegidos no fundo da única prateleira da cozinha e de lá só saíam quando o pai ganhava de presente uma caixa com bombons melequentos, biscoitos amolecidos e uma garrafa de vinho azedo como a miséria. Meus irmãos e eu não podíamos tomar. A gente ganhava na canequinha de latão um pouco de limonada, mais azeda do que o vinho, porque açúcar era luxo para se aproveitar de vez em quando.

A panela de ferro hoje faz um arroz saboroso, mas no tempo da mãe recebia uma mistura de legumes, farinha e ovos das galinhas do terreiro. Um mexido que rendia porções miúdas, cheirando a delícias e engolidas com rapidez. Na medida em que a família diminuía, cresciam as porções. Só ficava um pouco de remorso porque a alegria da quantidade de comida era resultado de uma tragédia.

A lata, guardo comigo em lugar de honra na cozinha. Eu a decorei com restos da infância: fitas, panos, uma lasca de madeira da porta do casebre, contas de vidro, um pedaço de espelho, recortes de embalagem, tocos de vela, o único retrato de minha família reunida quando fomos à quermesse de Páscoa, umas tiras de papel em que, nos primeiros rabiscos, registrei lágrimas e sorrisos e a flor, agora seca, que ganhei do primeiro namorado.

A lata de margarina Regina reina sobre minha infância e me ensina, diariamente, a reconhecer as fomes que continuam a debilitar e as fomes que, saciadas, deixam cicatrizes na carne e na alma.

Talvez ela venha a ser a herança a deixar para minha filha.