Fora de ordem

Marta Morais da Costa

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Ô, Helena, tu vai ao mercado? Leva o Chico com tu que preciso resolver problema de boleto no banco.

E onde a gente se encontra depois, Cecília?

No ponto de ônibus, Helena. Calculo que em meia hora tô lá…

Tudo bem. Tchau então.

Helena pegou a mão de Chico e se foram porta adentro do mercado. Pão, cenoura, leite, arroz que estava em oferta, um pacotinho de farinha. Ah, e ovos! Tudo rapidinho pra poder cumprir o tempo aprazado. Chico quieto ao lado, ajudando a colocar no carrinho as comprinhas apressadas.

Mas quem resiste a uma prateleira de doces e chocolates? Helena se debruça sobre o balcão pra escolher as batatas. Chico, pacotinho de farinha na mão, aproveita para escapar para o corredor ao lado. Quer um pirulito vermelho como aquele que o Reca tinha na boca no recreio da escola. Sai de fininho, mexe e remexe e desalinha as mercadorias na prateleira. Nada do pirulito. Talvez no próximo corredor.

Sem Chico, em direção contrária, Helena aflita entrava em corredores cada vez menos próximos do desejo do menino: detergentes, compotas, álcool álcool álcool em formatos e cores diversas – do vinho ao caramelo, do verde ao incolor – e nada do Chico… Começou a temer.

O rapaz viu o menino, sozinho e atrapalhado, perguntou o nome, quem o havia trazido, onde estava a pessoa. Respostas confusas, a voz de criança usando uma língua parecida com o português. E o choro imediato a molhar os sons e expressar seu temor.

O mercado em polvorosa: a mulher procurando o menino, o menino procurando o pirulito, o rapaz procurando compreender, todos querendo reunir novamente a mulher e o menino. E todos a quererem trazer de volta a rotina de um mercado com pessoas que escolhem e compram e se vão.

Aos poucos uns falam com outros, de corredor a corredor o caso corre, as informações correm e corre o boato de que a criança tinha sido abandonada. Já se falava em polícia, boletim, aplicação das sanções de “abandono de incapaz”. Helena sem carrinho e sem compras andando em círculos pelos locais já devassados, gentes tomando a mão de qualquer criança que parecesse estar abandonada – e muitas crianças pareciam zumbis, mesmo com adultos por perto.

Não durou muito a procura: o suficiente para eletrizar o ambiente, parar as caixas registradoras, tirar do trabalho os repositores, provocar o engarrafamento de carrinhos e compras deixados ao léu, vozes altercando-se é esse o menino? essa a criança? e aquele ali? será que o menino não saiu e foi pra rua?

A palavra rua explodiu no ambiente: mães agarravam os filhos, prendiam nos braços, gritavam sua maternidade é meu! é meu! esse é meu! Vários clientes correram para fora do mercado, a vistoriar a rua que, por sorte, estava quase vazia e não tinha crianças à vista. Voltavam e em voz alta – até exagerada – tentavam acalmar quem estava nos corredores não saiu, não saiu, tem que estar aqui dentro! Clientes mais perspicazes juram que viram nuvens de alívio azuizinhas baixando sobre mercadorias secas e molhadas, pairando belas e leves sobre a panificadora e até o açougue.

Em cena cinematográfica, eis que Helena entra em um corredor, que ela jura ser o dos doces e chocolates, e o rapaz que trazia Chico pela mão jura que era o dos talcos e sabonetes, não importa, Helena vê Chico que vê Helena. Correm um para o outro, abraçam-se e os clientes, todos sorrindo mazzaropimente, aplaudiram a cena final daquele suspense capitalista.

Ah, Chico trazia na boca um pirulito vermelho…

Tudo bem, Helena? Comprou o que tu precisava? Chico se comportou? Os três reunidos no ponto de ônibus, sem atrasos de parte a parte.

Chico é um menino obediente, Cecília. Até me ajudou a colocar as coisas no carrinho. Deu tudo certo e Helena baixou os olhos. Vai que eles ainda guardassem restos de medo…

No estilo Marley e eu…

Marta Morais da Costa

Gostava de dirigir e de sair por aí sem saber aonde ir e sem ter hora de chegar. Logo que a profissão lhe permitiu, entrou em uma concessionária e comprou um carro zero. Comprometeu por quatro anos o orçamento reduzido, mas pôde exibir um semblante pacífico e de meio sorriso, típico das pessoas contentes consigo e com o que veem ao redor.

É verdade que, rodando pela cidade, viu muitas cenas tristes de gente morando em calçadas, de casebres com placa em neon, oferecendo serviços como conserto de sapatos, pintura, tarô e flores artificiais.

Viu também o empilhamento de pessoas e casas com vinte, trinta andares e um jardim frontal de 5mx10m com calçadas ocupando o triplo de espaço. Viu transeuntes apressados, carregados, solidários, gritantes, cabisbaixos, atônitos, suplicantes e, acima de tudo, aguerridos sobreviventes das batalhas urbanas.

Viu quadras em ruínas, parques coloridos, pontes de vários tamanhos, árvores e tocos, bosques e areais, dejetos e placas de projetos, flores nas janelas e muros pichados.

Ouviu palavrões, buzinas, ameaças, assaltos, pedidos de dinheiro e oferta de balas. Admirou os artistas de esquina, os motoristas cuidadosos e os prestadores de serviços públicos em ação. Não parou em acidentes, foi parada em proximidade de incêndios e em manifestações em prol de bandeiras variadas.

Nada diferente do que qualquer motorista vê, ouve, contempla e vive quando se aventura nas ruas de uma cidade.

Mas tinha uma identidade peculiar: a cada quatro anos, entrava em uma concessionária, deixava ali o automóvel em uso e saía com a nota fiscal de um novo carro. Zero, é lógico.

Não o fazia por exibicionismo, superstição ou pelo mau estado do velho companheiro. Apenas cumpria o conselho que havia recebido do pai: troque de carro a cada quatro anos – ou menos- já que você não entende e nem quer aprender sobre mecânica; carro novo costuma não dar problema durante esse período.

Pontualmente fez isso durante toda a vida. E a cada nova aquisição batizava a máquina com um nome-síntese do que considerava ser a identidade do veículo, muita além e mais significativa do que a placa obrigatória.

Passou pelo Grama, verde, baixinho, macio; pelo Estácio, que um dia transportou uma caixa de vinis de samba, que ganhou de uma prima que foi morar em Salvador; pela Madame de Sévigné, uma perua amarela, que lembrava as cores dos Correios; pela Madá, também conhecida por Madalena, com quem viveu de modo que “nem tão pouco se admite/que do nosso amor duvide”; o Sabiá, um potente fusca que cantava os pneus e os pinos que era uma beleza, tanto nos lás como nos cás; um corcel preto, Batman, que subia a serra em voos noturnos e amanhecia apaziguado na caverna do subsolo do prédio.  

Mas o maior conflito, a dúvida entre espada e caldeirinha, a escolha de Sofia está sendo neste momento. Cumprem-se quatro anos de vida amigável com uma onda civilizada, a Frozen, prateada e com termostato desregulado, que se mantém invariável na temperatura ártica de 16 graus. Mais-dia-menos-dia, entrará na concessionária para trocar, talvez, pela derradeira máquina de sua vida útil de motorista amadora.

Tem que ser um carro coroação, um ser significativo de uma trajetória de medos e surpresas, de paisagens e rostos, de multas e prestações, de desapego e dependência, de conversas a vidros fechados e brigas entre pedais. Não sabe como será essa máquina: dependerá do contato elétrico, faísca de descoberta: é esse! Tem cara de the end!

Venha na cor que vier, no tamanho que tiver, na potência pequena ou maiúscula do motor, bebendo álcool ou descarregando bateria, será seu amor derradeiro. O nome, este, já escolheu.

Consulta o saldo bancário, veste seu melhor traje “vou comprar um carro zero”, entra na Frozen e se dirige à concessionária.

Vai se encontrar, certamente, pela vez primeira com o Adieu, mes enfants!

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Translação

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Era o que se costuma dizer uma mulher simples. Não porque fosse desvestida de qualquer complexidade. Não porque fosse desprovida de herança e pecúlio. Não porque se vestisse ou comportasse com alguém que desconhece moda ou etiqueta social.

Ela era simples porque via o mundo e as pessoas de forma binária e de acordo com padrões tradicionais. Eram indivíduos do Bem ou do Mal, ateus ou religiosos, com família ou desajustados, criminosos de má catadura ou angélicos cidadãos confiáveis.

Era uma mulher simples.

 Não tomava partido em nenhuma disputa vá lá saber a história de vida do sujeito, eu também no lugar dela faria isso, não podemos julgar pois todos erram. Do perdão à omissão o caminho é curto.

Recusava-se a falar de política, sexo ou arte. Preferia conduzir a conversa para a criação dos filhos eu sempre ensinei os meus a respeitar os outros, em minha casa pornografia nunca entrou, fumar? nunca! beber? jamais! Os filhos perfeitos casaram-se com mulheres perfeitas, tiveram filhos perfeitos e um casamento durável.

Gostava mesmo era de conversar sobre culinária e trabalhos manuais. Ah, se gostava. Receitas sempre na ponta da língua e no núcleo da memória. Crochê, bordado, costura, papier maché, macramê, ikebana, nada representava dificuldade: uma vez que aprendi, jamais esqueço, só aperfeiçoo.

Não dirigia automóvel Deus me livre, tenho medo!, somente lia horóscopo, acreditava em OVNIs, desconfiava de artistas sempre estão mudando de sexo e de parceiros, benza Deus, que gente mais volúvel! O adjetivo não era bem esse: foi substituído porque este é um texto com finalidades morais…

 Participava de grupos de voluntárias para atender pessoas, animais, ajudar em catástrofes e visitar asilos e hospitais. Até fazia doações para instituições de caridade, próximas e longínquas. Era uma pessoa com qualidades humanísticas. E era uma mulher simples.

 Até seu aniversário de 60 anos. Bolo com velas, visitas de parentes e amigos, telefonemas, mensagens de whatsapp, facebook lotado de parabéns, abraços, corações e aplausos.

O marido a saudou de manhã com café na cama. Almoçaram em restaurante caro nossa, tudo isso? Até deram uma volta de carro por alguns bairros próximos e ela se assombrou com as mudanças. A noite, foram ao cinema do bairro ver aquela comédia familiar em que tudo dá certo no final. Um dia primoroso.

Na manhã seguinte, foi despertada pela voz de uma alma nada generosa a reprovar fatos e condutas de sua vida. Uma alma que deve ter fugido do purgatório e que a espicaçou com perguntas de difícil resposta por que você sempre toma partido de seu chefe? de seu marido? de seus filhos? Mesmo contra aquilo que você pensa? E foi o dia inteiro…cadê a viagem que você queria fazer? a comida que gostaria de comer de verdade? a roupa da moda que gostaria de vestir? o batom? o esmalte nas unhas? a vontade de ficar sem fazer nada? o curso de dança? e de inglês? a visita a Portugal? o banho de lama? rir com os amigos noite adentro?

O marido notou o olhar interrogador, as ausências, o trabalho não feito, as mãos sob o regaço, a postura fora de prumo. Está tudo bem? Está tudo bem? ei, mulher! Ensimesmada e muda, sentada e abstraída, imóvel e surda.

À noite, sem dormir, resolveu escrever a lista do que não fez em décadas. Assustou-se.

No dia seguinte, fez a lista do que queria fazer com o restante de sua vida. Assustou-se.

No dia seguinte do dia seguinte, assumiu a nova idade, outro olhar sobre a realidade e pôs-se a dizer não e pôs-se a fazer o sim.

Descobriu-se complexa.

 

 

Marta Morais da Costa

Canto contínuo

Marta Morais da Costa

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha

(Caetano Veloso)

Nos guardados da memória, as canções da adolescência ocupavam muitas gavetas.

Sons e letras, nomes e fatos formavam um capital inesgotável. A sem-censura adolescente nada sabia de timbre ou qualidade de voz. Soprano ou barítono eram apenas estrangeirismos e esquisitices de quem pavoneava conhecimentos musicais.

Gostava mesmo era do rádio ligado o dia inteiro, fazendo companhia. Em volume alto nos programas de calouros e muito íntimo, quase sussurrante, nas radionovelas. Alguém a lhe contar em segredo histórias de amor e ambição, que criavam a vilania. A posse como jogo já se chamuscando de infernos antecipados.

Mas era a música a paixão mais verdadeira. Cantava interiormente ao saudar o dia, a cozer as refeições, ao chuveiro. Dançavam os sons em bailes silenciosos.

Assim, dia a dia, formavam-se alianças sonoras e letras em conúbio nos cartórios da memória.

Ela chorava amores incompreendidos sem compreender o que era amar um homem. Somente sabia de sua indesejada solidão. Pai e mãe há muito morando no cemitério nos limites da cidade. Parentes nenhuns: se os tinha, eram desconhecidos, ausentes. O trabalho nômade de casa em casa não criava liames nem companhia.

Mas topou na esquina, em um domingo, com a realidade da fantasia. era músico, violonista, cantor nos bares da vida. O amor foi chama devoradora em um inferno de ciúmes.

Ele cantou, ela mergulhou nos sons e os dois se fizeram uma canção nova.

Juntos fizeram serenatas e duetos, desafinaram e concertaram. Árias em atrito, fados em lamúrias, modinhas em consonância, sambas em epifania. Mas chegou o desacordo do rock, chegaram as queixas do soul, as controvérsias do pop.

Hoje, cada um em seu ritmo díspar, segue a vida cantando em palcos incompatíveis.

O músico se foi, mas a música permanece.

Agora, na casa durante o dia acalantos ressoam, secundados por vozes infantis. O pão é pouco e vem acompanhado de choros de fome e do planger de cordas. Choros que ela compreende, harmoniza e acarinha.

Filhos da música e da euforia vêm partilhar as gavetas da memória: a cada um o seu ritmo, a cada um o seu canto, a cada um o sol e o escuro. E ela canta.

Uma casa à sombra

Foto por Engin Akyurt em Pexels.com

Juro que só passei aqui para ver o estado de nossa casa. Há tanto tempo que a gente deixou de morar nela, não é? O jardim está meio abandonado. Lembra o cuidado que tínhamos em aparar a grama, limpar as ervas indesejadas, plantar e replantas as flores?

Não esqueço os momentos em que, juntos, cuidávamos de tudo, horas a fio, conversando, fazendo planos, adubando, comentando o cenário político, podando, repassando a programação do dia seguinte. O trabalho rendia e sentíamos a cooperação tomar forma.

A casa branca de janelas azuis era acolhedora e alegre. Não descuidávamos dos detalhes: a pintura, os consertos, as portas abertas e, lá dentro, o perfume da limpeza e a claridade do acolhimento.

O quintal era nosso lugar de criação. A horta, o viveiro de plantas, as frutas pendentes, as flores anunciadoras da produção que se gestava. A sombra, o silêncio, a cômoda espreguiçadeira ao lado da rede colorida. O ruído das folhas no chão, a umidade do solo e a vida verde pacífica.

Quando foi que perdemos tudo isso? Foi naquele Natal frustrado? No Dia dos Namorados em que o amor bateu cabeça no umbral da porta e desfaleceu? No dia de minha demissão em que palavras acres e duras tentaram compensar a frustração? No final de semana de ciúme violento em que minha mão encontrou sua pele com a força da vingança? Nas manhãs de noites sem amor nem carinhos? No silêncio de bocas fechadas à força pelo sentimento de aridez e solidão? Na indiferença cotidiana que aos poucos ocupou os minutos sem fim?

Perdemos, deixamos sumir, indiferentes vimos transformarem-se o afeto e a cumplicidade. Em seu lugar, a fria indiferença, palavras geladas em coração ainda quente. Sem tentações, sem frestas, sem fugas: só o progressivo abandono do que parecia ser a inamovível felicidade a dois.

De repente, a troca ácida de frases e de mágoas adormecidas. Fomos vítimas e algozes de nossa própria incúria e soberba. Nada ficou sólido o suficiente para contornos ou retornos. Seguimos em frente (em frente?) separados, isolados e desolados.

Do outro lado da rua, olho o jardim em desmazelo. Olho em mim em desalento. Olho o passado em imagem desmaiada. A casa reluz em branco e azul, portas fechadas, janelas abertas de onde jorram cascatas de trágico Chopin.

A música ambienta a certeza de que o quintal, inacessível aos olhos, resiste em alguns pontos de sombra e verde (resistente à total destruição). O aroma doce das frutas parece permanecer. Talvez seja o desejo de que nem tudo seja desaparecimento.

No canto mais à sombra no jardim, me parece distinguir teu vulto esbelto, as mãos camponesas e carinhosas, o riso fácil, o olhar afetuoso. Em vão.

Continuo o caminho. Sei agora que não retornarei a ver a casa. Seu coração deixou de bater neste exato momento. Ela permanece branca e azul, como um cadáver.

Agora a solidão engolfa a a tarde.

 

Vou, voto e volto

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São sete horas da manhã. O dia está nublado. Um vento anuncia chuva e essa perspectiva me faz sentir ainda mais frio. Hoje não estou para ninguém: não quero telefone, nem whatsapp, nem televisão. O rádio vai ficar mudo. A cabeça tem apenas dois compartimentos: a vontade e a memória. Hoje é dia de votar.

Depois de ler, ouvir, assistir e refletir, montei um cardápio de números. Vou derramá-los conscienciosamente na urna, toque por toque, na sequência proposta pela máquina. Levo todos na memória que não há de falhar. Sempre fui um ás na matemática. Pena que tive de abandonar os estudos. Mas foi para ajudar em casa, tão grande era a necessidade.

Passei uma noite em claro quando me despedi da escola. Um pouco de ansiedade para começar a ganhar meu sustento e muito de tristeza porque sem escola o futuro fica mais incerto. Mas nem sempre há caminhos a escolher: às vezes a rota está previamente traçada.

Um café forte, um pãozinho dormido e a maçã para o caminho de volta. Corro para não perder o ônibus que na semana me leva para a fábrica e hoje para a escola. As ruas ainda estão sonolentas, poucas pessoas sem pressa, ônibus em meia carga, que aos poucos aumenta. Desço perto de meu destino e sou recebido por uma garoa que faz brilhar minha jaqueta. Bom augúrio para meus objetivos. Com passos apressados entro no prédio que abandonei há pouco tempo.

Meus olhos percorrem avisos que ilustram as paredes em busca da confirmação do local de votação. Em minha frente, duas cabeças já branquejadas, com dificuldade procuram sua seção. Se vocês quiserem, posso ajudar. Eles, surpresos, agradecem. Qual é o número da seção? Eles se atrapalham com o título de eleitor que está em suas mãos. Viram e reviram o papel, descobrem e dizem. Localizei: estão próximos das salas. E se encaminham, lado a lado, para cumprir um papel para o qual estão até dispensados. Meus pais darão futuramente este mesmo exemplo? A imagem deles toma o palco da memória e, por uma centelha de instante, a escola virou sua casa e a dúvida se inseriu nos olhos de seus pais.

Conferi o local da seção e tomei o rumo das escadas. Impedidas por um homem e dois cachorros, que, vestidos nas cores do partido, pareciam qualificar e exibir as preferências políticas do seu dono, que nem se importava em interromper o trânsito. Cidadania não é apenas poder votar, pensei. Exigi a passagem e subi.

Filas enormes, queixas, irritação. Mas ninguém arredou o pé. Afinal, os meios de comunicação derreteram os cérebros espectadores com mensagens de vote vote vote cidadania cidadania dia importante a festa da democracia e outros imperativos.

Em algumas seções, filas, problemas, esperas. Em outras, a fluidez da tecnologia e da destreza. O rádio e a tevê anunciam prisões, fraudes e urnas ineficientes. Parece que viver mais obstáculos melhora a eleição, dá visibilidade ao caos e divulga o mau caráter de poucos.

Mas votar é imperativo.

Respeitar o resultado serão outros quinhentos. Queixas, surpresas, temores e torcidas de futebol, é tudo. Esperança de um Brasil melhor? Sim, sempre. O difícil é o como. Nesta palavrinha – como – desliza o tempo em direção à cova. Cava-se na história um preâmbulo que jamais chega a um primeiro capítulo razoável. Como as promessas de boca cheia de acabar com o analfabetismo no Brasil.  Décadas se foram e milhões de brasileiros continuam sem ler ou leem mal. Funcional apenas, o alfabetismo vence sempre as eleições.

Entro na cabine, reconheço a urna, digito obedientemente os números da memória e, ainda aflito, teclo FIM.

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Em tempo: este texto foi escrito em 2 de outubro de 2022, quando o Brasil continuou sua trajetória para trás.

Ética

Marta Morais da Costa

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Acreditava no amor, aquele que é doação, sinceridade, respeito e resiliência.

Mas continuava solteiro. De todas as namoradas, nenhuma cumpriu a lista de qualidades exigidas.

Acreditava na amizade, nas trocas, na companhia para todas as horas.

Mas vivia encerrado em casa, solitário. Amigos com problemas e sem humor eram deixados de lado.

Acreditava na ciência. Toda a ciência: a que cura, a que moderniza, a que inventa. Até aquela que planeja e constrói coisas feias.

Mas caiu nos braços da superstição e da magia. A ciência havia trazido a guerra e a ganância.

Acreditava na educação como impulso para vidas marcantes.

Mas doou todos os livros, rasgou diplomas e vendeu computador e celular. A educação desejada só vai chegar quando ele não mais estiver sobre a terra.

Acreditava na felicidade plena em comunhão com a natureza.

Mas morava em um apartamento de 30 m² de frente para outro apartamento de frente para outras janelas fechadas de frente para paredes sem reboco.

Acreditava em todas as igualdades e em todos os méritos.

Mas descobriu o preconceito, Medusa indestrutível.

Acreditava na paz de espírito com a chegada da velhice.

Está morrendo aos poucos entre gemidos e dores: gasto, roído e triturado.

Não acreditava no poder da mentira e da fraude.

Viveu e viu.

Após a chuva

Marta Morais da Costa

O dia amanheceu úmido, neblinoso. A chuva havia lavado a calçada, os ninhos, as folhagens. A água levara com ela a secura dos olhos, da boca, do coração. O poder sonoro dos pingos saindo das calhas, pingando do telhado, escorrendo folhas abaixo, derramando-se pelo chão trazia conforto e sonolência.

Era um dia outro. As paredes calaram as ofensas, os móveis guardaram a violência do olhar e das mãos. O rosto marcado suavizou-se. Havia ainda esperança.

Que passava longe da presença dele, da frieza do olhar, da rudeza da fala.

Era feita de pedaços de lembranças felizes, de toques sedutores, de carícias de fogo. Era uma presença tênue do passado que se agigantava enquanto o presente projetava uma pequenez ameaçadora.

“Sua vadia! Preguiçosa! Enquanto eu ralo pra trazer comida pra casa, você se esbalda nesse sofá o dia inteiro! Cadê meu almoço?”. A ladainha era longa, os gritos alcançavam a vizinhança. Quando saísse à rua tinha certeza o olhar dos vizinhos teria a mesma frieza e desprezo que rondava os quartos, a sala, a cozinha de sua casa.

Não saía.

Consolava-se com o vídeo da cerimônia de casamento a rodar em sua solidão os momentos de alegria, de beijos e abraços, de valsas e cantorias, de um noivo carinhoso e de amigos risonhos. Vivia nas imagens o que a vida lhe roubara no cotidiano.

Não se defendia.

Jamais mostraria a ele, em palavras ou atos, a dor da solidão, a mesquinhez da vida sem horizontes, os sonhos derrotados.

Lembrava as queixas da mãe, as confissões das amigas. Por onde andam essas mulheres? Terão rompido os grilhões, cavado seu túmulo em vida, escolhido a cabeça baixa, o sim senhor? Escalaram o muro e vivem do outro lado, sorrindo suas dores, os olhos brilhando e o coração em sossego?

Culpa sua se nada sabe delas. Escolheu sua solidão e o prazer em humilhar-se e silenciar.

Mas um dia…

Quem sabe um dia após uma tempestade. Um dia após um dilúvio. Outro amanhecer e uma nova neblina…

Levanta do sofá, desliga o televisor, esconde o vídeo e se propõe a caprichar no almoço. Para quem? Sem perceber, desvia da cozinha e se descobre no quarto. Vazios os cabides, a sapateira. Foram-se ternos camisas gravatas e os pijamas. O guarda-roupa sorri entre as falhas das prateleiras. Vazios se completam.

Coloca sapatos altos, vestido novo, maquilagem o quanto baste. A chave da casa à mão. Sai e fecha a porta da rua, chaveia, guarda a chave em lugar protegido na bolsa. Talvez um dia volte. Ou não.

De mansinho

Marta Morais da Costa

“Ele foi chegando de mansinho.”

A frase não me saía da cabeça. Lia textos, arrumava a casa, aguava as flores, passava a roupa. E ela continuava a martelar o cérebro e a memória.

Quem era “ele”? Chegava aonde? Por que de “mansinho”?

A frase foi ganhando boca e olhos, uma silhueta desenhou-se e ele veio andando para dentro de mim. Sem nome, sem perfil, somente andando.

Passei a emoldurar um rosto: cabelos negros, encaracolados. Abundantes. E uma fala tranquila e clara: “Cheguei.”

Ainda não consigo distinguir um nome e qual é nossa relação. Mas é de amor, sinto.

Aos poucos descubro que ele morou comigo por um tempo. Ocupou um espaço. E meu pensamento. Mais do que isso: conheceu meus desejos e meus desamores. Nutriu-se de um modo de olhar para o mundo e para as pessoas, que encontrava pontos de semelhança com o meu. Mas diferente em arestas e colorido. Como se o menino quisesse mostrar independência, sem provocar divergências.

Aos poucos desfiava-se um rosário de sons: ora falas, ora cantigas. E a gente brincava, se divertia e silenciava. Mas logo depois a conversa fazia uma curva e retornava mais lenta, com fendas e desvãos. A gente pensava que pensava em um e no outro. Até nem precisar falar, olhando, de mansinho. Rindo, de mansinho. Amando.

Agora sei quem ele é. Por ele, conheci outras frações de mim.

E talvez ele saiba que partes são essas.

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Em 9 de maio de 2022

Herança

Marta Morais da Costa

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Herdara da mãe uma panela de ferro, três copos de vidro cristalino que, na infância, chamavam orgulhosamente de taças de vinho e só usavam nos natais. E uma lata de 20 litros que na origem havia armazenado margarina no armazém do seu Lalau.

A mãe ganhara a lata porque seu Lalau sabia que na casa dela não tinha moringa nem outra vasilha para armazenar a água do poço. Depois de uma boa esfregada com um pedaço de pano, cinzas e sabão, a lata quase se podia dizer nova, não fosse a estampa colorida de uma moça branca e loira, de longos cabelos lisos, sorriso de dentifrício a apresentar a margarina Regina, a rainha do forno e fogão.

Só assim para margarina entrar em casa: a mais constante das gorduras era a banha de porco, mais barata, e que seu Ari, do açougue, nem olhava para a balança ao embrulhar o quilo da mercadoria, colocando sempre muitos gramas a mais, por causa dos olhos verdes e tristes de minha mana mais velha. Margarina Regina era apenas uma rima, jamais alimentação.

O que agora chamava de casa desmerecia ainda mais o casebre da infância. Nele havia experimentado a necessidade de roupa, comida, conforto e afeto. Nele, vira o pai morrer  numa poça de vômito da última bebedeira. Nele, repartira a cama com três irmãos, dos quais era a única sobrevivente. Nele, aprendera que solidariedade dura uma única doação e muitas cobranças de reconhecimento. Que falta é palavra mais frequente do que bom dia. Que a barriga tem mais buracos por onde a comida se esvai do que paredes para impedir a fome de entrar. Que o sono é sem sonhos, que a vida é de pouco sono, que a morte tem sono pesado sem despertar.

Por isso, uma panela, copos e uma lata são quase os tesouros do rei da história que ouvira o palhaço contar na praça da cidade. Era o tempo do circo ficar na cidade e do desfile pelas ruas com os artistas convidando o público para os espetáculos. A criançada tinha direito a histórias, algumas mágicas, palhaços a trocar tabefes de mentira e a caírem de barriga postiça no chão a berrarem feito o porco quando vai para o sacrifício. Na época dois irmãos e eu íamos para a praça aproveitar o que era de graça. Sabíamos que nas noites seguintes, somente veríamos as luzes do pavilhão e ouviríamos a música da bandinha. Eram os efeitos luminosos e musicais da imaginação que corria solta em nossas cabeças, sentados os três na porta do casebre. Quando uns poucos amigos, mais sortudos, iam aos espetáculos, no dia seguinte andávamos a persegui-los para que contassem o que viram, ouviram e sentiram. Com esses retalhos de conversa e exageros montávamos nosso circo pessoal em tendas imaginárias, que carregávamos dia e noite por muito tempo.

Nem circo, nem margarina, muito menos vinho no Natal. Os copos passavam o ano inteiro protegidos no fundo da única prateleira da cozinha e de lá só saíam quando o pai ganhava de presente uma caixa com bombons melequentos, biscoitos amolecidos e uma garrafa de vinho azedo como a miséria. Meus irmãos e eu não podíamos tomar. A gente ganhava na canequinha de latão um pouco de limonada, mais azeda do que o vinho, porque açúcar era luxo para se aproveitar de vez em quando.

A panela de ferro hoje faz um arroz saboroso, mas no tempo da mãe recebia uma mistura de legumes, farinha e ovos das galinhas do terreiro. Um mexido que rendia porções miúdas, cheirando a delícias e engolidas com rapidez. Na medida em que a família diminuía, cresciam as porções. Só ficava um pouco de remorso porque a alegria da quantidade de comida era resultado de uma tragédia.

A lata, guardo comigo em lugar de honra na cozinha. Eu a decorei com restos da infância: fitas, panos, uma lasca de madeira da porta do casebre, contas de vidro, um pedaço de espelho, recortes de embalagem, tocos de vela, o único retrato de minha família reunida quando fomos à quermesse de Páscoa, umas tiras de papel em que, nos primeiros rabiscos, registrei lágrimas e sorrisos e a flor, agora seca, que ganhei do primeiro namorado.

A lata de margarina Regina reina sobre minha infância e me ensina, diariamente, a reconhecer as fomes que continuam a debilitar e as fomes que, saciadas, deixam cicatrizes na carne e na alma.

Talvez ela venha a ser a herança a deixar para minha filha.