Descarte

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Marta Morais da Costa

O dia amanhecera vestido de nuvens cinzentas, pesadas e compactas. O sol continuava adormecido no espaço sideral. Afinal, uma das funções das nuvens é garantir a privacidade do astro. Outra função? Servir de música nupcial quando a chuva convive com ele em dia de casamento de viúva ou de espanhol, a depender da ordem em que algum engraçadinho colocar o par romântico: sol e chuva; chuva e sol.

Em dia nublado, espírito sossegado. No espaço de tempo entre uma demorada xícara de café e um prato de sopa aromática, ela decidiu concluir a tarefa de descartar o conteúdo da caixa organizadora, deformada pela quantidade de fotos, cartas, recortes e um sem-fim de lembrancinhas, acumulada ao longo de anos.

Para bem da verdade, não era a primeira vez que se propunha a dar cabo definitivamente do máximo de coisas sem mais utilidade, guardadas pouco a pouco. Hoje vai, pensou. Já que as providências para o restante do dia já haviam sido tomadas. Já que o tempo com cara de vilão não permitia uma saidinha ao ar livre sem a ameaça de um banho frio e indesejado.

Escolheu o cantinho de leitura: poltrona, almofadas, uma mesa de apoio e todo o material para cortar, picotar, etiquetar, reunir, escrever, separar. De todos os verbos, o que lhe dava maior prazer era picotar. Quem não viveu aquela sensação de limpeza e de dever cumprido, quando descarta o que não lhe serve mais e cria espaços vazios e renovados para receber mais material? Pois é, era assim.

A tampa da caixa já era um vaticínio: sol poente, flores murchas, terra seca e, para arrematar, um solene flamingo cor de fogo. Não dava para fugir daquela sina de destruição. Motivação se faltasse, era só rasgar os olhos em direção à tampa e qualquer dúvida virava fumaça. O odor que atingiu suas narinas tão logo a tampa se deslocou era um pouco do ácido do papel velho, a violência tóxica da última bola de naftalina em um dos cantos, a tinta envelhecida das fotos rosadas, dos tecidos, dos badulaques e do papel jornal dava um toque mais repulsivo à abertura da caixa. A intenção de descarte se fazia um ato de higiene ambiental.

Tal como a abertura rápida, o fechamento da caixa indicava a necessidade de paramentar-se adequadamente. Luvas e máscara vieram completar o arsenal de medidas profiláticas: sacos para lixo, tesoura, aspirador, mãos ágeis, afetos anestesiados, consciência algemada no pila da vontade. Estavam prontos o cenário, os instrumentos e o carrasco para o descarte.

O que leva as pessoas a guardar coisas, carregá-las por anos a fio e depois destruí-las? A necessidade de parar o tempo na forma de objetos? A angústia de experimentar a memória desintegrando-se e, por isso, buscar ancorá-la em coisas? A busca de prender ao coração as pessoas idas e vindas por meio de lembranças palpáveis? O projeto de recomposição de pedaços de vida na velhice, nos tempos ociosos da velhice? A construção de uma herança para os descendentes em formato de documentos de uma fase “meninos, eu vi”?

Não importa qual tenha sido o motivo de construção deste depósito heterogêneo, o fato é que ela se encontra diante de uma caixa que contém o que pôde e quis guardar como testemunhos de um tempo pretérito e violável. A mão caminha entre objetos e papeis, como se os dedos fossem rastreadores e pelo tato reconhecessem os momentos de dor ou de alegria, a identidade dos bilhetes e dos fotografados, contassem a narrativa originária daquele objeto, trouxessem à luz em novo nascimento a flor seca de amores idos.

Aos poucos o corpo em movimento coordenado faz transitar o conteúdo da caixa pelas tábuas, cantos e superfícies do quarto. Fotos de amigos sorridentes, paisagens, monumentos de viagens pretéritas, as faces amadas em desfile fora de cronologia. Rostos envelhecidos precedendo a juventude, o homem maduro não reconhecível na criança que foi, a avó enternecida com o neto e de costas para a  foto da jovem esposa de olhar tímido em vestido de noiva. O fotógrafo sempre um voyeur, fora da foto, presença ausente. Muitas delas recobertas com a neblina rósea dos velhos filmes e das antigas reproduções e seus carimbos invasores a dizer de laboratórios já desaparecidos e só existentes nos guardados de uma vida.

A pilha de papeis, desigual em formato e tamanho, coloca em inesperada posição em cima-embaixo uma profusão de bilhetes, recortes amarelados de jornais, rótulos, bolachas de chope, cartões de visita, convites. O aniversário de um ano do Chico, o casamento do André, a formatura do Guto, a festa das bodas de ouro dos avós, o lançamento do livro da Bia. Como dizia o velho professor de Português, as efemérides, sem se dar conta de que a origem grega significava simplesmente de cada dia, diário, assim sem pompa, sem prestígio, sem diferença do dia de trabalhar, limpar a casa, pagar as contas, comprar batatas e cebolas. Indiferentes à etimologia, lá estavam os convites, lampeiros, exibindo cores e letras especiais, volumosos por vezes, sempre festeiros.

Era nos badulaques que a caixa de guardados mais se exibia. Chaveiros, rolhas, um coração de papier maché, estrelinhas de latão, anéis de coco, o colarzinho de miçangas que Antônia ganhou aos cinco anos, uma enegrecida torre Eiffel daquela viagem desastrada a Paris, um bonequinho de amigurumi prêmio da professora de Artes à melhor performance no canto coral. Ah, e uma medalha de terceiro lugar na natação juvenil, a única ganha na vida de quem poderia ter sido atleta e não o foi. Coisas e casos casados na memória, registros de anos de existência abandonados em uma caixa no armário mais esquecido da casa.

Talvez uma história que quisesse permanecer em silêncio, escritas de um tempo escorrendo para o nada, memórias a comprovar uma vida fragmentada, concreta e mesmo assim esquecível, um passado a querer se presentificar,  mas já deturpado, torto, sem a costura que lhe dê ao menos consistência e permanência.

Recolheu os pedaços de seu passado, desordenados, misturados, destecidos, e os devolveu à caixa. Lentamente passou nela um barbante em formato de cruz, amarrou fortemente. Sobre a tampa colou um envelope endereçado à mais querida das netas, talvez por comungarem  sonhos e temperamento. Dentro um bilhete a ser lido após a morte: “Sílvia, grata por ter plantado em mim a semente do amor sem limites. Peço que, depois que eu partir, você destrua esta caixa e o que ela contém. Voltam a ser apenas coisas sem minha presença viva.  Coisas velhas, sem sentido. Se você as queimar, talvez as cinzas possam reencontrar o pó em que me tornei.”

Lá fora, as nuvens mantinham o sol prisioneiro.

Marcos de uma Estrada Real

Marta Morais da Costa

Ler e escrever. Lire et écrire. Leggere e scrivere. To write and to read. Lesen und Schreiben

Essas palavras que, irmanadas, ecoam uma na outra a sonoridade final ou inicial, não constituem apenas verbos e rimas, mas propõem uma aliança  que seus praticantes recusam a desfazer. Leio para bem escrever. Escrevo para melhor ler. Qual dos dois, tal o enigma infantil – e transcendental – da galinha e do ovo, está na origem, é o momento inaugural de uma trajetória em códigos, textos e suportes?

Em décadas recentes, vozes que procuram atestar a importância dessa dupla ação física e intelectual povoam páginas impressas ou digitais. As opiniões, as definições, os depoimentos e as tentativas de descrição invadem a cultura em seus mais diferentes ambientes: a oralidade, o público massivo, a erudição mais refinada. 

Escritores no Brasil espalham-se pelos mais diferentes canais, códigos, plataformas e suportes. A cultura vê-se invadida por uma produção que parece fazer submergir os leitores e emergir escritores em cada canto, fresta e desvão deste país. Talvez seja um auspicioso sinal de um povo em necessidade premente de expressão pessoal. Talvez seja um sinal de um povo em desvio inconsciente da aprendizagem provocada pela leitura: escreve-se mesmo sem amadurecer leituras. Ou talvez a enxurrada de novos textos e nos mais variados suportes comprove que o nível intelectual de um povo talvez possa ser medido não pelo que se lê, mas pelo que se escreve. O que jogaria ao mar todas as pesquisas que achatam nosso orgulho nacional quando os brasileiros participam de concursos ou competições de leitura, compreensão e reflexão a partir do que leem, como o PISA, o Enem, o ENADE.

Sônia Rodrigues dedica um livro à descrição e à análise do RPG – ou seja, do Roleplaying game – um jogo alicerçado em personagens e enredo, arquitetado pelos jogadores ao jogar. O título é “Roleplaying games e a pedagogia da imaginação no Brasil”. Duas afirmações da autora chamaram-me a atenção. Eu as reproduzo para poder comentá-las.

A primeira delas afirma categoricamente que “Uma criança ou adolescente narrando histórias só com o auxílio de sua imaginação, sem repertório ou iniciação, está fadada a propor enredos pobres.”  (RODRIGUES, 2004, p.137). Não posso fugir a uma associação com a escola. Professores almejam que seus alunos sejam capazes de produzir textos denominados pela pedagogia do engano de “criativos” sem a devida preocupação com “repertório e iniciação”. Temas livres, redações de supetão, textos de baixa paródia, chavões, lugares-comuns, banalidades e trivialidades colocadas no alto do pódio da avaliação, como se fossem o suprassumo da capacidade expressiva dos pobres redatores iludidos.

E sabemos que não apenas a escola valoriza este campeonato de trivialidades narrativas ou poéticas. As estantes e os e-readers acumulam textos que não passam de um amontoado de clichês, de desabafos, de falsa espontaneidade em forma de narrativas (como as biografias de anônimos em busca da celebridade, de narcisos desejando que a água se transforme em espelho, de preferência com gambiarras de LED).

É verdade que aprendemos muito ao reconhecer e aplicar modelos, padrões, exemplos. Mais rapidamente aprende a ler quem tem em sua vida exemplos de leitores. A família, os professores, os amigos, um vizinho, um ídolo do cinema ou da música, alguém que leia e divulgue a leitura será sempre um indutor de leitores, um formador de leitores. São círculos concêntricos dentro das águas da cultura.  Mas “sem repertório, sem iniciação…os enredos serão pobres.” Seria como se o mundo começasse repetidamente da fase zero. Seria como se, em termos de leitura e escrita, o aprendiz estivesse sempre retornando ao período anterior à criação dos sumérios. O repertório criado pela história dos textos, o leitor-escritor que tem conhecimento ao menos de parte desse percurso, está melhor equipado para ler e escrever. Mesmo que posteriormente venha a se insurgir contra padrões e exemplaridades. Os pioneiros serão marcos inamovíveis da Estrada Real da leitura e da escrita.  

A segunda afirmação adota outra perspectiva: “Escreve o leitor que se arrisca à exposição. O leitor que não teme (em excesso, pelo menos) a rejeição ou aquele que precisa da companhia, do aplauso, da apreciação de alguém que o leia.” (RODRIGUES, 2004, p.185). Quando me deparei com esta frase, entrei em grave crise identitária. Escrevo há muito tempo com a ingênua intenção de expor ideias, preferencialmente. A forma reflexiva do verbo (expor-se) passava ao largo de minhas modestas pretensões. Mas aprendi que a linguagem é um confessionário ou um divã inescapável. Ao expor me exponho.  Nem Pablo Neruda com sua definição objetiva e professoral de texto  (“Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio, você coloca ideias.”) me propiciou alívio à crise.

Talvez uma visão cética como a de Carlos Drummond de Andrade pudesse aquietar-me: “Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante”. Materializar dessa forma a escrita, pensar apenas como um preenchimento de lacunas espaciais, como um quantitativo de linhas e volumes talvez pudesse retirar da escrita o peso da exposição da identidade.

Argumento enganoso! A escrita, mesmo de uma crônica desengonçada e despretensiosa sobre ler e escrever como esta, pode corroborar a visão de Elvira Vigna: “Quando escreve, você não fica igual ao que era antes. Você se modifica. Tem que pagar esse preço, de saber que você vai ficar diferente.”

 

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Neste período de epidemia – que se faz longo, além de qualquer expectativa – em que fomos encerrados por força de um vírus em nossas casas e em nós mesmos, quantos não deram início à leitura ou à escrita? São tantas as demonstrações livrescas (jogos, gincanas, declarações de amor, bibliotecas como pano de fundo de lives, crescentes vendas eletrônicas de livros, ebooks e audiolivros) que formam um lastro de euforia em educadores e promotores de leitura. Talvez seja apenas um fenômeno pandêmico que cessará com a chegada de vacinas anti-leitura.

Também a escrita se derrama em páginas, sites, blogs, mensagens, diários. Não necessariamente uma escrita literária ou estética. Mas algo como uma via de expressão a mais na sociedade tão afogada por palavras escritas. Mas a escrita, seja destampatória ou exercício, traz novidade para uma cultura avessa a textões e a qualquer papel que lembre, ou exija, o trabalho de ler.

À espera da vacina, à espera das transformações, à espera de outro olhar da sociedade para a escrita e a leitura, continuarei nesta cidadela, acreditando na resistência de seus muros feitos de livros e de suas janelas feitas de escritas. Talvez nada do anunciado “novo normal” se cumpra. Faz mal, não. Perder batalhas, perder a guerra, perder o juízo e até a própria história são fatos da vida. Nem sempre é possível nesta jornada sobre a Terra exclamar “veni, vidi, vici”.

Mas será sempre possível dizer, em latim ou em português, ego vivo, eu vivo, continuo viva.

Obs.: Esta é uma nova versão de um texto que publiquei em novembro de 2017. São dois anos, oito meses, milhares de páginas e uma epidemia de diferença entre aquela data e esta publicação. Algumas ideias e citações permanecem. Outras foram acrescentadas ou intensificadas. O propósito central permaneceu: tratar da relação entre leitura e escrita, porque continuo acreditando que essas duas ações fazem a diferença no mundo e na vida. Salvacionismo? Talvez. Eu diria antes que é um manifesto, um protesto e uma constatação.

Estação Islândia

Marta Morais da Costa

Ontem, 15 de julho, completei sem comemoração, silenciosamente, quatro meses de confinamento por causa do coronavírus. Espero que não faltem 36 outros meses para completar uma quarentena mensal. Para tanto, conto com minha resistência física – a cada dia mais desistência. Conto muito mais com a capacidade científica de pesquisadores, laboratoristas, médicos e cientistas que irão criar a vacina mais aguardada deste século tão refratário a vacinas igualmente salvadoras.

Quando me encerrei com marido, livros e tecnologias e uma despensa razoavelmente bem servida, imaginava uma quarentena italiana ou britânica, sabendo que jamais seria uma temporada neozelandesa. O Brasil sempre foi para a maioria de seus habitantes um desapiedado lar de horrores e decepções. Não deu outra.

Quarenta dias + quarenta dias + quarenta dias +…

As fases desse luto pessoal e coletivo ganham contornos cada vez mais trágicos e depressivos. A esperança, qual chama de pobre vela de sebo, vai derretendo em cada notícia, em cada boletim, em cada gráfico de derrotas. Lançar-se à rua representa o mesmo risco de vida daqueles marinheiros audazes em caravelas de casca de noz, entregues aos bons e maus ventos atlânticos, tentando chegar ao eldorado, mesmo que ele fosse uma floresta de pau-brasil. Muitos saíam e poucos chegavam. Retornar não era preciso, navegar, sim.

Mas eu quero retornar, não ao que já fui, ou ao que imaginava ser meu futuro, ou ainda ao que sonhava ser o Brasil, ou ao tipo de felicidade que desejava à família e aos amigos. Quero retornar ao menos para minha casa sem a companhia de coroas, gripes mortais, sintomas de síndromes de qualquer espécie.

Quero retornar à contagem das quarentenas e dos ansiados festejos  quando elas chegarem ao fim. Simples assim. Pequeno assim. Individualista assim.

Quarenta dias + quarenta dias + quarenta dias + UM.

Eis que no dia de hoje, o noticiário jornalístico me brindou com uma fresta de sol, uma flor no asfalto, um pássaro no pântano. A notícia vinha de longe, de uma terra que na imaginação vejo povoada de duendes, fadas, animais mitológicos e seres humanos dotados de couraças resistentes a temperaturas glaciais e paisagens brancas.

A notícia vem da Islândia, terra que evoca em mim toda a magia do desconhecido e a admiração pelas diferenças culturais e históricas de um país marcado por auroras boreais e pessoas tão mágicas quanto a Rainha da Neve de minha infância.

Bem que na Copa do Mundo de Futebol de 2018 somou-se a essa imagem idílica que tenho da Islândia a realidade de uma seleção nacional aguerrida, desafiadora e identificada ao mais sonoro, potente e inusitado grito de torcedores. Era a “haka dos vikings”, um bater de palmas ritmadas e com os braços estendidos, sincronizado em uníssono, acompanhado de um emocionante e exótico “uh” profundo, cada vez mais rápido e cada vez mais envolvente.

Era uma Islândia diferente, atraente, inusitada.  Ganhava uma realidade menos mágica e mais humanamente empática. Agora, uma nova surpresa.

A Agência Nacional de Turismo da Islândia oferece um serviço de recebimento de gritos gravados a serem lançados ao ar em regiões remotas do país. Em tempos de pandemia é o reconhecimento da necessidade de expressar, isto é, de colocar para fora toda a força de nossa angústia, de nosso desconsolo, de nossa desesperança, de nossa dor. Tal como o grito primal, uma espécie de terapia que esteve em moda nos anos 1970, criado e defendido  pelo psicoterapeuta estadunidense Arthur Janov. Para quem curtia e curte o Beatles, ele influenciou o casalzinho icônico John e Yoko, que saiu gritando (nem tanto) os benefícios do grito primal para externar todo desequilíbrio humano. O sucesso na música se estendeu à também banda britânica, Primal Scream. Ah, esses britânicos… A Rainha Vitória foi vitoriosa até além-túmulo: tanta compostura e repressão deu no que deu!

Pegando um Ita no Atlântico Norte, saindo do porto dos duendes, e descendo cá para o abençoado país de palmeiras e sabiás, pinheiros e gralhas, estou pensando em gravar uns quarenta gritos diferentes, enviar pelas renas de São Nicolau lá para o país das neves e esperar que eles levem aos picos nevados e regiões desabitadas todo o temor, o desamparo, a angústia, os encontros perdidos, os braços estendidos sem abraços, a distância dolorida, as perdas cortantes e a consciência de viver em uma sociedade que arrisca vidas por um rolê no shopping.

Antes

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Marta Morais da Costa


 
me telefone
me escreva
sorria pra mim
acaricie com a voz
o meu nome
antes que seja tarde
 
me leve a passear
mãos dadas
sorriso leve
olhos na paisagem
coração aberto
antes que seja tarde
 
me conte segredos
exponha críticas
abrindo fundas chagas
de revelação
e velhos desgostos
antes que seja tarde
 
me ame
na cama
na grama
no tapete da sala
no leito de sempre núpcias
antes que seja tarde
 
ria dos meus defeitos
chore de alegria
confirme seu amor
ilumine a escuridão
próxima
antes que seja tarde

Vento

Marta Morais da Costa

 
Vento que balança as palhas dos coqueiros
vento que encrespa as ondas do mar
vento que assanha os cabelos da morena
me traz notícia de lá
(Prece ao vento, de Luiz Fernando Câmara, Gilvan Chaves e Alcy Pires Vermelho.)

– Hoje o vento está para chuva, disse a mãe.

– Mas o rádio falou que vai ter sol, mãe! , retrucou sem titubear Julieta.

– Eu sei que a moça do tempo falou, mas é só olhar para o céu. Vento mais nuvem rabo de galo não dá outra. Até amanhã será uma chuvarada…

Julieta nada falou, mas confiava mais na meteorologia. Afinal, havia aprendido na escola o valor da ciência e a fé no progresso.

A mãe voltou à costura. Estava cansada, os olhos doíam, mas sentia muito prazer em costurar vestidos para a filha, Sempre inventava um tipo diferente de mangas, às vezes alterava o modelo do corte da saia, a posição dos botões, as fitas, o formato dos decotes e, sobretudo, as nervuras. O resultado de tanto trabalho a deixava tão realizada! Ainda mais que no corpo da filha qualquer roupa caía bem. Parecido com ela: quando moça não tinha páreo para sua elegância. Fosse na missa, na matinê no Cine Palácio, na visita às amigas, nas festas de aniversário, no baile da Sociedade 7 de Abril. Procurava um jeito modesto de olhar, meio cabisbaixa, mas, como uma onda de admiração, os olhares dos outros atravessavam sua modéstia e batiam forte em seu coração orgulhoso.

Um rápido cruzar de nuvem carregada toldou suas lembranças. A vida difícil e o tempo consumiram aquele pequeno orgulho e a modelagem de seu corpo. Hoje os quadris largos e o andar inseguro soterram a elegância juvenil. Mas sua filha, ah, tão linda, apaga esse desgosto!

Corta, alinhava, costura, desmancha, costura novamente, coloca os aviamentos finais. Está nessa labuta há três dias, mas o resultado certamente ficará bom.

– Mãe, vou sair. Até a casa da Nieta. Volto logo.

Sozinha, a mãe coloca no trabalho maior atenção. Ouve-se apenas o ritmo descompassado da agulha da máquina, ligando bobina e lançadeira, cumprindo o percurso que a mão desenha. As horas convertem-se em minutos. O vestido toma forma e encanto.

Aos poucos, enquanto as mãos enfrentam a tarefa de terminar a costura, o pensamento dança entre lembranças ao som da máquina de costura. Tia Filomena ocupou de imediato o nascer da memória: aprendera com ela a costurar. Ainda adolescente fora morar na casa da tia por alguns meses, “pra mode aprendê as custura”, segundo a mãe. Chegou ressabiada, com a sacolinha de roupas poucas e já gastas, com o jeito de menina da roça, olhar baixo, magrela, sandálias rotas. Tia Filomena a recebeu como filha: para aprender, para trabalhar, para receber conselhos e corretivos. No começo, as mãos mal controlavam os anéis das lâminas da tesoura e muito menos a direção do corte. Insistia, refazia, ensaiava os moldes em papel, firmava os pulsos. Aos poucos, juntando as duas paciências, ela e a tia começaram a trabalhar em dupla. Do alinhavo à costura final, cada uma fazia uma parte. Os vizinhos começaram a gostar das roupas que saíam da Filomena: saias de organdi, vestidos de chita e flanela, camisas de algodão, blusas de seda.

A máquina parece conversar com as lembranças da mãe: o tecido do vestido engancha-se na teia dos pensamentos e o passado redesenha-se a cada ponto e corte. O prazer de apender é agora o de criar e fazer: tia Filomena, que Deus a tenha, sempre soube que a menina franzina se tornara mulher de valia por sua graça e ajuda.

Voltou outra para a casa de seus pais. Ali sentiu que sua vida estava em outro lugar e foi embora para a cidade no carro de tio Anselmo para trabalhar na loja dele, vendendo coisas de enfeitar a casa. Enquanto vendia, sonhava com a sua casa, a família que iria criar, o marido de quem cuidar. Não sonhou muito. A realidade veio na pessoa do Antônio, boa pinta, operário da fábrica de autopeças, papo firme.

A máquina de costura silencia para ouvir um suspiro profundo. A mãe é tomada por uma lembrança morna de desejo. Ah, que rapaz cheiroso! Aquele sorriso infantil somado ao olhar de menino travesso mudou o rumo de sua vida. A primeira camisa que fez para ele teve que passar por umas cinco ou seis provas porque o melhor da testagem era deixar a mão escorregar pelo tecido das costas em forma de carinho com se fosse uma investigação de falhas na costura. Tinha de acabar como previsto: altar e cama.

O que ficou apenas no desejo foi a família grande, de muitos filhos. O tempo e o desamor fizeram da mãe mais uma peça defeituosa, descartada na lixeira da fábrica. Em uma das curvas da vida se viu sozinha mais Julieta. Mas a mãe não dá tempo para a tristeza. A máquina volta a ritmar o trabalho e o vestido remexe-se sobre o calcador, espalhando-se sobre a mesa e enxotando as lembranças de volta ao passado.

Julieta retorna antes de o trabalho estar pronto. Ao passar pela porta do quarto de costura, lança um olhar despreocupado, mas de imediato suspende a respiração e o olhar. O vestido é um primor! Nem tem tempo de segurar a autocensura: as amigas iriam morrer de inveja! Nieta, Bibi, Aléssia, Ciça, todas iriam querer um parecido ou igual. Mais forte veio o olhar de admiração do Alex. Julieta sorriu, prevendo um casinho de provocar carinhos e, quem sabe, ardências menos infantis.

– Mãe, que lindo! Posso provar?

– Ainda não terminei, Julieta. Faltam os acabamentos.

Percebendo a ansiedade da filha, consente. Julieta roda o quarto, expande-se para a sala, usa todo o corredor, desfilando a la Giselle, contente de si, agradecida à mãe, fazendo planos.

A noite toda a casa parecia estremecer com a ventania: janelas, portas, paredes. A tarde traz a tormenta, a inquietude e mais temor. Fechadas em casa, mãe e filha, correm a socorrer goteiras, a reforçar janelas, a impedir a água de passar sob as frestas das portas.

De nada adiantou: a casa não resistiu ao ciclone bomba e desabou. Na correnteza da enchente ficou a boiar, desvalido, de braços abertos, saia em roda e todo ataviado um lindo vestido vermelho, vazio de sua dona e da fada de mãos habilidosas que o criara.

“Vento diga, por favor,
aonde se escondeu o meu amor.”

Minha primeira live em tempo de epidemia ou A primeira live a gente nunca esquece

Marta Morais da Costa

Na placidez atemorizada dos dias de quarentena, o tempo escorre lentamente e os dias parecem mais longos. Nos vazios criados pelo estar constantemente em casa, surgem oportunidades e ânsia de experiências diferentes. Na tecnologia capaz de aproximar pessoas isoladas em casas diferentes, surgem recursos que sustentam ideias e ações de aproximação. Esses ingredientes combinados justificam o novo espetáculo chamado “live”, o já conhecido “ao vivo”.

O termo e o fato se tornaram corriqueiros e as pessoas abrem bocas desmesuradas para anunciar a novidade: a laaaaive.

Como tudo na vida da comunicação nasce, tem sucesso, redunda-se, satura e morre, viveremos o ciclo da novidade com bastante rapidez. Tão logo voltem os dias supostamente felizes, nada superará o encontro real de olhares. Ficarão resquícios do que vimos e ouvimos nas telas, pois a solidão e a distância são humanamente esporádicas.

O vivo abstrato e mediado por recursos tecnológicos é frio, tem apenas duas dimensões, de vez em quando apaga, trava, não me responde no tempo adequado do diálogo presencial. A oralidade transmitida tem atrasos, descompasso de movimentos labial e de som, são seres esquartejados, colados em álbum de figurinhas moventes, parecem marionetes humanas (realizando com a diferença de século e meio o sonho de Meyerhold!)

Mas quem não tem vida normal na clausura, caça com laives: abundantes, diversificadas em temas e semelhantes no formato. Como presas fáceis, capturadas pela impossibilidade de deslocar-se a lugares de convivência coletiva, podemos passar o dia todo a assistir as laives no compasso estranho de real conversação ou em formato histórico do já acontecido no Youtube. Umas funcionam como desfastio, outras como aprendizagem. Outras…bem…não funcionam simplesmente.

Participar de uma, no entanto, tem o encanto da novidade, o desafio do nunca feito, a exposição aos inesperados (sejam de fala ou de tecnologia). Uma vivência com todas as qualidades e defeitos da vida: a busca de saídas, a procura de contatos humanos, o compartilhamento, a exposição de ideias e valores, os encontros e desencontros.

Em parceria com Etel Frota e Vera Mussi, enfrentamos o tema “A literatura como remédio para uma epidemia”, uma fala a três, patrocinada pelo Departamento Cultural do Clube Curitibano. A discussão trouxe aos participantes uma reflexão sobre os modos como são recebidos os textos pelos leitores e o uso que dele fazem durante um período de quarentena. Também foi explorada a questão relativa aos estágios de enfrentamento mental durante esse período quase (às vezes totalmente) solitário e tenso, que põe à prova disposições diferentes de enfrentamento. Na conclusão, a literatura apareceu como uma forma múltipla, tanto em personagens, culturas, temas e narrativas. Pela diversidade própria do gênero, ela tem condições de atingir de modo diferente, leitores diversificados. Mais do que isso, o isolamento permitiu a exploração de outros suportes para o texto literário, seja o digital ou o audiolivro.

Não se pode também esquecer a importância das narrações orais que ocuparam muitos espaços das lives de diferentes leitores e narradores orais, amenizando a tesão, trazendo a público histórias e autores, provocando olhares diferentes sobre a realidade e a própria literatura.

No meu percurso profissional estive sempre disposta a aventuras. Fazer uma live nas condições atuais representou mais um desafio e me lembrou uma pequena crônica que escrevi sobre outra experiência que impactou o modo com que passei a mediar saberes e textos literários enquanto professora. A crônica é de 2006 e o passar do tempo apenas mudou a tecnologia. O assombro e a vontade de experimentar continuam os mesmos. Para quem tiver a paciência de ler, segue a transcrição do texto, tal como foi publicado pelo jornal “O Estado do Paraná”, que apoiava e divulgava uma crônica semanal sobre leitura e cultura (esta, sim, uma atitude que assombra pela ausência na atualidade).

A PRIMEIRA MULTIMÍDIA A GENTE NUNCA ESQUECE         

As aventuras de um professor em sala de aula só podem ser bem compreendidas à distância. Enquanto se dá a travessia pelas águas conturbadas dos deveres do magistério – preparação de aulas, reuniões, projetos, relatórios, infinitas leituras e correções e reescritas, além das prioritárias atividades na tarefa de transmitir/discutir o conhecimento – pouco tempo sobra para uma reflexão sobre o fazer docente e seus instrumentos.

            À medida que o tempo se esvai na sucessão vertiginosa dos números de horas, meses e anos, tomamos consciência das mudanças pelas quais passaram nossos dias em sala de aula, bem como da maneira como assimilamos, ou não, as teorias e os paradigmas, também estes em sucessão vertiginosa. A imersão no tempo presente costuma distorcer a proporcionalidade e mérito de fatos, pessoas, atitudes e pensamentos. Não seria diferente com a escola e seus agentes.

            Não faz tanto tempo assim, a tecnologia mais avançada em sala de aula era representada pelo flanelógrafo e pelo projetor de slides. Não faz tanto tempo assim, um sinal de modernidade era a projeção de transparências (lâminas, em algumas regiões do país) em preto e branco e, suprassumo dos encantos e despesas, a colorida! A era digital rapidamente jogou para o canto escuro das antiguidades esses materiais. Hoje, é com certa sensação de vergonha – e encontrando um ar de mal disfarçada comiseração de nosso interlocutor – que pedimos um retroprojetor para ilustrar, definir melhor, economizar nosso trabalho docente.

            As universidades fizeram do instrumental mulmidiático um fator de sedução para atrair novos alunos.  Quem organiza eventos se prepara com muitas unidades do já popular datashow, escolhendo salas especiais, porque sabe que palestrantes e conferencistas não abrem mão dessa tecnologia. As escolas, no entanto, ainda amargam essa deficiência a mais.

            O computador, já sabemos, não veio apenas para facilitar o trabalho docente e a aprendizagem discente. Trouxe consigo um novo modo de ler e nova textualidade. Provocou uma enxurrada de estudos e desencadeou uma reflexão intensa sobre a possibilidade de desaparecimento do livro. Passado o período terrorista, lidamos na atualidade com novas realidades em sala de aula. A tecnologia permitiu aos docentes revelar não o domínio sobre a máquina e a inventividade de formas visuais: demonstrou com grande clareza as deficiências cognitivas e didáticas dos utilizadores de multimídia.

            Tenho em minhas retinas da memória a imagem da primeira apresentação em datashow a que assisti. Para iniciar a apresentação, foram necessários um complexo trabalho técnico de montagem e, durante a palestra, a permanente assistência de um especialista em informática. Mas a revelação das imagens e a descoberta das possibilidades comunicativas e sedutoras daquela apresentação marcaram profundamente os neófitos como eu. O novo brinquedo, ou melhor, a nova tecnologia permitia transformar em imagens idéias e, sobretudo, relações inumeráveis. Além de trazer um certo clima cinematográfico ou televisivo para o ambiente radiofônico da sala de aula.

            Muitos e muitos slides depois, já me é possível utilizar e conviver com o instrumental (hoje mais simplificado e banal), além de produzir alguma análise sobre seu uso docente.

            Em ensaio de 1996, José Dieguez atribuía às imagens três funções básicas: a funções informativa, persuasiva e de catalisação de experiências. Na primeira, abria para quatro subgrupos: o primeiro realiza a substituição de uma realidade concreta, o segundo trata de categorizar os objetos, o terceiro explica e organiza as relações entre objetos, e o quarto facilita a amostragem de informação, porque apenas traduz a linguagem verbal em imagem.

            Já a função persuasiva está apoiada em dois tipos de imagem: as motivadoras e as estéticas. A função final, a catalisadora, eu a vivi naquele primeiro contato com a possibilidade de organizar as imagens para transformá-las em material vivo, móvel, docente.

Mas, ao longo de minha experiência, tenho assistido a um uso preferencialmente informativo e pouco estético dessa tecnologia. A cor, as formas, os recursos de som e movimento são utilizados muitas vezes em si mesmos. A fala docente que os acompanha tornou-se repetição da imagem. Não foram poucas as ocasiões em que o professor leu o texto tal qual inscrito na imagem da tela. A função de facilitação redundante, concretizada no uso da multimídia como um retroprojetor animado e colorido, sempre me dá a impressão de uma rubra e macia cereja enfeitando um bolo insosso e pétreo. Enfeite tecnológico para criar um ambiente de modernidade, mascarando conteúdo e prática docente primitivos, deficitários e enganadores.

A associação imediata que um leitor crítico dessa nova linguagem, proposta pelo computador, faz é com a televisão, cheia de recursos de imagem, cor e movimento, tratando do óbvio com obviedade, persuadindo pela redundância, estimulando o olhar catatônico com uma enxurrada de signos visuais primários.

Quando o ensino supervaloriza a tecnologia (por mais rápida e universal que possa ser) em detrimento do saber, podemos estar seguros de que o conhecimento foi se alocar num canto escuro da biblioteca, em livros ainda fechados, fáceis de abrir e movimentar porque não precisam de cliques e teclas.

(crônica publicada em “O Estado do Paraná” em 10 de março de 2006)