Consultório editorial

Para Júlio,

Célia Cris e

Cristiane,

editores, por ordem de entrada em meu afeto.

Marta Morais da Costa

Minha mesa de trabalho é a oficina do Ão, do Cujo, do Sem Nome. Papéis de todos os formatos, em blocos ou avulsos. Textos fotocopiados e encadernados com capas de muitas cores, espirais, grampos e prendedores em busca de publicação.  Livros impressos – alguns bem mal impressos – de diferentes espessuras, de formatos os mais estapafúrdios – muito grandes, diminutos, redondos, com ou sem vazados, em tecido e plástico ansiando por reedição. Dentro deles, ilustrações que vão do desenho medíocre ao regular, do figurativo ao geométrico, da escola de Da Vinci à de Romero Brito, de Janjão das Contas  a Mariazinha de Belém. Enfim, a mixórdia habitual da mesa de um editor de literatura para crianças.

Esqueci de incluir nessa mesa a pasta de correspondências. Cartas em papel, algumas até manuscritas! Nela, também a imensa variedade das escolhas humanas. Cores diferentes, tintas e fontes diversas, com ou sem logos, monogramas, stickers, adesivos, etiquetas, ilustrações e cartões de visita… Uma delas trouxe a foto do remetente; outra, uma flor seca colada em papel perfumado.

Enfim, minha mesa é a oficina do Ão, do Cujo, do Sem Nome. Não pelo contém, mas pelo que o material me obriga a fazer: destruir, ignorar, renegar, recusar, mandar procurar outra turma. Os raros sins implicam ainda muito trabalho: sugestão de correções, alterações, novos títulos, cortes na abundância de adjetivos, na sobra de preposições, na obesidade dos verbos. E a pontuação! É tanto erro que repasso a tarefa ao revisor, porque é paciente, minucioso e calado.

Foto por Pixabay em Pexels.com

Eu poderia responder às cartas que me pedem edição de originais com respostas-padrão. “Lamento, mas nosso catálogo está completo para este ano.” “Lamento, mas seu original não atende a linha editorial.” “Lamento que, apesar da qualidade de seu material, não temos interesse em publicá-lo.” E assim por diante.

Poderia fazer assim. O capeta, porém, mora em mim. Respondo individualmente e em consonância com as mensagens enviadas. E não dou ponto sem nó. Explico-me melhor. Suponhamos que recebo um original, cujo autor me escreve um pedido nos seguintes termos:

“Senhor Editor”, (muitas cartas começam assim, no masculino predominante e em maiúsculas para afirmar minha autoridade e meu poder, penso eu) em anexo envio um original de minha autoria, dirigido ao público infantil. Sei que sua renomada editora… (“renomada” faz parte do puxa-saquismo nacional!)… busca novos autores e, por isso, tomei a liberdade de enviar-lhe meu original. É uma história de amizade, fraternidade, solidariedade e devotamento… (ufa, ainda bem que me poupou de mais um –ade!)…entre dois animais: um urso e uma arara…(ops, se encontraram onde? Em um zoológico multiambiental , tipo do gelo aos trópicos?) … que representam um adulto e uma criança,… (É evidente que o urso não é quem representa a criança!) …capazes de interagir e se compreender, anunciando no final feliz a possibilidade de um futuro melhor para a humanidade!!!(devo comentar na resposta esta  missão impossível? ainda mais com três exclamações?) Aguardo uma resposta afirmativa e…(por que os autores veem o mundo editorial como a Grande Mãe ou o Asilo dos Escritores?) Desejo-lhe uma boa leitura. (Meu Hades, já prevejo o que ela imagina ser uma boa leitura!). Atenciosamente, Maria Fernanda da Silva Gaspar de Oliveira, a Esperançosa. (corações, beijinhos e flores de gosto duvidoso em stickers…).

Resposta do editor (no caso, eu, mulher):

Prezada senhora Maria Fernanda da Silva Gaspar de Oliveira, (a ironia do adjetivo serve como anestesia para a cirúrgica amputação que segue) em resposta à sua elegante cartinha (mais hipocrisia) comunico-lhe que o mundo cor-de-rosa de seu urso e de sua arara não tem igual no Universo. Ocorre que esta editora tem uma linha de publicações que considera os leitores-crianças seres inteligentes e não criaturas dóceis que engolem qualquer historinha insossa e previsível, como a sua.

Cordialmente, (mais hipocrisia)

Mariana Morais Miranda Guerra.

Aqui, da mesa do Ão, em 18 de abril de 2018.

Admito que minha editora tem um catálogo reduzido. O trabalho, porém, jorra inesgotável de minha mesa. Estes olhos míopes tendem a fechar-se na altura do primeiro terço dos originais. Aos poucos, surge um sufocante nó na garganta.  É sinal inequívoco para interromper a leitura, porque os neurônios se movem adoidados, sem rumo e em revolta. Meus Campos Elíseos! Por que autores de livros para crianças se parecem a Torquemadas, prontos a jogar em fogueiras os indefesos pequenos leitores pelo crime de quererem arte  e não sermões? Literatura e não exercícios narrativos autoritários, recobertos pelo mel das boas intenções? Se as crianças que esses escritores concebem são o futuro deste país, pobre Brasil!

No entanto, como boa capeta, sou uma editora de princípios. Somente entra no catálogo o texto que ocupar um espaço de provocação. Não sou de Guerra à toa. Não me dobro a mistificações ocultas sob o manto subversivo da literatura. Uau, esta frase ficou retumbante! Vai para a legenda abaixo do logotipo da editora. Acompanhada de uma vibrante chama vermelha. Ops, estereótipo não!

Uma ideia melhor clareia meu propósito. Na logo, colocarei a imagem estilizada de minha mesa editorial e um lema em latim caprichado para criar uma aura de distinção: Ipsa littera potestas est. (Por sugestão do revisor de texto paciente, minucioso e quase calado, esclareço que o lema quer dizer: A letra é poder.). Ficou meio sem graça, não é? Acho melhor não traduzir. Assim não trairei a aura da erudição. Ocultarei este parágrafo do revisor de texto paciente, minucioso e crítico.

Desperto da derrapagem.

Num canto da estante, poucos originais à espera de uma segunda leitura. Ao lado da mesa, uma fragmentadora de papeis.

Adendo 1: Este texto foi publicado no site da Editora Olho de Vidro em 16 de março de 2018. Eu o retomei, fiz algumas alterações e o republico porque gosto muito dele. Espero que meus poucos leitores não me abandonem de vez em razão de eu estar me repetindo, fazendo replay de mim, incapaz de escrever algo original. Tenho que reconhecer que talvez estejam certos.

Adendo 2: Por indicação do Marcelo del’Agnol, esta curta crônica me levou ao livro “A arte de recusar um original”, de Camilien Roy, que gostei demais de ler e com o qual me diverti muito. Nele aprendi novas técnicas de dizer “não” a qualquer escritor. Já estou preparada para criar uma editora, já que o trabalho de escritora fracassou ao me levar a redundâncias e autoplágios.

A solidão da mais alta prateleira

Foto por Film Bros em Pexels.com

Marta Morais da Costa

Em obra sobre livros e bibliotecas, encontrei uma poética imagem de Lorde Macaulay sobre o sentido atribuído ao estado e à posição de certos livros na estante: “a poeira e o silêncio da mais alta prateleira”. Pensando em paredes cobertas de volumes, algumas somente alcançáveis por banquetas ou escadas, e refletindo sobre os valores que nos levam a organizar e dispor os livros num lugar determinado, escolhendo para eles tal ou qual companhia na estante, percebo o quanto de nossas transformações ao longo da vida se refletem nas bibliotecas que temos ante os olhos. Como os organizamos? Por assunto, época histórica, cor, ordem alfabética, gênero, coleção, tamanho, importância afetiva? Ou mais excentricamente ao sabor do acaso e do tempo em que foram lidos?

Quero convidar o leitor a pensar no exílio a que destinamos os livros de nosso acervo bibliográfico ao colocá-los nos lugares mais inacessíveis aos olhos e às mãos. Não penso num acervo extraordinário, como o de José Mindlin, nem numeroso como o das bibliotecas universitárias ou públicas. Basta pensar o que nos leva, diante da necessidade de escolher entre os livros que ficarão em fácil acesso e aqueles que ocultamos do olhar em prateleiras mais altas, ou em caixas depositadas em sótãos, ou em depósitos pouco frequentados da casa.

Que livros escolhemos para deixar ao alcance imediato da mão e à localização rápida do olhar? Por que relegamos aos cantos de prateleiras ou aos lugares de mais difícil acesso este ou aquele volume? Que critérios definem a visibilidade e a possível leitura, ou releitura, de um livro?

Começo uma possível justificativa pela suposição de que se encontram acessíveis os livros mais usados e/ou os mais amados. Utilidade e amor não estão necessariamente relacionados. No magistério, talvez eles vivam uma relação de constante confronto. Não uso em minhas aulas os textos de que mais gosto ou, em situação mais dramática, os livros que mais uso não são os de que mais gosto. Na primeira situação, vigora a censura de toda ordem (ideológica, moral, pedagógica, estilística). Na segunda, o conflito e o contraste: entre o que ensino e o que me interessa ler há um inescapável e definitivo divórcio. O perfeito casamento da utilidade com o gosto e o amor depende de tantas variáveis quanto em qualquer relacionamento entre seres humanos. Afinal, o livro também pode ser considerado, em metáforas humanizadas, o amigo, o companheiro, o confidente, o vilão, o inimigo…

Além da incompatibilidade, relegamos para a prateleira mais elevada os livros que, um dia, estiveram ao alcance da mão simplesmente porque hoje somos leitores diferentes. Ou aqueles que foram um erro de aquisição, mas dos quais não nos apartamos mesmo assim. Ou aqueles com os quais nos presentearam em absoluto desacordo com o que pensamos ou queremos ler, mas nos lembram pessoas ligadas indissoluvelmente à nossa história. Ou aqueles que em sua forma menos amorosa já lemos, mas sobre os quais não prevemos a mais remota possibilidade de nova leitura. Livros que deixaram seu silêncio original, passaram pelo processo de leitura e voltaram a um silêncio diferente, o do abandono. E ficaram a acumular a poeira do esquecimento e da solidão. Papel encadernado e desenhado, agora inútil e desdenhado.

Gostaria de imaginar para esses livros uma leve esperança: a de que eles tenham sido colocados no espaço menos acessível porque a utilização e a leitura, embora remotas, não são inexistentes. Livros que ficam à espera de um tempo de leitura mais propício, que tiveram de ser alçados à última prateleira porque alguns ali precisam estar, em razão de que os outros espaços foram todos sendo preenchidos e que, afastada a intenção do descarte, o leitor saberá como os atingir e ler no momento em que o desejar, bastando para tanto uma banqueta ou os degraus de uma escada. Caixas e estantes pouco iluminadas e esquecidas, que a necessidade de redescoberta do passado pode trazer novamente à luz, como a maravilhosa aventura leitora do protagonista Yambo de A misteriosa chama da Rainha Loana, de Umberto Eco, que, tendo perdido parte de sua memória, recupera-a paulatinamente ao redescobrir o acervo de materiais de leitura esquecidos em sua antiga residência. Quais leitores já viveram a emoção de ter novamente nas mãos o volume que marcou a infância, a adolescência, que trouxe um momento de transformação pessoal no passado? Esse novo nascimento do livro, que incendiou a escuridão da memória da leitura antiga, estará em algum momento vinculado ao movimento das mãos e dos olhos a limparem a poeira e ao fazerem falar o livro guardado, até aquele momento silencioso.

“A poeira e o silêncio da mais alta prateleira” não serão assim, sinais de abandono, mas de esperança de um dia essas páginas alçarem voo das alturas e, como Ícaros menos trágicos, virem a cair em mãos e mente de um leitor transformado pelo tempo. Então abrirão como asas para a jornada do conhecimento e do prazer, e, talvez, da memória até aquele momento adormecida.

A ÁGUA É O MATRIMÔNIO DA HUMANIDADE

Dedico a Guilherme, meu neto,

 e Eliana Yunes, amiga de muitas águas,

aniversariantes.

Marta Morais da Costa

O título acima não é um erro gramatical ou de digitação. Não o inventei. Ganhei de presente de um colega, entre risos e pensamentos até inconfessáveis, em uma sessão de julgamento de redações há algum tempo atrás. Um (ou uma?) jovem vestibulando (a) usou a comparação para argumentar a respeito dos cuidados que devemos ter com a água, que esbanjamos como se fosse eterna.

Vivemos tempos de restrições e de seca, seja de movimento por causa do coronavírus, seja de racionamento de água. E desejar o paraíso de poder correr de um lado a outro, livres, ou de imaginar  a água a fluir em espaços domésticos e na natureza é parte de nossa utopia neste 2020 aziago.

O que passou pela mente jovem e entusiasta ao associar o termo usual (patrimônio) e a descoberta da concordância, segundo seu entender, indispensável entre o sujeito da frase e seu predicativo? A água é patrimônio soa desconforme. Patri- é herdeiro de pater, pai, masculino, impeditivo, normativo, obstaculoso e obstaculador. A água fluida é mais o sentimento feminino, a adaptabilidade, a fonte e a origem. Ao mesmo tempo, é conjugação de componentes: H2O é fórmula geminada, dupla, conjugada.  Combina  melhor com matrimônio.

Lembro versos de Drummond em Menino antigo:

O Pai é imenso. A Mãe, pouco menor.

Com ela, sim, me entendo bem melhor:

Mãe é muito mais fácil de enganar.

(Razão, eu sei, de mais aberto amor.)

Lembro também Adélia Prado e sua conclusão imperiosa de que “Mulher é desdobrável”. Revejo na memória de leitura todos os poetas da água, desde o Amazonas caudal e misterioso de Cobra Norato, de Raul Bopp, à água que banha Manaus dos romances de Hatoum, as águas profundas e simbólicas de Grande sertão: veredas e a viagem pantaneira de Manoel de Barros, bem como as águas sulinas de Breviário das terras do Brasil, de Luiz Antônio de Assis Brasil e Os rios inumeráveis, de Álvaro Cardoso Gomes. Todos esses (e muitos mais) caminhos de água doce por onde viajam e cruzam as embarcações que carregam origens e brasileiros de todos os tempos.

Foto por Pixabay em Pexels.com

A mãe e as águas. A mãe das águas: Iara, a que deseja, atrai e mata. A mulher matrimônio.

São tempos de queimadas e de assassinato da natureza neste Brasil de meu Deus, que costumava ser dadivoso e compartilhável, e que se transforma dia a dia, por incúria e ganância, no deserto de “tenebrosas transações”, como Chico Buarque advertiu.

Voltando à descoberta juvenil, pode ser que a receosa e tensa candidata (imagine aqui, leitor, também as formas masculinas) a uma vaga na universidade não tenha feito nenhuma dessas associações. Mas esta leitora que aqui escreve, sim. A analogia tomada por outros colegas leitores enquanto erro ou manifestação de incapacidade linguística, pôde provocar em mim outra interpretação. E indagações.

A mãe-matrimônio da humanidade também pode ser considerada a linguagem verbal, oral ou escrita, pois permite ao leitor fecundado criar, por sua vez, e disseminar sentidos, valores, belezas, enganos, ilusões…

O livro-útero, cuja água placentária envolve o leitor e na qual ele experimenta e aprende a reconhecer a autoimagem (borrada, deformada, cruel ou prazerosa) em vivência solitária num primeiro momento.

Que mistérios e belezas esconde a língua nesses encontros inesperados? O quanto pode criar o leitor a partir de textos sem intenção estética? Freud acena com os achados dos lapsos inconscientes e o leitor deleita-se com a busca dos processos analógicos e das razões (conscientes) que originaram as imagens reveladoras.

O leitor, essa figura metamórfica e plural, arredia, desconfiada ou apaixonada – e entregue -, mas sempre em busca de uma parcela de identidade em cada livro lido. Identidade que foge, como correm as águas dos rios.

Em O último leitor, o ficcionista e professor argentino Ricardo Piglia escreveu estudos sobre autores (Borges, Kafka, Tolstoi e Joyce) além de estudos sobre leitores. O prólogo trata de um fotógrafo, que “diz que se chama” Russell. Ele constrói uma maquete, antes uma “máquina sinóptica” da cidade de Buenos Aires, fruto de sua interpretação da cidade “que era mais real do que a realidade, mais indefinido e mais puro”. Piglia, citando Pound, reafirma que “a leitura é uma arte da réplica”. A tentativa de compreender e o fascínio pelo que se consegue apreender do que se lê, tornam a nós, leitores, seres replicantes.

Esta crônica tem a ver com o desejo de replicação, maternidade torta em busca de continuidade, enraizada na frase desajeitada do tenso e esperançoso vestibulando (leia-se aqui sua versão feminina também) e no entusiasmo pelo texto denso de Piglia, a procriar sentidos em mim.

Bordado

                                                                          Marta Morais da Costa


A linha, que trama
e cobre o pano
imagem e cor,
traduz compassos
de um concerto de maciez e relevos.
No risco, o desenho a se fazer corpo
que os dedos acariciam
sensualmente.
Os fortes fios
mergulham em abismos,
revelam em seda e algodão
segredos imersos
nos mares do tecido
que, impudico, se abre
ao toque e ao parto
das mãos artífices.
 
Bordar o dentro
como quem desenha
riscos no mar,
segredos de corais,
pérolas
e serpentes.
Foto por Simon Clayton em Pexels.com

PAIS E PAÍS

Foto por Irina Anastasiu em Pexels.com
Olha, já estou roendo unha

A saudade é testemunha

Do que agora vou dizer

Quando na janela

Eu me debruço

O meu cantar é um soluço

A galopar no maçapê




(Roendo unha, de Luiz Gonzaga e Luiz Ramalho)

Sei que os números são criação humana e que o sistema decimal é uma convenção. Mas quando alguns algarismos se alinham com zeros à direita, como tudo ganha um formato diferente. Um sentido mais intenso. Uma noção de ciclo que finda ou que se inicia.

Assim foi com o ano 1000, assim vivemos em 2000, e agora sufocamos com 100.000.

Neste 9 de agosto, um Dia dos Pais à distância, seja por causa do confinamento com temores e esperanças, seja por causa do com fim dos que se foram sem a presença dos filhos que geraram, sem a presença da mulher com quem os gerou. Pais que deixam retratos, soluços e saudade.

Aos que estão ao alcance da voz, da imagem em telas, à espera da visita próxima no tempo e na distância, será um Dia dos Pais passível de adiamento, mas pleno das expectativas de abraços e beijos e olhos e carinhos logo ali adiante.

Dos que sumiram na aterradora dimensão da vida e que ultrapassaram o limite da existência ficou o perfume ácido da saudade, os rios sofridos que viajam  pela planície da ausência, a memória dolorida de momentos marcantes e de horas e dias fugazes, perdidos, não vividos em plenitude e agora desaparecidos para sempre.

É normal, previsto e fatal que um dia nos faltassem. Mas que tivessem o tempo de vida roubado e antecipado é imperdoável e incompreensível. Hoje mais do que nunca. Em especial quando o descaso de muitos, quando a prepotência de tantos, quando a insensibilidade de milhões conseguiram produzir uma chacina sem precedentes no Brasil.

Não há solidariedade, nem sacrifício de profissionais de saúde e nem equipamentos que estanquem a falta de ar, a falta de medicamentos, a falta de competência e falta de vergonha em quem poderia diminuir essa tragédia.

Um país que se esboroa, em frangalhos, poroso a todas as desumanidades e desumanização, fruto de pessoas que se dedicam de corpo e alma ao dinheiro e ao poder, crava dentes cada vez mais incisivos na carne de seus compatriotas, arrancando-lhes últimos suspiros a cada minuto do dia.

Pais, mães e filhos, em uma conta macabra, não cansam de preencher estatísticas, gráficos, murais de fotos e valas – milhares de valas – em todo o país.

Números redondos que possuem pontas afiadas a ferir de mortes simbólicas e afetivas a outros milhares de brasileiros.

Já existe quem diga que em três anos teremos esquecido a pandemia. Há quem diga que a vida normal deixará de existir. Há quem diga que nada se deve lamentar pois todos morreremos um dia, há quem diga que esses números são inflados por ideologia, há quem simplesmente diga se não for da minha família, tudo bem.

Na verdade, 100 000 brasileiros levaram com eles uma parte de nossa história coletiva, uma parte de nosso sentir solidário, uma parte da identidade deste país.

Deixaram para trás uma nova identidade que arreganha os dentes, que fuzila com o olhar e que distribui a mancheias doses letais de indiferença.

Pais ausentes que posam em retratos retorcidos de um pobre país.

 

Marta Morais da Costa