Despedidas

Marta Morais da Costa

Foto por Tima Miroshnichenko em Pexels.com

A porta de saída. A chave. O portão em seu chorar habitual. A rua deserta. A chuva faiscante nas folhas e no asfalto.

Passos seguros. A bolsa colada ao corpo. O guarda-chuva criando um halo de proteção. Braços banhados no gotejar das varetas. Sobe a umidade pelas solas dos sapatos. Apressa-se. Até a marquise próxima. Mais alguns metros. Equilibra desajeitadamente o guarda-chuva, a bolsa e o celular. Pede um táxi.

Tem duas horas que sua vida desabou.

A espera vã por um telefonema. Estou chegando. Abra a garagem para mim. O toque no botão, a porta abrindo, o carro entrando. Depois era correr para os braços, as palavras, o beijo de chegada. Só então a vida retornava. Sem trabalhar, o dia era longo. A distância era sofrida em fogo de saudade. Ele no escritório. Ela embrulhada em lençóis, sem vontade, sem ação.

Currículos distribuídos. Telefonemas em vão. Mensagens negativas. Nada, ninguém, nenhum. A fila do desemprego. A angústia da inação. A lembrança do trabalho. A constância do dinheiro pingando na conta. A segurança do emprego. As amizades, as conversas, o sentir-se útil. Mesmo que utilizada.

O caos repentino, as perdas, a demissão. Na cambalhota da história, a rua, o porta afora, os dias iguais e vazios. A inatividade a levar de roldão o entusiasmo, o riso, a disciplina, os objetivos. Aos poucos, o desapego, o desleixo e a indiferença.

O marido dobrando os dias. O marido dividindo o salário. O marido desapegando-se dela.

Mais dias e mais dias: a vida perdeu seu curso, o amor perdeu a força, a união gastou seus elos. A mesmice envolveu o tempo em mortalhas. Eram duas solidões a ocupar a mesma cama, os mesmos móveis e o espaço sufocante de uma casa sem ar.

Não tardaram as palavras viperinas, as janelas fechadas, os olhares desconfiados de vizinhos.

E a casa cercada de muros, a morte grassando no bairro, a tevê em enchentes de más notícias. A vida sem sol, sem saúde, sem saída.

Até aquela noite. Palavras duras, com sabor de sangue. A verdade do amor em agonia e a impossibilidade do afeto. Em volta, ruínas do que foram um dia luas de carinhos e clarões de felicidade.

O táxi estaciona a seu lado. Entra e pede rodoviária, por favor. Também a cidade está perdida. Banco de trás, silêncio, quase escuridão. A lágrima não tem sal. Talvez apenas a chuva que a submerge no desastre de um tempo sem futuro. Talvez.

Fábula do lobo e da cabra

Marta Morais da Costa

Na montanha, as cabras se dispersaram, cada qual em busca de novas plantas rasteiras para se alimentar e cumprir sua sina de sobrevivência e produção de leite.

Atrás de um robusto pinheiro, o lobo as observava, faminto e paciente. Sabia que era comum alguma cabra distraída afastar-se do rebanho e colocar-se voluntariamente em perigo. Seus ancestrais eram exímios caçadores e ensinaram como agir diante da imprevidência caprina.

Naquele dia, o sol forte deixava um rastro de cansaço e sonolência na paisagem e nos animais. Uma cabra experiente aconselhou à jovem e distraída cabra a precaver-se dos lobos e a não se separar do rebanho.

Mas cabras jovens são arrojadas e desobedientes. E, além disso, logo ali, entre pedras e um fio d’água que descia da montanha, havia um tufo de erva macia e apetitosa, como que a chamar por ela. A jovem cabra dirigiu-se para moita e ficou escondida do rebanho pelas pedras.

O lobo percebeu que era sua oportunidade de almoçar. Sorrateiramente aproximou-se. A cabra só percebeu sua presença quando já estavam frente a frente.

– A grama está macia, senhorita? , perguntou o lobo.

A cabra não titubeou:

– Muito macia, senhor! Quer dividir comigo?

– Não, obrigado. Não como ervas. Prefiro carne.

– Faz mal, senhor. Carne envelhece e pode causar vários problemas de saúde, inclusive tumores malignos.

O lobo ficou surpreso. A cabra não havia se assustado com sua feroz aparência. E ainda tinha o desplante de lhe dar conselho! Inclusive usava uma linguagem complicada…

– Engana-se, mocinha.  Meus antepassados já comiam carne e, que eu saiba, nenhum deles morreu dessas palavras difíceis aí.

A cabra percebeu que o lobo ficou assustado com o que tinha ouvido. Aí resolveu exagerar. Abriu bem os olhos, franziu os pelos da testa, caprichou no cabrês e disse candidamente:

– Veremos o que o senhor dirá quando suas entranhas forem sendo destruídas e a dor o fizer uivar dia e noite, sem remédio. Dizem que são doenças terríveis, daquelas que só se deseja para o pior inimigo…

O lobo começou a duvidar de sua fome. E se ela tivesse razão? Nos tempos modernos tudo havia mudado. Quem sabe os lobos atualmente não seriam mais vulneráveis à carne? Quem sabe as cabras também fossem diferentes, com um organismo mais envenenado e comer sua carne seria perigoso?  

Na dúvida, afastou-se e desapareceu entre os pinheiros.

A cabra voltou tranquilamente a degustar a moita verde e macia.

Morais da história:

A informação, quando bem utilizada, salva vidas.

Ser jovem não significa ser ingênuo.

Os tempos mudaram, assim como as fábulas.

Foto por Roberto Lee Cortes em Pexels.com

O que será

Marta Morais da Costa

Foto por Rezha-fahlevi em Pexels.com

Já levantava da cama com a língua envenenada. Expelia um “bom dia” que sabia a cianureto. Os olhos, geralmente atrozes círculos vermelhos e íris dilatadas, jogavam sobre coisas e pessoas o ácido muriático armazenado em noites de insônia. As mãos, enregeladas, eram hélices em movimento tentando afincar garras e unhas em qualquer corpo sólido interposto ao seu caminhar. A cabeça coroava o píncaro da arrogância e da pretensão.

Abriu a porta dos fundos e lançou-se ao quintal, farejando rastros da noite agonizante e caçando razões para alimentar sua fome de ações turbulentas, motivadas por nenhum sentido e sem objetivos confessáveis.

Chutou pedras, latas e tijolos. Catou cavacos e galhos secos para acolchoar os lugares possíveis de andar, de sentar ou descansar. Aos outros, o pior. Um varapau lhe servia de lança para cutucar ninhos, desfazer frutas, desbastar folhas das árvores. Sanhudo e beligerante, começou o dia a seu modo: em pé de guerra.

Trouxe para a casa e a rua, a aguda e inescapável violência. Reprimendas, caras feias, palavras azedas e gestos indignados eram combustível aditivado para sua razão de existir e agir.

O tempo lhe trouxe a solidão e o repúdio. A comunidade preferiu preservar-se e garantir frestas de paz.

Isabel contou para Raul que disse ao José que avisou ao Fernando que trocou mensagens com o Luiz que comunicou à Gabriela que resolveu interromper a corrente: o dia se anunciava em trevas, o ar rarefeito lembrava fumos de enxofre, tudo era culpa dele, o Cujo, o que trazia guardado no dentro o desejo de aniquilar – pelas armas, pelo descaso, pela língua e por atos – as amedrontadas manifestações de sobrevivência e de afeições.

Gabriela sussurrou para Vitória que murmurou ao ouvido de Sofia que repassou a Francisco que confidenciou ao Álvaro que cochichou a Simone uma mensagem de convocação à resistência. Nem precisou de brisa a espalhar o desejo de agir. Aos poucos cada qual trouxe ao grupo o que sabia fazer de melhor: cantar, escrever, discursar, guardar segredos, destilar confiança, clarear obscuridades, desvendar intenções, cumprir acordos, despertar esperança.

Quando a noite instalou no céu a lua dos sonhos, uma nova história começou a nascer. Nela não haveria o protagonismo plutônico. O raio da novidade iluminou céu e, mesmo sabendo das agonias a ser vividas, ninguém titubeou, temeu ou desistiu.

Mal a luz atravessou as soleiras, um a um, eles foram povoando a praça e, congraçados plantaram árvores, desembaraçaram de galhos os lugares, restabeleceram velhas normas de convivência. E se prepararam para dizer não e enfrentar as Fúrias.

Sóis e luas se sucederam, indiferentes. No pó, que o tempo vai espalhar, continuam a circular grãos beligerantes. No presente, os venenos ainda se impõem. Amanhã, quem sabe, os perfumes irão impregnar a brisa.