O  “Oscar da lacração”

Marta Morais da Costa

Foto por Pixabay em Pexels.com

Que a língua é um organismo vivo, sabemos.

Que os falantes contribuem com termos novos continuadamente, já sabemos.

Que as gírias e jargões identificam, entre outros, grupos sociais, econômicos, profissionais, culturais e etários, estamos cansados de saber.

Mas (há sempre um mas no meio do caminho) ter que ir buscar no dicionário o significado da manchete de uma notícia para confirmar se o que a oralidade nos conta é a mesma narrativa que a língua escrita compreende, dá uma torção na autoestima. A gíria que desconheço é proporcionalmente mensurável com a idade a que consegui chegar. Em palavras mais cruas: pô, estou velha!

Na leitura diária dos jornais, geralmente feita como um exercício de despertar (em vários sentidos), encontrei hoje cedo a manchete que serve de título a esta crônica.

Não assisti à cerimônia da entrega do Oscar 2022. E não foi somente a este evento: não me movo no movie segundo o que a estatueta comanda. Tenho curiosidade, claro, como sou curiosa por resultados de futebol, por estatísticas, por pesquisas, por previsões e resultados de eleições. Procuro manter disso tudo uma distância que me permita continuar saudável. Principalmente manter o sono estável. Sem aquela de “sou inocente e durmo tranquila”! Durmo com todos os meus pecados, principalmente com os de estimação.

Mas um Oscar de lacração tem a ver com públicos e com recepção. E confesso que aí a coisa fica mais interessante para mim. Não é exatamente sobre a qualidade dos filmes a que o título da notícia faz referência. Mas à própria rentabilidade de público para a premiação tradicional. Os jornalistas apontam o dedo em riste para o fracasso de edições recentes do evento. As notícias insistem nas novidades inseridas no roteiro e nos apresentadores deste ano.

Aí, a situação fica mais interessante. Um público de cinema que adora espetacularizar e ser espetacularizado. Um público de espectadores movido por histórias de vida, de superação, de glamour, de sucesso, de emoções que a vida real não lhes trouxe.  O mundo das fadas da arte cinematográfica, com seus ogros e bruxos indispensáveis.

O tapete vermelho, vitrina da moda; os artistas em poses e previsões sobre ser ou não favoritos à estatueta; os grupos em lugares acessíveis pelas câmeras-olhos do mundo; os bordões e gags e piadas narcísicas e centradas no mundinho do cinema. E aqui fora os cavalinhos correndo.

Adoro cinema, minha imaginação foi e continua sendo nutrida por ele. A pandemia favoreceu muitos banquetes à la Babette e intoxicações de lixões. Senti a ausência das comunidades de auditórios e salas, reunidas por causa das telas e histórias.  Confesso que se pudesse estar frente a frente, olhos nos olhos com Frances McDormand, Olívia Colman, Judy Dench ou Viola Davis  ficaria para sempre muda e paralisada pela emoção. Para citar as que andam vivas nas ruas reais. Vê-las na telinha do televisor ao menos me impede um infarto.

Mas a cerimônia do Oscar me exclui por uma razão muito simples: se for pra competir, prefiro o esporte; se for pra exaltar, prefiro meus heróis próximos; se for pra mitificar, estou fora. É um espetáculo tedioso para quem tem mais o que ler e escrever. Nem para copiar e/ou admirar modelitos das atrizes famosas ou pretendentes a) me serve. Até porque tenho noção do ridículo. E espelhos.

A sucessão de nomes, fotos, cenas, fragmentados e isolados mostrados na assim proclamada cerimônia conta uma história que é pura ilusão, mais do que o cinema naturalmente produz. Dirão alguns que é o reconhecimento do trabalho de técnicos, atores, diretores e todas as pessoas que constroem essa indústria de arte e de dinheiro. Nem assim. Prefiro que meu jornal diário lacre quem está fazendo um trabalho meritório de alimentar o imaginário ensinando a pensar e a pescar. Quem está lutando bravamente para afirmar sua humanidade e sua competência erguendo casas, iluminando a vida, mantendo os espaços limpos de sujeira material e moral.

Artistas são o sal da terra, talvez seu Himalaia. Espetáculos de premiação são disputas de poder. Festa, ornamento, carnaval que termina em uma quarta-feira de cinzas. Para mim, é mais lucração do que lacração.

Agora, com licença, vou rever “Três canções para Benazir”, mais feroz do que um ataque de cães e em ritmo de um coração despedaçado.

Que fazer? Sou mesmo inclinada a tragédias…

Os bonitinhos 1

Marta Morais da Costa

Foto por Pixabay em Pexels.com

O rádio do carro me faz companhia. Fico sabendo que há uma campanha pública para adotar um ninho artificial para que os papagaios em quase extinção na Serra do Mar possam se acasalar e procriar. Uma iniciativa meritória em um país tão pouco cuidadoso com sua natureza. Um país que considera meritórias narrativas com bichinhos tão bonitinhos de carinha tão amigável e pelos que pedem carinho. Veja, Carlinhos! Observe, Luisinha! Não é lindo, Aninha? Com isso cresce a meiguice, a noção falseada sobre ratos e aranhas, ursos e serpentes, mas todos animais dignos de cuidados: tão bonitinhos!

Em um país nem tão distante, nas fotos e vídeos, as expressões de medo, o olhar assustado, a mão pequena colada na mão da mãe, as crianças esquecem as narrativas e seus personagens para atravessar corredores humanitários em fuga incompreensível. A disputa do espaço da rua não se dá com carros ou com brincadeiras: a paisagem é ocultada pelo carro de combate, pelas armas, pelo fogo que resta da batalha sem piedade. Nenhum livro, nenhuma escola, nenhuma paz doméstica preparou esses perdidos meninos e meninas para um tempo de guerra.

Os olhos que veem a guerra, viram a vida tranquila. Os olhos que viram a paz, agora contemplam as armas. Talvez na sua perdoável ignorância, achem tudo com cara de brincadeira, a mesma, só que em versão trágica. O gesto das mãos continua a cuidar do figurino da boneca amada, a fazer rodar o caminhão de bombeiros, tão bonitinho, vermelho e com luzes piscantes! Marcha, soldado/cabeça de papel…

As crianças de guerras pautadas pelo absurdo estão espalhadas pelo chão que sangra, ou deitadas em macas de flores vermelhas regadas com abundância, ou olhando incrédulas de olhos abertos e imóveis um céu enegrecido pela bestialidade adulta. Não mereceram nem os cuidados que animais predadores recebem nas histórias que ninguém mais lhes contará.

Crianças tão bonitinhas longe de seus bichinhos tão bonitinhos, maiúsculas em seu sacrifício, berrando cá dentro em mim a dor de um tempo convulso e sem remissão.

Veja, Carlinhos! Por que você está dormindo, Luisinha? Não é triste, Aninha?

AVESSOS

Marta Morais da Costa

 

nas contas opacas de um colar de dores

a cinza leve de um corpo ausente

 

no sorriso tímido de um rosto magro
a voragem imersa da fome atroz
 
a lua alfange mira o vácuo
a vida desatenta se esvai
 
no canto do quarto em silêncio
o menino sorve o veneno do sonho
 
a noite insensível ensombra
 
ela dá as costas e tranca a porta
desta vez sem volta.
Foto por Lucas Pezeta em Pexels.com

FINÍLOGO

Marta Morais da Costa

O livro chega ao fim. Choro devidas lágrimas. Ou um entressorriso de final feliz. Ou um brutal ponto de interrogação: como? acabou? mas “isso” é um final?

Final não sei, mas sinal de resposta do leitor “isso” é.

Mas, e para quem escreve?

Chegar ao final é brindar com champanha como no filme “Obsessão”?

Tirar toneladas de temores e ansiedade dos ombros e da consciência?

Colocar o computador no modo enviar e jogar a bomba no colo do editor?

Ou é sair sorrateiramente no meio da madrugada e ir beber sozinha no Bar Fim de Noite no largo São Judas aqui no calçadão do bairro?

Ou é fechar o arquivo do livro ainda sem título, deixar pra amanhã, escovar os dentes e cair com a roupa de trabalho na cama desalinhada e deixar Morfeu atacar com mísseis e obuses o corpo em exaustão?

Só sei que ao acordar só lembrava os deuses do Olimpo tentando me convencer que a vida continua e vale a pena.

Não sei se foram eles, não sei se foi minha contraparte enxerida e digitante, não sei se copiei de algum site e esqueci qual, mas, ao abrir o computador no dia seguinte, saltou pra tela o último escrito da noite do fim do livro.

Peço aos amigos e inimigos, a algum e nenhoutros que escrevam pra mim dando respostas ou pistas mínimas sobre a autoria da cantilena que transcrevo.

Desde já considero que amigos ou inimigos respondentes integrarão a história do livro que, recém-findo, já deve andar por aí leve e solto, pronto para afagos e sopapos. Sempre receptivo a outras e novas palavras.

Foto por Stefan Messing em Pexels.com

Desenlaçamento

 

Um ensaio crítico sobre a história do livro pode ser a costura entre retalhos de histórias de livros, tal como uma história da leitura resulta do somatório parcial de histórias de leitores.

O propósito de aproximar, comparar, escolher e redigir fatos esparsos, coletados por outros escritores vários e diversos, é um exercício de persistência, de leitura de incontáveis páginas (impressas e virtuais), de um amálgama de materiais por vezes conflitantes, de um exercício diário de escolhas, de descartes, de favorecimentos.

Para quem escreve é, acima de tudo, estar em constante estado de aprendizagem. Não apenas de assuntos ou fatos ou narrativas sobre fatos, mas aprendizagens de entrelinhas, de empatias, de concordâncias e discordâncias teóricas e ideológicas em busca da construção de um texto denso e fluido, informativo sem ser cansativo, de admiração sem ser acrítico.

O resultado geralmente deixa lacunas no tecido da escrita pela impossibilidade de usar todos os fios, de saber que uma nova leitura trará à tona informações submersas. Emerge também o desejo maior e sempre avassalador de reescrever, de adicionar, de limar o estilo, de apagar impurezas, de recomeçar.

A escrita de um livro é sempre o desejo de reescrevê-lo.

Esse sentimento de recomeço corre paralelo ao momento da despedida, ao se colocar no alto da página a palavra “conclusão”.

No entanto, é necessário neste livro, que irá lançar-se ao mar dos leitores e do infinito de obras já escritas, colocar o ponto final – na realidade, as reticências.

Para tanto é preciso (re)ler, (re)ver o que ficou nas páginas anteriores e procurar dar a elas um norte, uma amarração, ou como Nanci Nóbrega ensinou, um arredondamento. Juntar o fim com o começo e o meio, e como a mítica serpente Ananta, percorrer o espaço sem tempo, fechar um círculo, uma etapa, um trabalho. Então, vamos concluir.