Só quem já percebeu o riso escarninho com que o interlocutor recebe a informação “Sou professora. De leitura e literatura.” sabe o que é uma sociedade desprovida de atenção e compromisso com a informação, o conhecimento, a cultura e a capacidade de compreender o mundo a partir de visões plurais.
Primeiro porque sempre se considera leitura sinônimo de alfabetização. A relação tem, é claro, sua história e pertinência. Até a década de 60, a leitura passava mais pelas metodologias de aprendizagem de letras do que por reflexões filosóficas, históricas, psicológicas, sociológicas e linguísticas. Com as teorias da recepção foram crescendo e se intensificando as áreas conectadas aos estudos sobre leitura, interpretação, conhecimentos prévios, cultura e desenvolvimento de inteligências. A leitura ganhou foros de cidadania, de espírito crítico, de relações plurais e de pensamento inovador.
E o Brasil, como em muitos setores mais, viveu um novo achamento da terra: a leitura era um território ainda ágrafo. Nova bandeira passou a tremular nas lides universitárias e nas salas de aula e centros de cultura: é preciso criar um país de leitores. Despejou-se sobre os bem intencionados bandeirantes um enorme volume de escritos, de teses, de ações, de feiras e congressos. As reações foram quebrando algumas barreiras, mas muros e fortalezas ainda resistem. Os números das pesquisas apontam um andar sonolento e desestimulante rumo ao não-me-importismo e mimimis irresponsáveis.
Vamos com Ana Maria Machado, retratando essa realidade amarga no livro Silenciosa algazarra, quando trata da outra leitura, a que não é alfabetização: “É outra a leitura que tantas vezes parece não ter importância e que, por isso, tem sua significação questionada e debatida nas insistentes perguntas feitas por jornalistas em entrevistas a escritores ou pelas sugestões de tema dadas por organizadores de congressos e seminários. É leitura de jornais, revistas, principalmente livros, a leitura daquilo que faz crescer. Tanto a leitura de informação aprofundada, que aumenta os conhecimentos, como a de literatura – sobretudo esta. Da primeira, é voz corrente dizer (com um ar superior e cheio de si, como se fosse verdade) que hoje em dia ela ficou inteiramente dispensável, substituída por meios de informação mais rápidos e eficientes, como a televisão ou a internet. Da literatura, desconfia-se porque se diz que ela é elitista, um luxo, coisa de intelectual de óculos que não faz sucesso na hora de namorar, algo que não tem nada a ver com a vida das pessoas, toma tempo de atividades mais interessantes e outras bobagens no gênero.” (p.13-14)
São comentários e comportamentos que tratam a cultura e o desenvolvimento de pessoas – e por extensão do país em que habitam – como se fosse um jogo de futebol em que apenas dois times concorrem (os leitores e os analfabetos funcionais) a um prêmio consumista e imediato (dinheiro, teres e haveres, erudição vazia e pernóstica). Um “ou isto ou aquilo” fora de tempo em uma sociedade plural e uma cultura diversificada. Em especial, quando se confunde uma rima que não é solução: leitura e literatura. Um mal entendido que não se dissipa porque convém aos seres de má vontade: “não leio literatura porque ela não serve para nada”.
Tudo mais mal que bem: adultos em geral são pessoas de caráter formado (assim creem), não dispostos a mudanças (comodidades são conquistas) e avessos a desafios (tá bom como está). Nem se queixam mais dos filhos mimados e do conhecimento atrasado. Afinal, se der para curtir o final de semana, as férias, a televisão, para que estudar? para que ler? para que suportar essa chatice?
Mais um pouquinho de Ana Maria Machado, a escritora e uma das muitas defensoras da leitura e da literatura como formadoras de autonomia pessoal: “Lê-se pouco no Brasil porque não se acha que ler é importante, não se tem exemplo de leitura, existe a sensação de que livro é uma coisa difícil, trabalhosa, não compensa o esforço. Só se faz obrigado. Um sacrifício penoso, feito andar em esteira de ginástica (…). No entanto, a realidade cotidiana, ao longo da vida, me ensinou outra coisa. Se é verdade que não é comum que um adulto que nunca leu consiga, de repente, do nada, descobrir as delícias da leitura, também é verdade que não conheço um único caso de criança alfabetizada que, tendo acesso a livros bons e interessantes, deixe de encontrar algum que a atraia muito e, a partir daí, queira ler mais e mais, sem parar. A curiosidade é instintiva. A constatação do encantamento, advinda do alimento da imaginação e do prazer da inteligência em atividade, garante o resto.” (p.16)
O texto de hoje é apenas um sinalizador: muitas paragens ainda virão nesse trabalho de Sísifo que é a formação de leitores.
SERVIÇO: MACHADO, Ana Maria. Silenciosa algazarra: reflexões sobre livros e práticas de leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Antenor está empregado numa fábrica de móveis. Seu trabalho consiste em cortar e lixar a madeira para a fabricação de móveis. Telefona para casa no meio do expediente. Lúcia está na cozinha, preparando o almoço dos filhos. Ao ouvir o telefone, assusta-se. Confere as horas e pergunta-se quem poderia ser. A voz de Antenor a deixa mais assustada ainda. Ele diz que não está se sentindo bem e que vai ao médico.
De imediato, histórias de acidentes, infartos, derrames enchem a cabeça da mulher. Pede a ele que telefone avisando o que o médico vai dizer e que venha para casa o mais cedo possível, para deitar, descansar e recuperar-se. Ele concorda e desliga o telefone.
Lúcia volta à cozinha. Agora os preparativos ficam mais difíceis. Nem enxerga bem as recomendações das embalagens,. Troca as louças de lugar, sem saber bem o que quer fazer com elas. Desliga o rádio: as palavras do religioso, a falar de pecados e de Jesus agora não fazem muito sentido. Sente falta do sal para temperar o alimento. Mas havia esquecido de anotar na lista de compras do supermercado. Nervosa, toma o telefone para falar com a vizinha: quem sabe consegue um pouco de sal. Mas não lembra o número. E as crianças devem chegar logo da escola… Um cheiro desagradável chega a suas narinas. As batatas! Agora, precisa inventar outro prato. Quem sabe não vai lembrar alguma receita rápida? Na rua, o frear do ônibus anuncia a chegada dos filhos.
Valdelúcia entra em casa disposta a ir imediatamente ao quarto, largar sobre a cama os materiais do cursinho e telefonar para o namorado, desmarcando o encontro da tarde. A prova do ENEM no final de semana está lhe tirando o sono, a fome e o amor. Precisa garantir boa nota para tentar o vestibular da universidade pública. Seu pai não pode arcar com mensalidades de uma particular. Anda assustada com a redação: soube de alguns exemplos ridículos que o professor ironicamente comentou em sala. Não quer dar vexame. Na cama, continuam espalhados os livros que havia consultado de manhã bem cedo, antes de sair. Separa os que trouxera da biblioteca, põe sobre a mesa de estudos os CDs de música emprestados pela amiga, e voa para o telefone no corredor perto da porta da rua.
Lucas dá um beijo distraído na mãe, larga os livros no meio da sala, deita-se no sofá e liga o televisor. Seu desenho animado preferido já vai pelo meio. Em nada diminui, no entanto, o interesse e curiosidade do menino. Entre um efeito especial e a sonoplastia adequada aos socos e explosões que pipocam na tela, tira o material da mochila e de barriga para baixo, a maior parte do tempo com os olhos no televisor, lança olhadelas nas páginas escritas e reproduz nos exercícios o que a professora havia explicado durante a aula. Sua pressa em terminar os exercícios se justifica: mal engolido o almoço que se anuncia pelo cheiro apetitoso que vem da cozinha, sairá a brincar com Felipe, da casa ao lado. Bola e videogame encherão a tarde e o tempo vai escoar rapidamente. Lúcia, da porta da cozinha, olha o menino, orgulhosa pela dedicação que o filho dá aos estudos: nem almoçou ainda e já está mergulhado nos livros! Este menino vai ser médico, no mínimo!
O almoço está na metade quando Antenor chega. Traz o semblante abatido. Queixa-se de fortes dores de cabeça. O médico não descobriu a causa, mas lhe receitou vários remédios, de nome difícil, mas que, segundo o doutor, o deixariam curado. Bem que tentou guardar as palavras do médico explicando o modo como tomar os remédios. Era uma conversa de colheres e horários. Pelo menos, o médico havia escrito tudo. Poderia ler quando precisasse, pensou Enquanto se prepara para almoçar, pega a receita. A letra é um garrancho só. Vai ter que telefonar ou passar novamente no consultório para ouvir as explicações. Não é só isso que o incomoda: pensa no dia de trabalho perdido. Havia sido tão difícil conseguir aquele emprego! Não poderia perdê-lo agora! Trabalha muito e espera uma promoção para breve. Até está buscando aprender um pouco mais. Valdelúcia o ajuda e lhe traz algumas informações, tiradas da biblioteca e de uma tal interné. A dor de cabeça aumenta. Deita-se, fecha os olhos e fica a ouvir os barulhos da casa, em plena tarde.
Enquanto Antenor tenta acalmar a dor e a angústia, Lúcia liga o rádio para ouvir o programa de fofocas sobre artistas de televisão; Valdelúcia estuda no quarto, muda com lentidão as páginas da apostila por causa da dificuldade em compreender as idéias das frases; Lucas joga futebol alegremente e de vez em quando atravessa o gramado da praça em busca da bola, muito próximo da placa em letras vermelhas e exuberantes: NÃO PISE NA GRAMA.
Na lida diária dessa família, futuro é apenas mais uma palavra abstrata. Talvez vazia.
Palestra de Edgar Morin no 3º Congresso Socioemocional LIV, realizado no Rio de Janeiro nos dias 7 e 8 de junho de 2019.
“Quando tivemos a ousadia de convidar o francês Edgar Morin para participar do nosso Congresso, não acreditávamos que ele poderia aceitar. Hoje, estamos diante de um dos maiores pensadores da atualidade, que aos 98 anos continua a impactar os educadores com suas falas”, disse Caio Lo Bianco, idealizador e gerente executivo do LIV, durante o 3º Congresso Socioemocional LIV, realizado no Rio de Janeiro nos dias 7 e 8 de junho.
Morin, antropólogo e teórico da complexidade humana, discursou para 1.500 pessoas durante cerca de 1 hora (veja na íntegra nesta transmissão em vídeo). Além de discorrer sobre a relação entre emoção e razão no pensamento complexo, falou sobre o Brasil. Citou nomes de comunidades e times de futebol, arrancou reações e aplausos da plateia: “Vi neste país muitos episódios magníficos e também terríveis desde 1960. Um Brasil das iniciativas e particularidades, de tantos esforços criativos para criar uma vida melhor mesmo com poderes que só procuram o lucro e a dominação. Esse Brasil que eu amo, eu quero saudá-lo!”, disse.
Abaixo, confira as principais ideias apresentadas pelo pensador, que abordou temas como o conceito de ser humano, as relações entre as pessoas, o papel dos docentes na educação de crianças e jovens, as mudanças na sociedade e a globalização.
Relação entre razão e emoção no pensamento complexo
“Eu quero abordar a, que é o tipo de pensamento que eu pratico e elaborei. Costumamos identificar o homem como homo sapiens, ou seja, dotado da razão, mas nessa definição clássica não há a emoção e o delírio. Mesmo um matemático com uma atividade unicamente racional sente ao mesmo tempo a paixão pela matemática. Não há razão fria – apenas talvez em alguns economistas ou tecnocratas que consideram os seres humanos como objetos nos quais podemos botar cifras. Se não, sempre temos a presença da emoção.
O ser humano é um ser de paixão, que pode ter sentimentos muito fortes que, no limite, podem levá-lo ao delírio. Cada um de nós pode participar de fenômenos de histeria quando fazemos parte de uma multidão ou se estamos em crise de uma certa loucura, algo que depois podemos nos arrepender. Essa loucura não se encontra apenas nos indivíduos, mas num processo histórico. A paixão deve ser sempre controlada pela razão. Se não, podemos sentir um amor cego por alguém que se aproveita de nós, ou viver a paixão por um líder – como um Hitler ou Stalin.
A primeira lição dialógica: é preciso ser guiado ao mesmo tempo pela razão e pela paixão, e isso é navegar pela vida. O ser humano não é apenas um fabricante ou usuário de ferramenta, um homo faber, mas alguém que vive com mitos, crenças e religiões.”
A prosa e a poesia da vida
“Do ponto de vista da vida, temos a prosa e a poesia. A prosa da vida são as coisas que somos obrigados a fazer para ganharmos o pão de cada dia. Já a poesia da vida é o que nos dá o fervor, a emoção, a exaltação, o jogo, a beleza, o fato de contemplar o oceano, as gaivotas e as praias. Infelizmente, nossas sociedades são invadidas pela prosa, mas devemos resistir delas em nossas amizades e relações humanas. Poesia na vida é fundamental. A poesia é um aspecto de emoção feliz, que nos coloca no deslumbramento e no êxtase.”
A razão e a afetividade
“A afetividade pode ocorrer no âmago da racionalidade. Precisamos promover uma razão sensível e aberta: que conhece seus limites, que aceita o que não pode conhecer – como o mistério do mundo e de coisas que fogem de seu controle –, e que aceita as contradições. Noções que podem ser contraditórias, como vida e morte, podem ser complementares, como tudo o que é inseparável. A razão sensível proporciona emoções. O pensamento precisa dialogar com a mitologia e o pensamento simbólico, por exemplo. A razão precisa ser vigilante contra seus próprios limites e sua tendência de ter certezas absolutas.”
Exploração das emoções
preciso estar atento à exploração da emoção para fins econômicos ou políticos, na propaganda ou na mídia. Muitos costumam selecionar crimes ou catástrofes, ou mostrar crianças e idosos sorrindo, para causar emoções e impulsionar determinadas ações. Há um problema da exploração e controle da emoção que provoca guerras, levanta histeria designando culpados ou excluindo minorias, sendo racista, machista e homofóbico.”
Papel das humanidades e da educação
“Percebemos qual o papel essencial da literatura, da filosofia, do cinema e das artes. O romance, por exemplo, nos comove porque seguimos os personagens e conhecemos as relações sociais, o que a ciência é incapaz de fazer. Um romance, o cinema ou o teatro nos ensinam sobre a vida.
Não basta uma educação baseada apenas na técnica e na racionalidade: a educação deve ter o papel fundamental das humanidades, que nos ensina a meditar sobre a vida e que enriquece nosso destino e o dos outros. Fui marcado por leituras e filmes, e penso que isso deve estar presente na mente dos professores. A tendência atual é diminuir o papel das humanidades e das artes para prevalecer as ciências – e é claro que devemos ter engenheiros e matemáticos –, mas o problema da cultura é muito grande por causa da dissociação entre a cultura científica e as humanidades. A reflexão da ciência não chega aos humanistas e a reflexão dos humanistas faz falta aos cientistas.
A missão do ensino é fundamental para o ser humano, já que ajuda o ser a dar o melhor de si mesmo e evitar o pior. Somos potencialmente homo sapiens, seres razoáveis e delirantes, pensantes e afetivos. Devemos buscar que esse ‘eu’ seja cultivado sempre com o ‘você’.”
Primeira conclusão: o ser humano é complexo e paradoxal
“Vamos à primeira conclusão: é preciso ter racionalidade na emoção e na paixão. A razão, a emoção e a paixão são necessárias e insuficientes. Relacionar tudo isso é essencial.
A contribuição do pensamento complexo é de salientar que pode ser aceito tudo o que parecer contraditório e paradoxal. Por exemplo: não há autonomia sem dependência. É preciso romper com o pensamento linear, aquele que liga uma só causa a um efeito.”
Segunda conclusão: devemos ensinar as crianças a questionar
“A segunda conclusão diz respeito ao ensino: a qualidade de qualquer docente deve ser praticar o eros, que é o amor, tanto para a matéria que ensina quanto pelo estudante. O professor deve lembrar que a criança é um filósofo selvagem e um poeta selvagem.
Filósofo selvagem porque é aquele que faz as perguntas fundamentais. Infelizmente, fazemos com que as crianças percam esse tipo de pensamento e se adaptem a um pequeno compartimento social. Devemos desenvolver nelas a capacidade de questionar, já que a chave de qualquer filosofia é a curiosidade. Essa capacidade poética deve ser valorizada enquanto criança e mantida em toda a vida adulta.
A criança é um poeta selvagem porque se surpreende e olha com certo deslumbramento para as coisas. O adolescente tem aspirações profundas, talvez utópicas ou insensatas, mas o que fazemos normalmente é domesticá-lo para esquecer a tudo. Todo o sistema educacional que conhecemos foi feito para degradar e transformar o indivíduo numa máquina específica dentro da máquina social. O que se pede para as pessoas é que elas se resignem, mas os professores devem ajudar todos a desenvolver essa dialógica entre a razão, a emoção e a paixão.”
Globalização e comunidade humana: conclusão final
“Estamos em uma época que, com a globalização, todos os seres humanos do mundo sofrem os mesmos perigos e ameaças: uma ameaça da biosfera que está precipitando, principalmente quando os governos deixam que essa degradação avance, como aqui na Amazônia. Temos o desenvolvimento das armas, a destruição maciça e as armas cibernéticas que podem destruir a sociedade. Há esse fenômeno extraordinário que é a globalização técnica e econômica, mas ao invés de fazer com que as pessoas se entendam melhor, as coloca em situações de crise e de angústia. E, ao invés de saberem que têm um destino em comum, se fecham em uma identidade particular e singular.
Esquecem que todos somos humanos, da mesma aventura que nos leva não sei pra onde. É preciso situar novamente o sentido da aventura humana. Cada um de nós não é somente um cidadão de uma nação, mas uma partícula dessa aventura que começou na pré-história. Muito antes da história, há um conflito inseparável entre as forças da união e amor, e as forças da destruição, da guerra e do conflito. Cada vez é uma delas que vai predominar. Há uma única certeza: é preciso saber tomar partido pelas forças de eros, do amor, da fraternidade para toda a humanidade.”