Ler é perigoso! A literatura nas encruzilhadas da vida. (2)

Marta Morais da Costa

Continuo pelo avesso: não estarão certos os leitores que trocam os livros por outras atividades? Não estarão certos os entrevistados do mais recente “Retratos da Leitura no Brasil”(publicado em 2020 , cuja  pesquisa foi realizada de novembro 2019 a janeiro de 2020)  a não ler um único livro, mesmo que incompleto, nos últimos três meses? Quatro milhões e seiscentos mil brasileiros  deixaram de ler, e sinalizam aos demais que é preferível crer no que dizem do que encontrar tempo e paciência para ler um livro, a sós? A pesquisa dá conta que houve queda nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste.  Apenas as regiões Norte e Sul tiveram acentuado acréscimo: 10% e 8% respectivamente.

Stefan Zweig escreveu que os livros são um universo “diversificado e perigoso”. No entanto, muitos projetos de leitura no Brasil ainda propõem visão única, padrão antigo, fuga a polêmicas, engessamentos. Lê-se para não pensar. Lê-se para não se pensar. Pode haver um “perigo na esquina” do texto que constrange e do texto que liberta, do texto que se consome e do texto que nos consome.

Julgo que ao confrontarmos as duas posições antagônicas das encruzilhadas da leitura (o padrão único e o diversificado) em momentos diferentes de nosso percurso na vida, chegamos à conclusão de que o alicerce da valorização da leitura nasce de nossa experiência, de nossas vivências com os textos. E a partir dessa vivência construímos nossa crença e nossa ética. Afirmamos, e com razão, que ler se aprende lendo. Melhor ainda, ler se aprende correndo riscos, permitindo que a diversidade de textos (e também de suportes) mantenha a aprendizagem em contínua revisão.

Nem sempre a leitura e a literatura entram em nossa vida como um ato de razão, uma escolha racional. Por vezes, ler constitui um momento mágico. O nascer do leitor, por exemplo, origina narrativas que o registram de forma sempre emocionante. Uma das mais tocantes, a meu ver, é a de Alberto Manguel contada em “A história da leitura” (1997, p.18)

“Então, um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora esquecido) vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter durado muito: talvez o carro tenha parado por um instante, talvez tenha apenas diminuído a marcha, o suficiente para que eu lesse, grandes, gigantescas, certas formas semelhantes às de meu livro, mas formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de repente eu sabia o que eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida, sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém realizara a mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos em um diálogo silenciosamente respeitoso. Como conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era todo-poderoso. Eu podia ler.”

Esse momento inaugural e iluminado do processo de alfabetização é um caminho sem volta, melhor ainda, um caminho que dará em muitas encruzilhadas. Não há diplomas de leitor, eles se fazem ao andar. Não existe encruzilhada quando o caminho é único, não é mesmo?

Passei a adolescência na companhia dos livros que comprei (com verba de aniversários e natais) de baciada na papelaria próxima de casa (traduzindo: a Biblioteca das moças, com M. Delly capitaneando os livros preferidos). Li também os que fui encontrando aleatoriamente em estantes da Biblioteca Pública, em especial aventuras da coleção Terramarear. Naquele tempo as bibliotecárias se limitavam a carimbar a carteirinha e a conferir se devolvíamos os livros inteiros, sem rabiscos, manchas de café etc.  Li o que encontrei em caixotes de revistas e livros de bolso de um tio aficionado:  a revista X9, volumes de Seleções do Reader’s Digest e os volumes do faroeste fake, tendo como cenário o oeste dos EUA . Mais tarde descobri que o faroeste era caboclo, os livros foram escritos por  José Carlos Riyoki Inoue, autor do interior de S. Paulo. É claro que não li os 1 086 que escreveu, mas passei por dezenas deles e por muitos de seus 39 pseudônimos! Vem daí, acredito, uma elasticidade leitora que me levou nas muitas décadas da vida a não ter preconceitos arraigados contra quaisquer gêneros literários! Eu tinha a estrada pavimentada para ser uma devoradora de inutilidades bibliográficas! Mas encontrei uma história semelhante ao ler um romance menor de Umberto Eco, “A misteriosa chama da Rainha Loana”(2004),  que me devolveu a serenidade de encontrar citados muitos dos livros, revistas e filmes que fazem parte desse terreno subterrâneo e inconfessável de leituras que afrontam os cânones.

Foto por Olenka Sergienko em Pexels.com

Assim como não fui tolhida ao garimpar os caixotes sangrentos, o mesmo não se pode dizer de experiências de leitura censuradas, seja no plano individual, seja no social. Bibliotecas escolares organizadas segundo critérios discutíveis (eles sempre o são) estabelecem rigidamente por prateleira a série a que correspondem os livros e professores e bibliotecários ou atendentes da biblioteca, seriamente comprometidos, mas censores convictos, impedem as crianças de terem acesso a prateleiras “proibidas”, “perigosas”.

Expandindo essa censura escolar para momentos históricos e ideológicos mais complexos, a destruição de livros, nascida da necessidade que o poder impõe de corrigir rotas, de apagar encruzilhadas tem acompanhado a história da humanidade desde tempos muito remotos. E atende sempre à intenção de destruir a encruzilhada e substituí-la pelo caminho único. Luciano Canfora, em “Livro e liberdade” rastreia o desaparecimento violento de obras e a censura a autores na Antiguidade Clássica. Fernando Báez, em “A história universal da destruição de livros” mapeia eventos e estigmas que levaram ao desaparecimento cruel e intencional de boa parte dos escritos ao longo da história da humanidade. O SESC Copacabana realizou uma exposição imersiva em que, depois de assistir à reconstituição da biblioteca real de Alberto Manguel (cujo livro dá título à exposição: “Biblioteca à noite”), os visitantes iniciavam, no cenário de uma floresta, uma viagem por dez bibliotecas físicas ou lendárias, visíveis com óculos de realidade virtual e uma delas de impacto brutal: o incêndio da biblioteca de Sarajevo, durante a Guerra da Bósnia Herzegovina. Um violinista tocando, sentado no degrau da uma escada que conduz ao saguão da biblioteca, enquanto o fogo inicia e se propaga atrás das portas fechadas da entrada ao acervo da biblioteca.

Báez no final de seu livro relata o episódio trágico da destruição da Biblioteca de Bagdá pelas tropas dos Estados Unidos em evento recente. E anuncia uma possibilidade arrepiante:

“Convém assinalar que milhões e milhões de livros foram digitalizados e convertidos em dados eletrônicos recebidos por uma espécie de biblioteca de caráter virtual. (…) Essas bibliotecas de traços futuristas, no entanto, não estão a salvo. Dezenas de hackers, ou piratas informáticos, tentam atacá-las constantemente para destruir seus arquivos. Não está longe o dia em que no lugar de fogo os biblioclastas utilizarão programas informáticos destrutivos, limpos e devastadores.(…) A destruição dos livros está longe de acabar.”

Enfim, nesta tarefa de colocar em perigo de morte as bibliotecas com seus livros, fica muito distante a compreensão da atividade leitora, segundo C.S. Lewis, em Um experimento na crítica literária : “O verdadeiro leitor, este lê todas as obras com seriedade, no sentido que as lê com total entusiasmo, fazendo-se tão receptivo quanto é capaz.”. A negação dos livros é a escolha exata das eternas Veredas Mortas, dos pactos com a negação, com a ausência de recepção, com  o fechamento e bloqueio de todas as estradas. O negacionismo da essência do entusiasmo, que etimologicamente assinala a ligação da ação de ler com o estado de arrebatamento, de fervor interior, de inspiração divina.

Não pretendo abrir a intimidade de minha leitura para todas as encruzilhadas que vivi, não se preocupem. Há abismos que nem a nós mesmos confessamos… Mas um dos mais recentes, eu posso confessar.

Referi-me no início desta fala sobre a atração dos abismos, o amor ao perigo. Na leitura, é claro. Vasculhando livrarias há alguns poucos anos encontrei um livro nessa linha perigosa. É de Mikita Brottman, uma psicanalista e professora estadounidense, do Maryland Institute College of Art, de Baltimore, intitulado “The solitary vice against reading” (O vício solitário contra a leitura). É um livro instigante porque traz relatos, experiências e reflexões a respeito de leituras que não são as mais respeitadas, que não estão exclusivamente em livros e integram a cultura de massa (revistas e cinema, por exemplo). Enquanto professora universitária e escritora, ela lê os repertórios da cultura contemporânea pelo avesso ou pelo anverso, como quer João Cabral de Melo Neto, em poema dedicado à poeta Marianne Moore (1897-1972):

Ela aprendeu que o lado claro

das coisas é o anverso

e por isso as disseca:

para ler textos mais corretos.

E que gêneros ela leu e se encontrou neles? Livros de crime e horror, biografias, livros com confissões de celebridades (que denomina “vanity fair” e a cultura do voyeurismo), policiais- sem dúvida-  e revistas leigas sobre psicanálise. Mikita Brottmann enlaça essas leituras com uma bem-humorada crítica à leitura de obras “bem comportadas” e de clássicos da literatura. Sua argumentação gira em torno da rejeição de leitores adultos a leituras sisudas, tradicionais, que apelam mais à razão do que à sensibilidade, mais à abstração do que ao real cotidiano. Sua visão de leitura aponta para outra sinalização: ‘Não abandone o caminho do prazer da leitura! Leia sem preconceitos. Desconfie de seu professor.”. Sim, isso mesmo! Uma postura à moda da “Sociedade dos poetas mortos” com sua atitude desafiante e a proposta de formas alternativas de ler a produção cultural.

Na conclusão do livro, ela afirma: (vou tentar traduzir aproximadamente o texto – fiquem tranquilos não o lerei em inglês, pois tenho respeito aos ouvidos alheios.) “A literatura me deu uma dose enorme de prazer, e há certos livros aos quais voltei de novo e de novo. Em retrospecto, porém, eu reconheço que os livros que foram os mais significativos para mim ao longo da vida foram aqueles que, na primeira leitura, eu considerei os mais perturbadores ou os mais difíceis de ler.” Interessante esta conclusão porque, ao mesmo tempo em que insiste na noção de prazer e de liberdade de escolha, retorna à ideia de que significativo é o texto perturbador. Podendo estar fora do circuito das obras constantes de listas das obras mais valiosas e merecedoras de leitura. Posiciona e valoriza o leitor como aquele que foi perturbado e que encontrou a sua frente um texto desafiador.

Segue mais profundamente nessa valorização do leitor, citando Mortimer Adler, com o qual concorda que “a prática de educadores, mesmo que bem intencionados, que tentam deixar a leitura menos  penosa do que ela é, não só a tornam menos estimulante, mas também enfraquecem a vontade e as mentes daqueles contra quem esta fraude é perpetrada.”

Esta é uma encruzilhada profissional tão séria e desafiadora, semelhante às Veredas Mortas de Riobaldo, em “Grande sertão: veredas”. A função do educador em seu desempenho profissional na formação de leitores, em especial de leitores da literatura, tem a ver com três aspectos, no meu entendimento:

1 a definição dos objetivos e valores humanos da leitura da literatura (permanentes ou mutáveis);

2 a definição dos critérios de seleção de textos (que denomino, “As escolhas de Sofia”);

3 a definição de metodologia equivalente ao objeto em estudo (cujo apelo se pode traduzir por um “Professor, poetize-se!”).

Este momento abre para outros caminhos: os atalhos, veredas e becos sem saída do trabalho voltado à formação de leitores na escola. E pede um novo capítulo. que poderá vir a seu tempo.

fico por aqui, quem sabe na chegada a uma nova encruzilhada. Agradeço sua companhia, sua paciência e atenção. Agradeço em especial à Pastoral; também à Patrícia e à Maria Beatriz pelo impecável suporte tecnológico.

E convido João Cabral de Melo Neto a vir em minha companhia por mais um tantinho do caminho. Maurício Fernandes, a quem agradeço demais, em sua voz e interpretação dirá um pouco do que esta velha leitora conseguiu aprender nas encruzilhadas de sua vida:

“Rio lento da várzea,

Vou agora ainda mais lento,

Que agora minhas águas

De tanta lama me pesam.

Vou agora tão lento,

Porque é pesado o que carrego:

Vou carregado de ilhas

Recolhidas enquanto desço;

De ilhas de terra preta,

imagem do homem aqui de perto

E do homem que encontrei

no meu comprido trajeto (…)”

(João Cabral de Melo Neto, O rio.)

Foto por moein moradi em Pexels.com

A leitura: multicolorida e em mosaico (fragmento)

Foto por rikka ameboshi em Pexels.com

Marta Morais da Costa

Para Paul Ricoeur, “a leitura é REFIGURAÇÃO = transformação, re-simbolização, re-mitização.” A partir dessa analogia, hoje não se pode mais conceber a leitura como exercício de alfabetização ou como procedimento que levará a interpretações únicas, fechadas, pré-determinadas, pré-configuradas pela intenção de um autor. Mesmo um texto objetivo: “A República foi proclamada pelo marechal Deodoro em 1889.” provocará diferentes reações, a depender do modo de ler e do repertório dos leitores. Aceitação, dúvida, negação, repulsa, patriotismo, exaltação militar etc.

Mesmo alfabetizado, o leitor não termina nunca seu processo de formação leitora. Vive em estado de tensão permanente entre o horizonte do presente (o leitor que é hoje) e os textos do passado. Isso faz com que o horizonte do presente esteja em constante formação porque põe sempre à prova nossos pré-conceitos. Mas a tensão se revela também, e continuamente, quando o leitor se depara com textos até então excluídos de seu repertório: livros sobre física quântica, sobre jornalismo literário, sobre teoria da desconstrução, sobre a história da perspectiva dos excluídos, sobre filmes ficcionais com o tempo reverso (p.e., o filme “Amnésia”, de 2000, com Christopher Nolan).

Essa multiplicidade permite compreender por que as portas de entrada da leitura são muitas e, por vezes, surpreendentes. Bruxos, vampiros, cabanas, números, fórmulas, imagens, sons podem estar na fonte primeira da sede saciada. O perigo não está nessa fonte, está, sim, em converter a fonte em único lugar onde se pode beber. Há lagos, rios, corredeiras, cascatas, riachins e oceanos, em que se apresentam e despenham as águas da leitura. Para beber, para banhar-se, para afogar-se, para aceitar ou recusar. O leitor pode viver sua vida leitora no mesmo lago, mas jamais compreenderá a força do oceano. Pode ler exclusivamente quadrinhos a vida inteira, mas perderá as imagens incompletas dos grandes romances. Pode ler exclusivamente textos científicos, mas perderá o movimento intenso e prismático dos quadrinhos e a força imaginária da literatura. Poderá ler exclusivamente a ficção, mas não aprenderá a intensa liberdade da poesia e o rigor especulativo do discurso histórico. O escritor japonês Haruki Murakami afirma: “Se você só lê os livros que todo mundo está lendo, você só pode pensar o que todo mundo está pensando.”

Ler é uma ação solidária de integração na história da cultura. Ao ler, estou sozinho, isolado, mas apenas fisicamente. Mental, imaginária e intelectualmente, estou bem (ou mal) acompanhado. Por isso, antes de interromper, com boas intenções, a leitura de alguém embevecido, pense que pode estar cortando – temporariamente – o fio humano que tece a história da cultura.

E as ações para formar leitores e dar alma à leitura oferecem às pessoas a oportunidade de descobrirem-se múltiplas na multiplicidade incontrolável dos textos.

(In: Revista da Academia Paranaense de Letras, Curitiba, nº 69, p. 68-70)

Ler é perigoso! A literatura nas encruzilhadas da vida. (1)

(Live no I Circuito de Literatura e Artes da Pastoral Univeritária Anchieta da PUC-Rio, em 27 de outubro de 2020)

Marta Morais da Costa

“Sem a beleza, o amor ou o perigo, seria quase fácil viver”.

(Albert Camus)

Saúdo a todos e agradeço o convite de Maurício Fernandes, que chegou em uma noite de ares rarefeitos por causa da seca curitibana e trouxe a energia boa da leitura e da literatura. Agradeço também à Pastoral Universitária Anchieta pela oportunidade de conversar com seus participantes e convidados.

Em minha idade, estar fazendo uma live tem algo de paradoxal: nos bastidores fica a luta travada com a tecnologia (e como trava), esta indesejada da velha geração. Fica igualmente a encenação de um estar à vontade conversando com a câmera como se estivesse no olho a olho com as pessoas. Nós nos fazemos falta: eu cá sem vocês e vocês aí me vendo em uma tela limitadora, em fala intermediada pela transmissão à distância. Confesso que ficarei feliz se a imagem não congelar, se o som for audível, se o power point não falhar, se a voz não quebrar no meio das frases… assim, tipo pesadelo de professor.

Se o convite foi um presente, a sugestão do professor Maurício para o tema deste nosso encontro foi maior ainda. “Ler é perigoso!” com um ponto de exclamação que é ao mesmo tempo um alerta e uma descoberta. Confesso que tenho uma queda pelos abismos, pelos precipícios, pelos riscos do desconhecido. Alguém falou perigoso? Deixa ver: para quem fica escrevendo e falando que ler é uma atividade prazerosa, que contribui para a formação de um espírito crítico, que transforma o leitor, que favorece a imaginação e mais isso e mais aquilo e este outro, como assim, perigoso? E lá fui eu baixar livros da estante, consultar o falível Google, ler os livros quase esquecidos, comprar mais uma dezena deles, interrogar e interrogar-me. Aos poucos quem estava a perigo era eu. Insônia, inquietude, insegurança, interrogações. Mas aos poucos o abismo foi lentamente ficando menos atemorizador, sem ter perdido a atração dos perigosos abismos.

Os papeis, livros, anotações, memórias e leitura leitura leitura foram se organizando devagar, devagarinho. E nasceu uma proposta de fala que foi ganhando corpo e alguma organicidade. E aqui chegou. A primeira modificação foi na abertura do título: a proposta do professor Maurício foi singular, mas a resposta será plural. Não cruzamentos, apenas seguindo a forma de cruz, mas encruzilhadas, que além de lugar de cruzamento pode assegurar o significado metafórico de  “Momento ou situação em que se apresentam várias possibilidades para se chegar a uma decisão”. Serão, pois, encruzilhadas, implicando escolhas: a continuidade ou a ruptura de um novo caminho.

Começo pela origem da palavra.

PERIGO! do verbo latino periri: periculum (significa tentativa,  prova, risco,  exame). O ato de ler enquanto uma atividade de risco, o leitor enquanto um aventureiro que se arrisca. Fazendo tentativas de compreensão, interpretação e apropriação. Ler enquanto uma operação, um agir, não enquanto uma submissão. O texto encarado como um desafio, uma desacomodação. O leitor inicia sua trajetória no texto entendendo que precisa arriscar, nada lhe será dado pronto, fechado, definido. Ele precisa atuar como periclitor, ou seja, precisa arriscar-se, por-se em perigo. Não se trata de um perigo físico, nem mental: a própria ação de ler é arriscada. Em cada texto submetemos nossa aprendizagem de leitura ao perigo de nos confrontarmos com o incomum, com o não experimentado, com outra e diferente forma de atuação leitora. Quando eu me refiro a texto, incluam, por favor, textos, em diferentes linguagens (jornais impressos ou digitais, publicidade, documentários, livros didáticos, jingles, fotos, filmes etc) .

E a leitura da literatura? Bom, desde que o texto seja efetivamente arte, isto é, que contenha a técnica literária e a intenção artística, nós, leitores, estaremos sempre em risco durante nossa atividade. Banksy, um artista plástico contemporâneo e desafiador, afirma que “a arte deve confortar o perturbado e perturbar o confortável”. Enquanto arte, será sempre contramão.

Volto à etimologia para trazer dois termos pertencentes ao mesmo campo semântico de “periculum”. São as palavras peritus = perito, que significa o “que sabe por experiência, o instruído”; e imperitia = ignorância. São os que passaram pela experiência textual e, no caso da arte, enfrentaram os perigos mais numerosos, perturbadores, desafiadores e desconfortáveis. E amadureceram na experiência. Ou ignoraram os textos que lhe passaram pelo caminho.

Ler entendido como um ato de ruptura, como quem chega de mansinho e confortável e… plict, plact , zum! o que foi lido muda, desvia, transtorna, perturba o leitor.É o momento de estar sobre um fio que atravessa o abismo. É chegar a uma encruzilhada em que a estrada desconhecida é a única saída. A encruzilhada abre caminhos, mas a decisão de tomar um ou outro é do leitor. E nesta escolha ele pode encontrar a pedra de Drummond, a toca do coelho de Alice ou a planície da literatura de massa.

Retirar um volume da estante pode ser um passaporte para lugar nenhum, mas pode ser o visto de entrada em um país estranho, diferente, revelador. E aí ler é perigoso porque é arriscado, porque sai do traçado, porque coloca à prova, porque examina. É a própria aventura do leitor que arrisca sentidos, que questiona, que “se coloca à distância para melhor ver”, como ensina Eliana Yunes. Por isso, perito é o que sabe por experiência, porque se arriscou, porque experimentou.

Pois é, vinha eu, criança ainda, e topei com o perigoso Monteiro Lobato (hoje mais perigoso ainda porque acusado de não ser o autor da história de hoje por ter sido o autor da história de ontem). Pior ainda, por ter criado uma perigosa boneca falante e asneirante que botou abaixo alguns ditames da velha educação e da velha República, construindo uma biografia ficcional para lá de desafiadora.  Eu vinha de contos, fábulas e poemas, em modelo uniforme de colégio de freiras: blusa branca, saia anil. Neles, tudo dava certo no final: as crianças aprendiam a ser adultas antes do tempo, por contingência e por obediência.

Emília me jogou uma capa de chita, tirou meus sapatos de verniz e encheu minha cabeça de porquês! Mais perigosa ficou porque o livro que me chegou às mãos (tipo “Felicidade Clandestina”) não veio pelos caminhos da escola. Um tio bem intencionado pretendeu me presentear com um volume de reforço às aulas do primário e colocou em minhas mãos um exemplar de “Emília no país da gramática e aritmética da Emília”! Um volume, duas histórias! Mas o tiro saiu pela culatra em bom ditado antigo… e perigoso. Em lugar de aprender as classes gramaticais, o fascínio veio pelas ilustrações em que palavras viravam corpos e vice-versa, e uma voz irônica botava abaixo barbarismos e solecismos, questionava classificações e mostrava uma dança de palavras que escapavam pelas frestas da gramática e se perdiam em outros mundos. Foi paixão daquelas de preocupar pais vigilantes.  

Cada um de nós, leitores, carrega seu primeiro amor (“que foi como uma flor que desabrochou”). O tal “Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor” que o Chico Buarque cantou em “Flor da idade”. Também carrego o meu.

Eu poderia dizer uma mentira deslavada: havia nascido ali com Emília o abismo em que me precipitaria para o resto de meus dias. Que nada! Depois do furacão-abismo Lobato, voltei ao conforto de leituras escolares padronizadas e livros sobre aventuras em países exóticos e manuais de amores eternos, com mulheres perfeitas e cavalheiros arrogantes e mais tarde apaixonados!

O psicanalista Bruno Bettelheim, que faleceu aos 82 anos, em entrevista afirmava que, de tudo o que leu ao longo da vida, avaliava ter encontrado leituras significativas e transformadoras em apenas 4 obras. Levo a vantagem de, um pouco distante dos 82 e espero distante também da hora fatal, já ter encontrado um número maior de paixões literárias e desviantes. Talvez eu seja mais volúvel. Ou tenha uma formação mais rasteira e por isso sujeita a sacudidas mais frequentes, a mudanças de caminho mais constantes.

Nesta já longa caminhada acompanhada de livros, magistério e muita leitura algumas dúvidas consegui esclarecer para mim mesma. Mas à medida que solucionava algumas, pululavam a minha volta dezenas de outras. Vou escolher algumas só para ilustrar algumas encruzilhadas que deram em caminhos inusitados e em muitas pedras.

Foto por Svanur Gabriele em Pexels.com

Começo por uma paixão de maturidade: Manoel de Barros

VII

No descomeço era o verbo.

Só depois é que veio o delírio do verbo.

O delírio do verbo estava no começo, lá

onde a criança diz: Eu escuto a cor dos

passarinhos.

A criança não sabe que o verbo escutar não

funciona para cor, mas para som.

Então se a criança muda a função de um

verbo, ele delira.

E pois.

Em poesia que é voz de poeta, que é a voz

de fazer nascimentos –

o verbo tem que pegar delírio.

(Manoel de Barros. O Livro das Ignorãças. 1993.p.17)

Os delírios que Lobato criou deixei se espalharem em outros livros e outros fazeres ao longo da vida.

Tive uma formação profissional na Universidade muito desigual, péssima em áreas essenciais para meu magistério posterior. Um dos livros que me colocou no caminho possível da grande encruzilhada pedagógica foi “Summerhill, liberdade sem medo”, de Alexander Sutherland Neill, que chegou ao Brasil no início da década de 1960 e que conheci alguns anos depois. Perigosíssimo. Falar em liberdade sem medo em tempos de ditadura era quase como ter escondido em casa um volume de “O Capital”, de Karl Marx. No livro, é narrada a experiência inovadora com educação na Inglaterra apoiada em um tipo de gestão democrática com flexibilização curricular, em que as aulas são opcionais e os alunos participam das decisões sobre estudos e gestão. Como resultado da leitura que me fascinou, comoveu e entusiasmou, não criei uma Summerhill curitibana. Criei, sim, uma utopia interior que me arrastou por planícies e abismos ao longo da carreira. E que reencontrei e vivenciei na literatura. Liberdade sem medo tem tudo a ver com literatura de qualidade, com leitura qualificada. Juntei as duas e saí lutando.

Alguns anos depois uma encruzilhada de Veredas Mortas, habitada pelo Cujo, o Ão, o Cramulhão, o Barzabu, o Satanazim, o Dianho de Guimarães Rosa colocou no precipício mais profundo e chamuscável a literatura que eu havia lido até o momento. Grande Sertão: Veredas é até hoje a paixão e a encruzilhada mais definitiva de minha leitura e de minha ligação umbilical com a língua. foi realmente “a voz de poeta, que é a voz de fazer nascimento”. Liberdade sem medo de ler, de escrever, de pensar, de sentir, de olhar para o mundo. Parodiando o “Ver com olhos livres” do Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade, pude viver um ler com olhos livres. E estávamos em plena ditadura…

Outros terremotos, outros verbos delirantes viriam e continuam a chegar. Há uma formação de leitores que atinge certo grau de autonomia ao final da escolarização, mas há outra formação que realizamos, muitas vezes individualmente, ao longo de toda a vida.  Isto significa que, ao buscar insaciavelmente o encontro com o livro perfeito, nos arriscamos, caminhamos à beira do precipício – talvez com maior cansaço e dificuldade motora por causa da idade, mas permanecemos abertos ao erro e às descobertas.

Um teórico da leitura, de base filosófica e histórica, Hans-Robert Jauss, lançou em sua teoria o termo “horizonte de expectativas” de que gosto muito. “Todo leitor se aproxima de um texto com suas próprias ideias sobre o que espera encontrar nele; estas ideias dependem do marco social e cultural em que se encontre o leitor”, assim se define esse horizonte. Eu acrescentaria que também atua como baliza nesse processo o histórico de suas leituras, o modo como lê e os objetivos que projeta para aquilo que lê.  Trata-se de reconhecer os limites de percepção e visão ditados pelo histórico de leituras de um leitor e por seus conhecimentos prévios a respeito da língua, dos modos de produção de sentidos e de cosmovisões, todos colocados em um texto determinado.

Gosto dessa denominação “horizonte de expectativas” porque horizonte é uma metáfora visual muito rica, vivenciável e mutável. Quem pouco lê, tem um horizonte de expectativas em relação à leitura que é estreito, finito, restrito. Este horizonte se ampliará à medida que leituras diversificadas e múltiplas forem acontecendo. Será ampliado na medida em que o leitor, ultrapassando perigos, se torne mais perito na ação de ler. Contribuem para essa ampliação todos os textos da cultura que fazem parte de sua formação, não importa o suporte em que estejam.

Outra não é a posição do escritor-cartunista-gênio Quino, o criador da Mafalda, quando a faz afirmar que “Viver sem ler é perigoso, porque te obriga a crer no que dizem.”. Sujeita-se o leitor, voluntariamente ou não, a assumir  o “horizonte de leitura” estabelecido por outrem.

Está posto um problema ontológico e metafísico neste momento: afinal qual ação é perigosa? Ler? Ou não ler? “’Ora, direis ouvir estrelas”: é claro que tudo depende da perspectiva e valores. Depende de ver o horizonte?

Cócegas mentais me fazem pensar pelo avesso: não seria mais tranquilo, e com grande economia de tempo e expansão dos prazeres do ócio, deixar a indolência tomar conta das pessoas e limitá-las a ler apenas o básico, isto é, aquelas formas textuais necessárias à sobrevivência cotidiana básica, primária? Ou então, convencê-las que ler é difícil, trabalhoso, que é melhor substituir os livros por outras atividades ou ler apenas livros de que se goste e que sejam simples em sua linguagem e rasos no tratamento dos assuntos? Textos que sigam o mesmo modelito narrativo ou poético, cristalizado? Ou então que proporcionem exclusivamente entretenimento?

Foto por Amanda Cottrell em Pexels.com

Não quero que pensem que prefiro um atalho de pedras, sem asfalto nem sinalização, a uma ampla estrada pavimentada e em, digamos, dez vias. Também tenho minhas paixonites volúveis no mundo atraente dos best-sellers. Só não fico estacionada em uma das dez pistas, acreditando que assim chegarei a qualquer lugar paradisíaco. Percebo que nem todas as encruzilhadas me oferecem perigos dramáticos e riscos. Elas podem apontar caminhos de Iaras e Botos sedutores que, enleando o leitor em abraços amorosos, o prendem em armadilhas mortais. Ler qualquer coisa, ler por ler, ler para contabilizar, ler para atender à lista dos mais vendidos, pode significar um abismo acolchoado, atapetado, envolvente, atordoante e escravizador.

Não é esta a programação decretada por Beatty, o comandante dos bombeiros incendiários em Farenheit 451? Algo assim como:

“Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto de “fatos” que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente “brilhantes” quanto a informações. Assim elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. (…) Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com  muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido.”  ( Ray Bradbury, Farenheit 451)

Continua no próximo capítulo.

Uma presença imorredoura

Relendo Farenheit 451, lembrei de anotar uma fala linda do personagem Granger sobre seu avô.

Pensando em Bartolomeu Queirós e sua trilogia “Indez”, “Por parte de pai” e “Ler e escrever e fazer conta de cabeça”, com lindas e líricas passagens sobre pai e avô, compartilho o texto de Ray Bradbury.

Bartô merecerá mais tempo e um afeto especial.

Foto por Pritam Kumar em Pexels.com

“Meu avô morreu quando eu era garoto. Ele era escultor. Também era um homem muito generoso, com muito amor para dar ao mundo, e ajudou a reduzir a miséria de nossa cidade; e ele fazia brinquedos para nós e fez milhões de coisas na vida; sempre tinha as mãos ocupadas. E quando morreu, subitamente percebi que não estava chorando por ele, mas por todas as coisas que ele fazia. Eu chorava porque ele nunca mais as faria novamente, nunca mais esculpiria outra peça de madeira ou nos ajudaria a criar pombos no quintal, nem tocaria violino do jeito que tocava ou nos contaria piadas com aquele seu jeito especial. Ele fazia parte de nós e quando morreu, todas essas coisas morreram com ele, e não havia ninguém para fazê-las do jeito que ele fazia. Ele era único. Era um homem importante. Jamais superei sua morte. Muitas vezes penso: quantas esculturas maravilhosas jamais vieram à luz porque ele morreu. Quantas piadas estão perdidas para o mundo e quantos pombos suas mãos deixarão de tocar. Ele moldava o mundo. Ele fazia coisas para o mundo. O mundo sofreu uma perda de dez milhões de ações generosas na noite em que ele morreu.”

BRADBURY, Ray. Farenheit 451. Tradução Cid Knipel. 2ª.ed. São Paulo: Globo, 2012. p.189.

MAGISTÉRIO E RESISTÊNCIA

Foto por Flora Westbrook em Pexels.com

   Marta Morais da Costa

Caro jornalista,

            Quando você me pediu para escrever um pequeno texto sobre minha profissão para ser publicado no Dia do Professor, pensei em fazê-lo à moda dos discursos políticos e oficiais, com frases de incentivo, adjetivos elogiosos, substantivos idealizados e muitos verbos de afeto. Algo parecido com: “Ser professor é padecer no Paraíso. A educação é o esteio moral de um país. Ser educador é missão que enobrece e constrói o cidadão do futuro. Não há nação desenvolvida sem educação de qualidade. O professor educador é o agente de mudanças e alicerce de um país melhor.”

            Já lemos e ouvimos essas palavras em diversos lugares, situações, textos e momentos. Concorda?

No entanto, se compararmos essas frases com a realidade e a história da educação no Brasil, podemos verificar o quanto são dizeres contraditórios e enganosos. Por vezes, embora expressem verdades parciais, nunca se realizam, não passam de palavras vazias, esbarram na cruel e desprezível e mesquinha recompensa do cotidiano escolar e social.

Deixo que essas frases retóricas continuem soando em forma de discurso repetido e repetindo-se como música de fundo, para que lhe conte um pouco de minha biografia como educadora. Creio que, desse modo, você poderá avaliar melhor o que representa a data de 15 de outubro para mim.

Sou de família humilde e estudei sempre em escolas públicas. Para meus familiares, ser professor era profissão altamente considerada, pois lidava com um conhecimento que havia sido, com dificuldades, acumulado por gerações. Representava uma pessoa destaque na comunidade porque era alguém capaz de dominar esse saber.

Na escola pública, no entanto, ser professor era, acima de tudo, um emprego estável. Alguns de meus professores cumpriam à risca esse mandamento. Davam suas aulas com quem carimba papéis ou atende formalmente o público. Alguns deles chegavam a usar a estabilidade como respaldo para arbitrariedades. No entanto, entre dezenas de professores, alguns poucos deixavam emprego e segurança em segundo plano para se aventurar nos mares do conhecimento – para cuja viagem nos convidavam – e no universo da afetividade. Educavam para o presente, indagando o imprevisível futuro.

Foram eles os responsáveis mais diretos por minha decisão pela carreira do magistério. Foram, e continuam sendo, exemplos de vida profissional que persigo.

Da universidade saí munida de receitas e esperanças e iniciei minha atuação docente. Minha biografia até aquele momento, um plácido conto de Natal, ganhou os contornos de tragédia do cotidiano. As receitas só funcionaram enquanto a esperança resistiu.

(Ao fundo, continua a música das frases de efeito, não?)

O salário não resistia ao mês. Vendi na escola o que produziam minhas mãos nas madrugadas e finais de semana: blocos de papel decorados, almofadas de crochê, toalhas pintadas, sachês, artigos de Natal, sabonetes e velas. Mascateando, pude ter uma modesta cerimônia de casamento, comprar o enxoval dos filhos, pagar o aluguel de uma casa melhor. Livros? Ganhei de presente, comprei em sebo, recebi de editoras. Não abandonei o sonho de ser uma boa professora para não me tornar uma carimbadora de papéis.

Enfrentei o descaso de colegas (alguns até com maior experiência na carreira!) com o trabalho sério em sala de aula, ouvindo perguntas assim: “Por que se dedicar tanto se não vai ganhar mais com isso?” Resisti ao desânimo, às dúvidas, às dificuldades. Com realismo, tentei alcançar a estatura de meus bons professores. Vi crescer a indisciplina e a violência entre alunos e na comunidade. Experimentei a humilhação infligida a mim e a meus colegas por pais e alunos. Revoltei-me (e assim continuo) com o discurso oco e eleitoreiro sobre a “nobre missão do professor”.

“É nobre, mas não é missão. É profissão!”, dizia e digo convictamente.

Sinto-me por vezes uma espécie desatualizada de Dom Quixote lutando para vencer moinhos de ignorância e desprezo.

Hoje, vendo cosméticos, e não deixei de ler e estudar nas poucas horas vagas. Tento convencer alguns alunos ,mais porosos a meu exemplo e às minhas palavras, da importância do  conhecimento para uma visão crítica da realidade. Sofro ao ver meu trabalho e boas intenções desprezados por alunos sem disciplina, nem respeito.

As imagens de meus bons professores às vezes sorriem para mim, numa espécie de conversa interior, numa espécie de farol a guiar-me nesta viagem cheia de percalços.

Os olhos de alguns poucos alunos abrem-se e brilham quando aprendem algo novo. Poucos e raros pais me confessaram que seus filhos mudaram, para melhor, demonstrando confiança na educação.

Se eu desistiria de ser professora? Pensei sobre isso várias vezes ao longo dos anos. Mas sempre que as dificuldades pesavam mais na balança, os pequenos resultados positivos, aqueles olhos brilhando, aquele sorriso de compreensão me estimulavam a continuar. Por eles continuei.

Por essas razões, o Dia do Professor para mim não tem sabor de festa. Tem marca de resistência. Agora sei: continuo porque resisto.

                                                            (a) Joana Augusta R. Soiset

Solidariedade

Para as crianças, depois de seu dia oficial de consumo.

Marta Morais da Costa

Luísa tossia muito na segunda-feira: estava com uma gripe poderosa, devastadora, contagiosa. Vítor caiu de cama, com gripe, na quinta. Luísa era sua colega de classe.

Artur estava com rubéola na aula de natação. Vítor caiu de cama, com rubéola. Artur e Vítor nadavam na mesma piscina.

Aurélio faltou à aula. Causa? Virose. Três dias depois Vítor não pôde ir ao aniversário de Letícia, Causa? Virose. Vítor e Aurélio são irmãos.

A insolação de Sérgio e a diarreia de Camila contaminaram Vítor: sol e intestino o deixaram de cama. Sérgio, Camila e Vítor curtiam férias juntos e misturados.

Vítor era um solidário. Nem a solidão dos dias chuvosos era penosa. Sabia que, cada um em sua casa, olhavam para as mesmas águas.  Havia aprendido o significado de conviver.

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Da cor do pecado

Marta Morais da Costa

O pecado foi o monstro temível e aterrador de minha infância. A cabeça hipertrofiada, o riso bestial, olhos em fogo, dentes lupinos, garras e cascos. Algo como um diabo medieval somado à besta do lago Ness. Nem por isso eu deixava de levar semanalmente ao confessionário uma lista decuplicada de transgressões às leis divinas. É verdade que, perto do que a idade madura traria, o rol era apenas fruto da imaginação e eco dos sermões dominicais. Nascemos todos anjos, alguns perdem as asas e humanizam-se rapidamente. Em slow motion, demorei a perdê-las. E até hoje tento humanizar-me. Dura tarefa, talvez impossível. Se o que vejo ao redor e cotidianamente é o modelo de humanidade, fico mais certa de que não quero assumir em mim o que meus olhos descobrem.

Esta crônica não tem a intenção de atuar como confessionário, portanto, fiquem tranquilos, leitores, prometo não enveredar por questões religiosas, embora elas enveredem teimosamente no meio de minhas palavras e dos dedos a dançar pelo teclado. Vade retro, temptatione!

Herdei do repertório brasileiro de canções, tão rico, diverso e inovador (com o perdão dos países que reclamam esses adjetivos, mas não passam de arremedos de nossa criatividade musical) uma composição que, se puder, canto no volume mais alto que as pregas vocais aguentarem: “Da cor do pecado”, de Bororó.  Para além do caldo sensual, das imagens voluptuosas, me intriga essa minúscula construção verbal desafiadora do título. Qual é a cor? Por que é pecado?

Vai daí que recebo um meme instigante sobre “Os 7 pecados literários” de @nosso_universo_literario. Conhecem? Tomo a liberdade de reproduzir para os poucos que ainda não o viram:

1 Gula- Devorar um livro em poucos dias.

2 Avareza- Não emprestar livros.

3 Luxúria – Desejar um livro sem ter lido os que já tem.

4 Ira – Querer matar um personagem.

5 Inveja – Cobiçar o livro do próximo.

6 Preguiça – Enrolar para terminar um livro.

7 Orgulho – Achar que o gênero que você lê é o melhor.

Depois de um exame de consciência na velocidade da luz, fiquei achando que até melhorei ao longo dos anos. Sabem aquela lista de 10 pecados no confessionário da infância? Pois é, agora são somente sete!

Incorro em todos esses, sem culpa, gostosamente.

Também não é para fazer uma profissão de fé pecaminosa em relação à leitura que iniciei esta crônica-confissão. O que me perturba é a tal “cor do pecado”. Será que tem a ver com a cor das vogais do poema de Rimbaud?

Só pra recordar: o jovem poeta e futuro mercador de armas Arthur Rimbaud escreveu um soneto intitulado “Voyelles” e nele atribuiu às cinco vogais francesas (com timbres diferentes dos da língua portuguesa, embora escritas tal e qual) as seguintes cores:  negra (a), branca (e), vermelha (i), azul (o) e  verde (u).

É evidente que eu e mais alguns milhões de pessoas dariam cores diferentes para as mesmas vogais, sem correr o risco de levar uma arminha pela cara. Cada um sabe “a dor e a delícia de ser o que é”. E o que não somos é, seguramente, submissos a declarações subjetivas de alfabetos coloridos, mesmo com o arrojo poético rimbaudiano.

Longe de mim ser comparada ao mestre armeiro, mas minha atração pelo abismo me leva a tentar resolver a minha maior incógnita do momento: qual é a cor do pecado?

Foto por Steve Johnson em Pexels.com

Junto alhos e bugalhos e parto de imediato para a tentativa de uma resposta exequível (viva a reforma ortográfica recente: pronuncio o u, mas não o marco mais com trema!) sem tremer.

Os tais sete pecados capitais formam um conjunto de número mítico que, como boa virginiana, apresentarei em ordem alfabética. No meu entendimento, hoje composto por neurônios decrescentes e joelhos esfolados de tanto rezar, eles seriam cromaticamente associados, pintados e bordados desta maneira:

– Avareza, dourada como os potes de ouro do rei Midas e a caverna de Ali Babá. Afinal, entesourar hoje é para nababos e contos maravilhosos.

– Gula: a este tenho o maior apreço, e para confirmar minha adesão entusiasta, coloco neste pecadinho a enormidade possível das cores, um cardápio multicolorido como a natureza que nos alimenta o corpo e o espírito.

– Inveja, santa ou pecaminosa, é amarela! Está na palidez do invejoso e nas órbitas esbugalhadas de quem trocaria tudo o que tem pelo ouro de tolo dos outros.

– Ira é branca no esgar dos dentes de crocodilo de um rosto desequilibrado, na baba a espumar nos lábios, no apagão dos neurônios.

– Luxúria – eita “pecado rasgado, suado, do lado de baixo do Equador”! Tua cor está nos cenários da rede Globo, no mesmo vermelho de roupas e espaços de teatros e cinemas, na sensualidade rubra das divas e dos divos, no desejo ardente a levar as almas para os divãs de psicanalistas.

– Orgulho é um pecado de sangue azul. Da cor do céu que julgam habitar os nobres de calção de esfola-gato dos tempos de Gregório de Matos até os privilegiados da vida que circulam nas vias privilegiadas da sociedade de sangue vermelho, igualzinho para todos.

– Preguiça, vício macunaímico, indolente pendão das décadas perdidas e do retrocesso, bandeira falsa atribuída aos artistas, que mais criam quanto mais trabalham, mesmo estando em redes ou leitos insones.  Você, preguiça, é bege, flicts, a cor rejeitada da boca para fora e tatuada a ferro e fogo, que a alma lava, esfrega, mas não apaga.

Como pecadora não arrependida, entendo que esta crônica se estende por demais com apenas sete pecados. Os outros estarão escritos em livros inúmeros localizados nos cantos mais escuros da biblioteca infindável de Borges.

AMOR

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                                        Marta Morais da Costa
 
Julgava o amor
voraz sentimento tirânico,
avalanche, tsunami,
catástrofe bem-vinda,
êxtase devastador,
raio beta radioativo.
 
Tropecei e despenhei-me na própria ilusão.
 
Amor chegou de mansinho,
pouco a pouco, sadio
e melancólico,
inseguro de si  e míope.
Não lamentou suas deficiências,
instalou-se em mim
como velho inquilino,
cobrou seus direitos, não pagou suas dívidas,
comeu, bebeu, dormiu
e esqueceu-se de partir.
 
Até hoje mora comigo,
acomodado e sorumbático.
Por causa dele sobrevivo
a sonhar loucuras impossíveis,
Sancho Pança, algemado
a normas e crenças.
Sem batalhas, sem medalhas,
feliz em minha limitada mediania.

DISTÂNCIAS

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                                                                                Marta Morais da Costa

Passou o tempo da vida
a medir distâncias.
 
Entre a brincadeira e o trabalho
entre o estudo e a aprendizagem
entre a saúde e a doença
entre o ser, o estar e o fazer.
 
 
Os cálculos mediam
quase tudo o que limita.
Arriscavam, porém,
inoperantes e imprecisos,
quase tudo o que amplia.
 
Os números descreviam
fatos, emoções, expectativas.
O que comia e vestia,
o que ganhava e dispendia,
os ardores dos desejos,
o tamanho da solidão,
o percurso dos sonhos.
 
A conta mais inevitável, porém,
ficou inexata e incompleta:
não conseguiu numerar
a distância inapreensível
entre o surgir e o dissolver,
entre o que foi e deixou de ser
entre o que viveu de verdade
e o que ficou inalcançável.
 
Conta fechada pelo cálculo
imensurável da morte.