Fora de ordem

Marta Morais da Costa

Foto por Pixabay em Pexels.com

Ô, Helena, tu vai ao mercado? Leva o Chico com tu que preciso resolver problema de boleto no banco.

E onde a gente se encontra depois, Cecília?

No ponto de ônibus, Helena. Calculo que em meia hora tô lá…

Tudo bem. Tchau então.

Helena pegou a mão de Chico e se foram porta adentro do mercado. Pão, cenoura, leite, arroz que estava em oferta, um pacotinho de farinha. Ah, e ovos! Tudo rapidinho pra poder cumprir o tempo aprazado. Chico quieto ao lado, ajudando a colocar no carrinho as comprinhas apressadas.

Mas quem resiste a uma prateleira de doces e chocolates? Helena se debruça sobre o balcão pra escolher as batatas. Chico, pacotinho de farinha na mão, aproveita para escapar para o corredor ao lado. Quer um pirulito vermelho como aquele que o Reca tinha na boca no recreio da escola. Sai de fininho, mexe e remexe e desalinha as mercadorias na prateleira. Nada do pirulito. Talvez no próximo corredor.

Sem Chico, em direção contrária, Helena aflita entrava em corredores cada vez menos próximos do desejo do menino: detergentes, compotas, álcool álcool álcool em formatos e cores diversas – do vinho ao caramelo, do verde ao incolor – e nada do Chico… Começou a temer.

O rapaz viu o menino, sozinho e atrapalhado, perguntou o nome, quem o havia trazido, onde estava a pessoa. Respostas confusas, a voz de criança usando uma língua parecida com o português. E o choro imediato a molhar os sons e expressar seu temor.

O mercado em polvorosa: a mulher procurando o menino, o menino procurando o pirulito, o rapaz procurando compreender, todos querendo reunir novamente a mulher e o menino. E todos a quererem trazer de volta a rotina de um mercado com pessoas que escolhem e compram e se vão.

Aos poucos uns falam com outros, de corredor a corredor o caso corre, as informações correm e corre o boato de que a criança tinha sido abandonada. Já se falava em polícia, boletim, aplicação das sanções de “abandono de incapaz”. Helena sem carrinho e sem compras andando em círculos pelos locais já devassados, gentes tomando a mão de qualquer criança que parecesse estar abandonada – e muitas crianças pareciam zumbis, mesmo com adultos por perto.

Não durou muito a procura: o suficiente para eletrizar o ambiente, parar as caixas registradoras, tirar do trabalho os repositores, provocar o engarrafamento de carrinhos e compras deixados ao léu, vozes altercando-se é esse o menino? essa a criança? e aquele ali? será que o menino não saiu e foi pra rua?

A palavra rua explodiu no ambiente: mães agarravam os filhos, prendiam nos braços, gritavam sua maternidade é meu! é meu! esse é meu! Vários clientes correram para fora do mercado, a vistoriar a rua que, por sorte, estava quase vazia e não tinha crianças à vista. Voltavam e em voz alta – até exagerada – tentavam acalmar quem estava nos corredores não saiu, não saiu, tem que estar aqui dentro! Clientes mais perspicazes juram que viram nuvens de alívio azuizinhas baixando sobre mercadorias secas e molhadas, pairando belas e leves sobre a panificadora e até o açougue.

Em cena cinematográfica, eis que Helena entra em um corredor, que ela jura ser o dos doces e chocolates, e o rapaz que trazia Chico pela mão jura que era o dos talcos e sabonetes, não importa, Helena vê Chico que vê Helena. Correm um para o outro, abraçam-se e os clientes, todos sorrindo mazzaropimente, aplaudiram a cena final daquele suspense capitalista.

Ah, Chico trazia na boca um pirulito vermelho…

Tudo bem, Helena? Comprou o que tu precisava? Chico se comportou? Os três reunidos no ponto de ônibus, sem atrasos de parte a parte.

Chico é um menino obediente, Cecília. Até me ajudou a colocar as coisas no carrinho. Deu tudo certo e Helena baixou os olhos. Vai que eles ainda guardassem restos de medo…

Um lugar de beleza para os livros

Marta Morais da Costa

Espaços são fundamentais para a construção e entendimento de nossos afetos: a casa natal, a cidade de que gostamos, a serra que nos perturba, o rio que nos transporta  e ensina, o pedaço de terra que abriga e alimenta as plantas que nos encantam, a árvore bordada pelo céu azul e que acalenta um ninho de pássaros, o céu – com ou sem estrelas – aonde voa nossa imaginação para terras distantes e sonhos de verão. Até o banco de jardim na praça que testemunhou conversas e afetos é fundamental.

Os falantes de latim nos legaram o termo “situs”, uma palavra que apontava trilhas de sentido em três direções: “posição, local, situação”. E cá estamos nós hoje a aplicar o vocábulo herdado também em diferentes construções e produzindo significados diversos. Antes da invasão do inglês site, já convivíamoscom sítios múltiplos.

Sítios da infância, onde testemunhei a semeadura transformada no milagre da colheita, onde aprendi a ligação umbilical com a terra, útero inegociável dos camponeses. Onde o gado, que demoradamente se apraz em gastar seu dia, recolhe a seiva que encherá úberes e canecas em refeições compartilhadas e abençoadas. Sítios em que colhi, sem ter plantado nem cuidado, as uvas que até hoje perfumam minha lembrança. Sítios de roças simples e gente corajosa. Sítios de animais em comunhão com homens e mulheres atentos, mas também atenciosos. Sítios da infância livre em comunidades que se esforçavam em esconder mazelas e praticavam a convivência utilitária e solidária.

Sítios arqueológicos que a vida foi multiplicando em mapas, viagens e olhares. Lugares de arte, de meditação, de leis e reis, de oração e de outras convivências, transformados em passagem de turistas apressados em busca de emoções passageiras e ohs e ahs rapidamente esquecidos, principalmente quando não foram registrados em telas e papel glossy.

Existe um sítio, porém, amálgama de todos esses aí acima, que me perturba, atravessa, comove e desentranha. É o espaço, o lugar, o ambiente, a posição, a situação: o sítio pleno. Espaço, cenário, alimento, anseio e dúvida: é a biblioteca. Local em que o turismo é exceção, em que o pensamento é alicerce, em que a leitura é o cultivo e a cultura. Ambiente de convivência igualitária entre vivos e já desaparecidos. Pessoas que abandonaram na Terra carne e ossos, mas legaram livros que são a presença pensante delas à espera de ressurreição pelos leitores.

Quando uma biblioteca manifesta em pedra, cores e formas a beleza e a maravilha que é um sítio que abriga livros, não tem como fixar os olhos até lacrimejarem, desejar voluptuosamente tocar os livros, os armários, as escadas para que o tato absorva, também ele, essas presenças pensantes.

Na história viciante de um leitor assíduo e amoroso, não há sítio mais lindo do que uma biblioteca. Não há.

Rossana Uba, a Mensageira, acaba de visitar uma delas. a Biblioteca do Mosteiro dos Monges Beneditinos de Admont, na Áustria e tornou meu dia mais belo, mais reconfortante, mais esperançoso. Espero que o mesmo aconteça com meus leitores, pois vou repassar uma das fotos que recebi em mensagem de amizade.

Que a semana tenha para nós a beleza deste sítio de livros: arte, sol e uma história pulsante.

Foto Rossana Uba