Marta Morais da Costa
“Nenhuma filosofia, análise ou aforismo, por mais profundo que seja, pode se comparar em intensidade e riqueza de significados com uma história bem narrada.” (Hannah Arendt)
As mutações de qualquer língua viva reservam muitas descobertas e surpresas se observadas ao longo do tempo. Quando alguém vive, como eu, um tempo de várias gerações, não são apenas as gírias que se modificam. Mudam também os significados de palavras, o torneio de frases e, sobretudo, os acréscimos nascidos do intercâmbio com outras línguas.
Penso em uma palavrinha malandra a girar na atualidade em bocas fornidas de dentes ideológicos. Ela emergiu em meu pensamento ao ler a citação de Hannah Arendt que encabeça este texto. A palavra é “elitista”.
Parti em busca de elos lógicos a fim de aclarar o que pretendo dizer. Antes de tudo, uma visita ao dicionário. Elitista, o sujeito que “faz parte de uma elite ou que comparte e defende posições elitistas”, tem na raiz o original francês “élite”. Palavra que recheou artigos, discursos e vitupérios em comunicações na história recente do Brasil. Francesismo com fumaças de acusações e revoltas que lembram barricadas e quedas da Bastilha. Termo que delata futuras decapitações. Catalisador de repulsa, ojeriza, discriminação.
Nem sempre foi assim.
Lembro que na infância e juventude, muitos acarinharam a “elite” como “o que há de melhor, de mais valorizado em uma sociedade; escol, fina flor, nata”, como também define o dicionário. Sem o peso acachapante da sociologia, elite era o alvo de olhares, de secretos desejos, de sadia inveja mal contida, de lutas por ascensão social. Notícias, filmes, fotos e narrativas alimentavam essa perspectiva de valores e prestígio localizados na elite. Revi recentemente um pouco disso em “A noite do meu bem”, do extraordinário cronista e biógrafo Ruy Castro. Uma biografia do samba-canção em uma sociedade carioca boêmia, endinheirada, a desfilar amores e elegância posada pelas boates do Rio de Janeiro, capital de um Brasil em grande parte desconhecido e perdido em sertões e pobreza.
Essa elite, porém, esbanjava um estilo de vida ideal e idealizado. Nada de lutas sociais entre nós e eles, na pobre dialética absoluta da atualidade. Ao menos, nada tão contaminado de rancores como no tempo presente. Discriminação havia, é claro. Afinal, as diferenças gritam, se espetacularizam, atingem os olhos como flashes mal direcionados.
Ciente de minha ingenuidade sócio-ideológica e movida pela rede de significados que a mente produziu, enlaço Hannah Arendt e a elite que fui buscar na história e no dicionário.
Na citação, há evidente contraposição entre “filosofia, análise e aforismo” e literatura, contraposição também entre história narrada e história bem narrada. Os primeiros elementos (ou gêneros textuais, em linguagem mais científica) da comparação ocupam patamar inferior aos segundos, na visão de Arendt. Poder e prestígio estão na “intensidade e riqueza” do bem narrar. E não se trata de adjetivos acompanhando a literatura, como, por exemplo, narrativa regional, urbana, histórica, psicológica, fragmentada, não-linear, pós-moderna. Trata-se, sim e basicamente, de um advérbio, de um modo, de um modificador. Bem narrar não é apenas contar. Não é apenas escrever. Não é apenas o assunto ou a posição ideológica. É um MODO, uma “forma ou maneira particular de algo” (voltei ao dicionário, como se vê). O que vem a ser o “particular” no caso da literatura, isto é, a natureza literária do texto. Bem narrar é saber “o ser de uma substância”, como defende a filosofia quando trata de modo ou forma.
Na cultura literária superabundante do hoje, o modo particular da literatura se vê devorado pela pressa, pelo desconhecimento da natureza do texto literário, pelo desejo de fama e fortuna, pela moda em lugar do modo. Leyla Perrone-Moisés esclarece: “Não é, pois, em nome de uma ‘alta cultura’ idealizada num passado melhor e mais puro que se pode defender a ‘alta literatura’, mas em nome de uma diferença que continua existindo na multiplicidade de práticas artísticas de hoje, uma diferença de qualidade (grifo meu) que se pode experimentar e demonstrar. (…) O julgamento da obra literária não pode ser apenas uma questão de gosto, e seu valor não pode ser medido em termos de consumo, tomando como critério sua vendagem ou sua publicidade.”
Continua a haver, na “história bem narrada” critérios de universalidade e de juízo estético a distinguir “o que há de melhor e mais valorizado” na literatura e o todo que se produz e se denomina hoje literatura.
Continuo a professar a crença de que, se mantivermos leitores apegados a textos que conseguem ler por serem mais do mesmo, envoltos na repetição sem horizontes de descobertas e desafios – mesmo que com emoção ou identificação – estaremos diante de leitores contabilizáveis (apenas números), mas jamais diante de leitores autônomos com capacidade crítica. Leitores que pululam no espaço, quais antenas de sinais para celulares. Jamais como faróis a advertir, sinalizar e, quem sabe, salvar neurônios navegantes.
A deselitização literária, portanto, não tem apresentado como resultado a popularização, mas a pauperização. No âmbito da literatura, sem os parâmetros da “fina flor”, o resultado será o “mal narrar”. De modo algum, esclareço, defendo que só os antigos narravam bem. Ao contrário. Deposito aos pés de Mia Couto, Mariana Ianelli e Luiz Rufatto uma oferenda de advérbios elitistas.
Observação indispensável: Este texto foi publicado pela primeira vez em 23 de novembro de 2016, sob o título “A letrada batalha entre adjetivos e advérbios“. A presente versão passou por atualização e acréscimos.