A linha tênue

Marta Morais da Costa

 

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Gosto da palavra “tênue”: ela tem classe e delicadeza. É forte e sutil ao mesmo tempo: a consoante inicial explode e sem demora se estende em uma sequência de vogais e nasal, que atenua a força inicial. Os sons da palavra deslizam em direção à calma, à leveza e ao silêncio.

            A expressão “vida tênue” nada tem de original, nem na forma, nem em seu conteúdo. A vida é, sim, débil, delgada, fina, fraca. Um sopro. Um raio. Uma cigarra, barulhenta e efêmera. Tem a consistência da espuma degradável e a força de um fio de cabelo. Nasce vigorosa, vive de esperanças e se desfaz em perdas.

            É porque ela assim se constitui que a amamos com forças íntimas e ímpetos românticos. Ela nos dói e nos sorri. Espanca e afaga. Existe nos limites e desafia os imprevistos. Convida para um banquete e, muitas vezes, serve apenas ossos. Anuncia-se no primeiro choro e se despede no último suspiro. Entre a lágrima e apagamento ficam semeados momentos de prazer e horas de aflição. Mas tem bonitezas, embora nem sempre as vejamos. Alguns até fecham os olhos ou a recobrem toda de feiura e recusas. E antecipam o suspiro.

            A leitura de livros e a escuta de pessoas construiu em mim a associação de velhice e sabedoria. Como se a vida fosse cumulativa como a idade. Traríamos ao longo da jornada fardos cada vez mais pesados de aprendizagens e adornos cada vez mais leves de compreensão da realidade. Chegaríamos assim à linha tênue das despedidas. Serenos e cordatos.

            Mais uma ilusão. Tão imensa e tão distante como Jorge e seu dragão,  desenhados na diáfana lua cheia que invade meu quarto. O corpo que enfraquece abriga revoltas juvenis e sonhos adolescentes. Nada é calmo, nem envolto em aceitação. Não são as mesmas indecisões do começo do caminho, mas são sempre inseguranças, expectativas e nebulosidades.

            O corpo repousará definitivamente um dia. Seguirá em mim, no entanto, a certeza de que o espírito preserva o vigor da juventude e os olhos, mesmo fechados, estarão em busca de paisagens e cores ainda não vividas.

            E quando a Parca vier com sua cortante presença definir a ruptura do fio tênue, encontrará, não a mesa posta e cada coisa em seu lugar, como descreveu Manuel Bandeira; terá que me buscar entre livros, preparando o banquete de palavras fortes e delicadas, rudes e interrogativas, em que consoantes e vogais se contradigam em linhas vincadas, pétreas, permanentes.

Eliteratura

Marta Morais da Costa

“Nenhuma filosofia, análise ou aforismo, por mais profundo que seja, pode se comparar em intensidade e riqueza de significados com uma história bem narrada.” (Hannah Arendt)

As mutações de qualquer língua viva reservam muitas descobertas e surpresas se observadas ao longo do tempo. Quando alguém vive, como eu, um tempo de várias gerações, não são apenas as gírias que se modificam. Mudam também os significados de palavras, o torneio de frases e, sobretudo, os acréscimos nascidos do intercâmbio com outras línguas.

Penso em uma palavrinha malandra a girar na atualidade em bocas fornidas de dentes ideológicos. Ela emergiu em meu pensamento ao ler a citação de Hannah Arendt que encabeça este texto. A palavra é “elitista”.

Parti em busca de elos lógicos a fim de aclarar o que pretendo dizer. Antes de tudo, uma visita ao dicionário. Elitista, o sujeito que “faz parte de uma elite ou que comparte e defende posições elitistas”, tem na raiz o original francês “élite”. Palavra que recheou artigos, discursos e vitupérios em comunicações na história recente do Brasil. Francesismo com fumaças de acusações e revoltas que lembram barricadas e quedas da Bastilha. Termo que delata futuras decapitações. Catalisador de repulsa, ojeriza, discriminação.

Nem sempre foi assim.

Lembro que na infância e juventude, muitos acarinharam a “elite” como “o que há de melhor, de mais valorizado em uma sociedade; escol, fina flor, nata”, como também define o dicionário. Sem o peso acachapante da sociologia, elite era o alvo de olhares, de secretos desejos, de sadia inveja mal contida, de lutas por ascensão social. Notícias, filmes, fotos e narrativas alimentavam essa perspectiva de valores e prestígio localizados na elite. Revi recentemente um pouco disso em “A noite do meu bem”, do extraordinário cronista e biógrafo Ruy Castro. Uma biografia do samba-canção em uma sociedade carioca boêmia, endinheirada, a desfilar amores e elegância posada pelas boates do Rio de Janeiro, capital de um Brasil em grande parte desconhecido e perdido em sertões e pobreza.

Essa elite, porém, esbanjava um estilo de vida ideal e idealizado. Nada de lutas sociais entre nós e eles, na pobre dialética absoluta da atualidade. Ao menos, nada tão contaminado de rancores como no tempo presente. Discriminação havia, é claro. Afinal, as diferenças gritam, se espetacularizam, atingem os olhos como flashes mal direcionados.

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Ciente de minha ingenuidade sócio-ideológica e movida pela rede de significados que a mente produziu, enlaço Hannah Arendt e a elite que fui buscar na história e no dicionário.

Na citação, há evidente contraposição entre “filosofia, análise e aforismo” e literatura, contraposição também entre história narrada e história bem narrada. Os primeiros elementos (ou gêneros textuais, em linguagem mais científica) da comparação ocupam patamar inferior aos segundos, na visão de Arendt. Poder e prestígio estão na “intensidade e riqueza” do bem narrar. E não se trata de adjetivos acompanhando a literatura, como, por exemplo, narrativa regional, urbana, histórica, psicológica, fragmentada, não-linear, pós-moderna. Trata-se, sim e basicamente, de um advérbio, de um modo, de um modificador. Bem narrar não é apenas contar. Não é apenas escrever. Não é apenas o assunto ou a posição ideológica. É um MODO, uma “forma ou maneira particular de algo” (voltei ao dicionário, como se vê). O que vem a ser o “particular” no caso da literatura, isto é, a natureza literária do texto. Bem narrar é saber “o ser de uma substância”, como defende a filosofia quando  trata de modo ou forma.

Na cultura literária superabundante do hoje, o modo particular da literatura se vê devorado pela pressa, pelo desconhecimento da natureza do texto literário, pelo desejo de fama e fortuna, pela moda em lugar do modo. Leyla Perrone-Moisés  esclarece: “Não é, pois, em nome de uma ‘alta cultura’ idealizada num passado melhor e mais puro que se pode defender a ‘alta literatura’, mas em nome de uma diferença que continua existindo na multiplicidade de práticas artísticas de hoje, uma diferença de qualidade (grifo meu) que se pode experimentar e demonstrar. (…) O julgamento da obra literária não pode ser apenas uma questão de gosto, e seu valor não pode ser medido em termos de consumo, tomando como critério sua vendagem ou sua publicidade.”

Continua a haver, na “história bem narrada” critérios de universalidade e de juízo estético a distinguir “o que há de melhor e mais valorizado” na literatura e o todo que se produz e se denomina hoje literatura.

Continuo a professar a crença de que, se mantivermos leitores apegados a textos que conseguem ler por serem mais do mesmo, envoltos na repetição sem horizontes de descobertas e desafios – mesmo que com emoção ou identificação – estaremos diante de leitores contabilizáveis (apenas números), mas jamais diante de leitores autônomos com capacidade crítica. Leitores que pululam no espaço, quais antenas de sinais para celulares. Jamais como faróis a advertir, sinalizar e, quem sabe, salvar neurônios navegantes.

A deselitização literária, portanto, não tem apresentado como resultado a popularização, mas a pauperização. No âmbito da literatura, sem os parâmetros da “fina flor”, o resultado será o “mal narrar”. De modo algum, esclareço, defendo que só os antigos narravam bem. Ao contrário. Deposito aos pés de Mia Couto, Mariana Ianelli e Luiz Rufatto uma oferenda de advérbios elitistas.

Observação indispensável: Este texto foi publicado pela primeira vez em 23 de novembro de 2016, sob o título “A letrada batalha entre adjetivos e advérbios“. A presente versão passou por atualização e acréscimos.

Investigação

Marta Morais da Costa

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Há alguma penalidade para aqueles que desumanamente abandonam seres humanos à própria sorte e guardam para si todos os recursos que poderiam dignificar a vida de todos?

Há alguma expectativa de futuro para um país que faz da educação um depósito de crianças e jovens que não veem horizontes, apenas cavernas escuras?

Há alguma manhã de sol nas previsões de uma sociedade que escolhe a noite da violência e o nevoeiro da ignorância?

Há alguma ressurreição possível nas milhares de covas plantadas na terra entranhada de gemidos, arquejos e lágrimas?

Há alguma nota dançando no ar, nascida da música de vidas de trabalho e de ânsias uma realidade menos amarga?

Há alguma alegria em assistir na tela reduzida do celular aquela live de amigos queridos que não se podem encontrar presencialmente, e muito menos abraçar?

Há nesta vida que se prolonga a possível pacificação dos temores e a desejável permanência de ímpetos e utopias?

Há alguma segurança para joelhos trêmulos levarem uma pobre carcaça até o ponto de ônibus ali adiante, passeando sobre pedras desencontradas de calçadas urbanas mal cuidadas?

Há alguma recompensa para olhos cansados que se esforçam para ler as letras miúdas de uma edição antiga de um romance de José de Alencar?

Há neste cansaço e amargura um caminho seguro para a terra de Oz, para o reino da rainha Luana ou para os Gerais?

No hiato das perguntas, nebulosas respostas se agitam e, impotentes, retornam ao silêncio.