Um dia mercurial

Marta Morais da Costa

Foto por Pavel Danilyuk em Pexels.com

Meu horóscopo vem avisando há dias que devo me precaver com a invasão do planeta Mercúrio na trajetória de meu signo, o que me obrigará a rever conceitos e a abrir mão  – e cabeça – em relação a meus valores morais e costais e a minhas posições pessoais em relação a crenças e falas.

Um aviso pra lá de sério; um alerta de respeito. Afinal, depois de tantas décadas pensando e discutindo e esquecendo e retomando e assumindo, chegar ao dia de hoje com a disposição de ainda mudar é projeto para mais de uma vida.

Nessa toada de precaução e cuidado fui ler os jornais do dia. Vício adquirido há décadas, do tempo do jornal impresso que saudade me dá. Não precisei de longas horas, nem de choques de realidade ou resistência a horrores. Encontrei em O Estado de São Paulo, fartamente acusado de ser um jornal de direita, uma pequena reportagem de Síbélia Zanon: “A mente aceita só aquilo em que acredita, dizem cientistas”.

 

Essas coisas da mente cada vez mais entram em meu cardápio diário de preocupações. É evidente que tem a ver com o desgaste dos anos e com o receio de perda das faculdades mentais. Nunca se sabe que qualidade de futuro terei. É bom, ao  menos, ter um pouco de informação pra não dizer, mais tarde, no auge da frustração “eu não sabia”.

 

Li a reportagem com zelo e sofreguidão. Lá está escrito que cientistas – logo pessoas de densa seriedade, em suas pesquisas descobriram, na Universidade de Stanford (USA) em testes “com estudantes universitários que tinham opiniões opostas sobre a pena de morte. Com base em dois artigos falsos – um que argumentava a favor e outro contra a pena de morte –, os estudantes apoiaram justamente aquele artigo que confirmava sua crença original”. Os cientistas concluíram “que ter as certezas contestadas serviu apenas como reforço para as próprias convicções.” E denominaram “viés de confirmação” essa característica mental.

Muito bem. Cientistas brasileiros da área da informação atestam que, mais do que confirmação, existe, por força das redes digitais e da circulação dos mesmos valores e crenças, o nascimento de uma “identidade prèt-à-porter”. Para quem não viveu essa moda e nem fala francês, a expressão significa algo como uma identidade que vem pronta para vestir, isto é, cujos padrões são pré-estabelecidos em grupos e bolhas de sócios das mesmas ideias e valores.

 

Foi o que bastou para que meu descanso de sábado se transformasse em desassossego de final de semana.

 

O que pretendemos na formação de leitores de literatura se não é a convivência com a diversidade, o descobrir que pensamentos antagônicos existem, que as pessoas são diferentes por natureza em seu físico e pela cultura em sua mentalidade?

 

Nesse desassossego caíram sobre mim todos os ssss de minhas pobres prédicas em favor da diversidade. Segundo a neurocientista Cláudia Feitosa-Santana,  “as conversas não ajudam a reduzir a polarização porque as pessoas acham que o diálogo está a serviço de desconstruir o argumento do outro.” Voaram pelas janelas e portas a importância que atribuí às rodas de conversa na formação de leitores.

Mais do que isso, a “eterna vigilância” das bolhas e do controle googlístico sobre o que nos interessa, restringe nosso pensamento àquilo que nos satisfaz e espelha.

Estamos, por consequência, fadados a conversarmos e vivermos segundo critérios e escolhas repetitivas? Poderemos, enfim, respondendo a alguns sites que nos perguntam se somos robôs, responder afirmativamente: sim, sou o robô FywXzV 5290941086!!

É verdade que não pretendo atravessar o planeta Terra só na planície, com algum planalto isolado e intrometido, rumo a um horizonte mais reto do que as linhas de meu monitor. Nem desobedecer a meu médico e fugir do posto de saúde com medo de virar jacaré ou ser ferido por uma agulha contendo um DNA invasor.

Mas reconheço que nem sempre conhecer a bolha opositora, quebrar barreiras e polarização é um estratagema recomendável para enfrentar o brandir de paus, pedras e balas ou para resolver, num ato de extrema arrogância, ignorância e covardia, abolir o tempo do rei de um relógio que nem digital era. Talvez porque, em sua ignorância e oclusão mental,  desconhecesse algarismos romanos e ponteiros e pensasse que todo dourado é ouro de tolo.

Enfim, sabendo de identidades prêt-à-porter, de vieses de confirmação, bolhas e reforços da própria opinião, cabe observar, analisar e, se for preciso, reformular metodologias para que o viver a beleza e diversidade da literatura, não seja uma atitude empática como a que descreve a reportagem, e que usar a palavra empatia não signifique cobrar empatia do outro, sem que nós mesmos sejamos empáticos.

Enfim, descobri que meu horóscopo estava certo: Mercúrio  bagunçou meu dia e minha mente.

 

Fonte; https://www.estadao.com.br/alias/a-mente-aceita-so-aquilo-em-que-acredita-dizem-cientistas/

 

O escritor

Marta Morais da Costa

Era um escritor desorganizado que escrevia à mão em folhas soltas. Alguns textos terminavam em uma só folha. Outros se estendiam por várias, que ele nem se dava o trabalho de numerar.

Espalhava os escritos pelo escritório: sobre a mesa de trabalho, sobre a poltrona de leitura, sobre o armário. Dentro de gavetas, pastas e caixas.

Depois recolhia os textos desordenadamente. Assim, a história de um pato manco continuava na história do menino alemão que viajava pelo Alasca. A história do navio fantasma virava de repente a do lobo faminto, perdido na floresta.

Por isso, nasciam histórias incríveis, que surpreendiam os leitores. No entanto, era um escritor famoso porque suas histórias pareciam relatos de sonhos.

E ele era amado por isso, porque os leitores esperam muitas vezes que o fantástico venha preencher os vazios da vida real.

Agora, o escritor está se aperfeiçoando. Escreve frases isoladas em pedaços de papel que espalha pela casa toda.

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Eliteratura

Marta Morais da Costa

“Nenhuma filosofia, análise ou aforismo, por mais profundo que seja, pode se comparar em intensidade e riqueza de significados com uma história bem narrada.” (Hannah Arendt)

As mutações de qualquer língua viva reservam muitas descobertas e surpresas se observadas ao longo do tempo. Quando alguém vive, como eu, um tempo de várias gerações, não são apenas as gírias que se modificam. Mudam também os significados de palavras, o torneio de frases e, sobretudo, os acréscimos nascidos do intercâmbio com outras línguas.

Penso em uma palavrinha malandra a girar na atualidade em bocas fornidas de dentes ideológicos. Ela emergiu em meu pensamento ao ler a citação de Hannah Arendt que encabeça este texto. A palavra é “elitista”.

Parti em busca de elos lógicos a fim de aclarar o que pretendo dizer. Antes de tudo, uma visita ao dicionário. Elitista, o sujeito que “faz parte de uma elite ou que comparte e defende posições elitistas”, tem na raiz o original francês “élite”. Palavra que recheou artigos, discursos e vitupérios em comunicações na história recente do Brasil. Francesismo com fumaças de acusações e revoltas que lembram barricadas e quedas da Bastilha. Termo que delata futuras decapitações. Catalisador de repulsa, ojeriza, discriminação.

Nem sempre foi assim.

Lembro que na infância e juventude, muitos acarinharam a “elite” como “o que há de melhor, de mais valorizado em uma sociedade; escol, fina flor, nata”, como também define o dicionário. Sem o peso acachapante da sociologia, elite era o alvo de olhares, de secretos desejos, de sadia inveja mal contida, de lutas por ascensão social. Notícias, filmes, fotos e narrativas alimentavam essa perspectiva de valores e prestígio localizados na elite. Revi recentemente um pouco disso em “A noite do meu bem”, do extraordinário cronista e biógrafo Ruy Castro. Uma biografia do samba-canção em uma sociedade carioca boêmia, endinheirada, a desfilar amores e elegância posada pelas boates do Rio de Janeiro, capital de um Brasil em grande parte desconhecido e perdido em sertões e pobreza.

Essa elite, porém, esbanjava um estilo de vida ideal e idealizado. Nada de lutas sociais entre nós e eles, na pobre dialética absoluta da atualidade. Ao menos, nada tão contaminado de rancores como no tempo presente. Discriminação havia, é claro. Afinal, as diferenças gritam, se espetacularizam, atingem os olhos como flashes mal direcionados.

Foto por Pixabay em Pexels.com

Ciente de minha ingenuidade sócio-ideológica e movida pela rede de significados que a mente produziu, enlaço Hannah Arendt e a elite que fui buscar na história e no dicionário.

Na citação, há evidente contraposição entre “filosofia, análise e aforismo” e literatura, contraposição também entre história narrada e história bem narrada. Os primeiros elementos (ou gêneros textuais, em linguagem mais científica) da comparação ocupam patamar inferior aos segundos, na visão de Arendt. Poder e prestígio estão na “intensidade e riqueza” do bem narrar. E não se trata de adjetivos acompanhando a literatura, como, por exemplo, narrativa regional, urbana, histórica, psicológica, fragmentada, não-linear, pós-moderna. Trata-se, sim e basicamente, de um advérbio, de um modo, de um modificador. Bem narrar não é apenas contar. Não é apenas escrever. Não é apenas o assunto ou a posição ideológica. É um MODO, uma “forma ou maneira particular de algo” (voltei ao dicionário, como se vê). O que vem a ser o “particular” no caso da literatura, isto é, a natureza literária do texto. Bem narrar é saber “o ser de uma substância”, como defende a filosofia quando  trata de modo ou forma.

Na cultura literária superabundante do hoje, o modo particular da literatura se vê devorado pela pressa, pelo desconhecimento da natureza do texto literário, pelo desejo de fama e fortuna, pela moda em lugar do modo. Leyla Perrone-Moisés  esclarece: “Não é, pois, em nome de uma ‘alta cultura’ idealizada num passado melhor e mais puro que se pode defender a ‘alta literatura’, mas em nome de uma diferença que continua existindo na multiplicidade de práticas artísticas de hoje, uma diferença de qualidade (grifo meu) que se pode experimentar e demonstrar. (…) O julgamento da obra literária não pode ser apenas uma questão de gosto, e seu valor não pode ser medido em termos de consumo, tomando como critério sua vendagem ou sua publicidade.”

Continua a haver, na “história bem narrada” critérios de universalidade e de juízo estético a distinguir “o que há de melhor e mais valorizado” na literatura e o todo que se produz e se denomina hoje literatura.

Continuo a professar a crença de que, se mantivermos leitores apegados a textos que conseguem ler por serem mais do mesmo, envoltos na repetição sem horizontes de descobertas e desafios – mesmo que com emoção ou identificação – estaremos diante de leitores contabilizáveis (apenas números), mas jamais diante de leitores autônomos com capacidade crítica. Leitores que pululam no espaço, quais antenas de sinais para celulares. Jamais como faróis a advertir, sinalizar e, quem sabe, salvar neurônios navegantes.

A deselitização literária, portanto, não tem apresentado como resultado a popularização, mas a pauperização. No âmbito da literatura, sem os parâmetros da “fina flor”, o resultado será o “mal narrar”. De modo algum, esclareço, defendo que só os antigos narravam bem. Ao contrário. Deposito aos pés de Mia Couto, Mariana Ianelli e Luiz Rufatto uma oferenda de advérbios elitistas.

Observação indispensável: Este texto foi publicado pela primeira vez em 23 de novembro de 2016, sob o título “A letrada batalha entre adjetivos e advérbios“. A presente versão passou por atualização e acréscimos.