O escritor

Marta Morais da Costa

Era um escritor desorganizado que escrevia à mão em folhas soltas. Alguns textos terminavam em uma só folha. Outros se estendiam por várias, que ele nem se dava o trabalho de numerar.

Espalhava os escritos pelo escritório: sobre a mesa de trabalho, sobre a poltrona de leitura, sobre o armário. Dentro de gavetas, pastas e caixas.

Depois recolhia os textos desordenadamente. Assim, a história de um pato manco continuava na história do menino alemão que viajava pelo Alasca. A história do navio fantasma virava de repente a do lobo faminto, perdido na floresta.

Por isso, nasciam histórias incríveis, que surpreendiam os leitores. No entanto, era um escritor famoso porque suas histórias pareciam relatos de sonhos.

E ele era amado por isso, porque os leitores esperam muitas vezes que o fantástico venha preencher os vazios da vida real.

Agora, o escritor está se aperfeiçoando. Escreve frases isoladas em pedaços de papel que espalha pela casa toda.

Foto por cottonbro em Pexels.com

Irene Vallejo

Você acha que o mal é um aliado da literatura?

Acredito que a literatura visa explorar o nosso interior, tanto os espaços luminosos quanto o subsolo escuro. Não creio que haja uma aliança entre o mal e a escrita, mas entre a criação e o humano em todas as suas facetas. Cada artista inventa o seu próprio percurso e mapeia os territórios que mais o fascinam. A bondade, como o mal, tem complexidades interessantes. Nosso Quixote, por exemplo, mergulha nas contradições de um personagem que aspira a ser justo e ajudar pessoas carentes, mas que comete grandes erros ao tentar colocar suas ideias em prática. O Idiota, de Dostoievski, é seu herdeiro. Uma literatura que só se interessasse pelo mal seria tão pobre quanto a literatura exemplar.

E aqui derivamos outro debate contemporâneo: a corrente que defende eliminar dos clássicos as palavras e ideias que dos nossos parâmetros atuais achamos inadequadas, especialmente os livros infantis e juvenis. Na minha opinião, é preciso aspirar a que os jovens entrem em contato com criações complexas, não com manuais de conduta. Personagens malignos são um ingrediente crucial nos contos tradicionais, para que as crianças aprendam que o mal existe. Mais cedo ou mais tarde eles terão notícias dela (dos valentões que os assediam no pátio da escola aos tiranos genocidas). O maravilhoso e perturbador Flannery O’Connor escreveu que aquele que “lê apenas livros edificantes está seguindo um caminho seguro, mas um caminho sem esperança, porque lhe falta coragem. Se por acaso você lesse um bom romance, saberia muito bem que algo está acontecendo com ele”. Sentir algum desconforto faz parte da experiência de ler um livro; há muito mais pedagogia na inquietação do que no alívio. Podemos colocar toda a ela vai parar de nos explicar o mundo. literatura do passado sob a faca para cirurgia plástica, mas então  ela vai parar de nos explicar o mundo. “

Parte da entrevista de Irene Vallejo publicada em :

https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,best-seller-mundial-narra-a-espetacular-historia-do-livro,70004120020

A espanhola Irene Vallejo é autora de “O infinito em um junco” sobre a história do livro.

Que diriam os fariseus sobre Monteiro Lobato?

Crença

Marta Morais da Costa

Atrás de qualquer porta

a lua pode te seduzir.

No muro que te cerceia

a curruíra faz seu ninho.

Na paisagem deserta

a flor oculta as pedras.

Na árvore seca

a cigarra vem cantar.

Por trás da pálpebra

o olho busca a luz.

Assim o tempo que te corrói:

preserva em um átimo

nítidas lembranças

e a frágil esperança

da sobrevivência,

fortuita,

aleatória.

Livro

Foto por rikka ameboshi em Pexels.com

 

 

 

Todo livro principia

no ponto de encontro

da ponta com o papel.

 

Lápis ou caneta,

pouco importa.

 

Qual broca na rocha

a ponta cria o ponto

de onde jorram águas

                ainda impuras,

represadas,

embebidas

de matéria orgânica

que fertiliza a escrita

na enchente das páginas.

 

Agricultor zeloso,

o escritor se entrega

ao solo copioso

a separar o joio

– que indiciará a realidade –

enquanto faz do trigo

o pão das utopias.

 

Marta Morais da Costa

Ética

Marta Morais da Costa

Foto por Karolina Grabowska em Pexels.com

Acreditava no amor, aquele que é doação, sinceridade, respeito e resiliência.

Mas continuava solteiro. De todas as namoradas, nenhuma cumpriu a lista de qualidades exigidas.

Acreditava na amizade, nas trocas, na companhia para todas as horas.

Mas vivia encerrado em casa, solitário. Amigos com problemas e sem humor eram deixados de lado.

Acreditava na ciência. Toda a ciência: a que cura, a que moderniza, a que inventa. Até aquela que planeja e constrói coisas feias.

Mas caiu nos braços da superstição e da magia. A ciência havia trazido a guerra e a ganância.

Acreditava na educação como impulso para vidas marcantes.

Mas doou todos os livros, rasgou diplomas e vendeu computador e celular. A educação desejada só vai chegar quando ele não mais estiver sobre a terra.

Acreditava na felicidade plena em comunhão com a natureza.

Mas morava em um apartamento de 30 m² de frente para outro apartamento de frente para outras janelas fechadas de frente para paredes sem reboco.

Acreditava em todas as igualdades e em todos os méritos.

Mas descobriu o preconceito, Medusa indestrutível.

Acreditava na paz de espírito com a chegada da velhice.

Está morrendo aos poucos entre gemidos e dores: gasto, roído e triturado.

Não acreditava no poder da mentira e da fraude.

Viveu e viu.