Um dia mercurial

Marta Morais da Costa

Foto por Pavel Danilyuk em Pexels.com

Meu horóscopo vem avisando há dias que devo me precaver com a invasão do planeta Mercúrio na trajetória de meu signo, o que me obrigará a rever conceitos e a abrir mão  – e cabeça – em relação a meus valores morais e costais e a minhas posições pessoais em relação a crenças e falas.

Um aviso pra lá de sério; um alerta de respeito. Afinal, depois de tantas décadas pensando e discutindo e esquecendo e retomando e assumindo, chegar ao dia de hoje com a disposição de ainda mudar é projeto para mais de uma vida.

Nessa toada de precaução e cuidado fui ler os jornais do dia. Vício adquirido há décadas, do tempo do jornal impresso que saudade me dá. Não precisei de longas horas, nem de choques de realidade ou resistência a horrores. Encontrei em O Estado de São Paulo, fartamente acusado de ser um jornal de direita, uma pequena reportagem de Síbélia Zanon: “A mente aceita só aquilo em que acredita, dizem cientistas”.

 

Essas coisas da mente cada vez mais entram em meu cardápio diário de preocupações. É evidente que tem a ver com o desgaste dos anos e com o receio de perda das faculdades mentais. Nunca se sabe que qualidade de futuro terei. É bom, ao  menos, ter um pouco de informação pra não dizer, mais tarde, no auge da frustração “eu não sabia”.

 

Li a reportagem com zelo e sofreguidão. Lá está escrito que cientistas – logo pessoas de densa seriedade, em suas pesquisas descobriram, na Universidade de Stanford (USA) em testes “com estudantes universitários que tinham opiniões opostas sobre a pena de morte. Com base em dois artigos falsos – um que argumentava a favor e outro contra a pena de morte –, os estudantes apoiaram justamente aquele artigo que confirmava sua crença original”. Os cientistas concluíram “que ter as certezas contestadas serviu apenas como reforço para as próprias convicções.” E denominaram “viés de confirmação” essa característica mental.

Muito bem. Cientistas brasileiros da área da informação atestam que, mais do que confirmação, existe, por força das redes digitais e da circulação dos mesmos valores e crenças, o nascimento de uma “identidade prèt-à-porter”. Para quem não viveu essa moda e nem fala francês, a expressão significa algo como uma identidade que vem pronta para vestir, isto é, cujos padrões são pré-estabelecidos em grupos e bolhas de sócios das mesmas ideias e valores.

 

Foi o que bastou para que meu descanso de sábado se transformasse em desassossego de final de semana.

 

O que pretendemos na formação de leitores de literatura se não é a convivência com a diversidade, o descobrir que pensamentos antagônicos existem, que as pessoas são diferentes por natureza em seu físico e pela cultura em sua mentalidade?

 

Nesse desassossego caíram sobre mim todos os ssss de minhas pobres prédicas em favor da diversidade. Segundo a neurocientista Cláudia Feitosa-Santana,  “as conversas não ajudam a reduzir a polarização porque as pessoas acham que o diálogo está a serviço de desconstruir o argumento do outro.” Voaram pelas janelas e portas a importância que atribuí às rodas de conversa na formação de leitores.

Mais do que isso, a “eterna vigilância” das bolhas e do controle googlístico sobre o que nos interessa, restringe nosso pensamento àquilo que nos satisfaz e espelha.

Estamos, por consequência, fadados a conversarmos e vivermos segundo critérios e escolhas repetitivas? Poderemos, enfim, respondendo a alguns sites que nos perguntam se somos robôs, responder afirmativamente: sim, sou o robô FywXzV 5290941086!!

É verdade que não pretendo atravessar o planeta Terra só na planície, com algum planalto isolado e intrometido, rumo a um horizonte mais reto do que as linhas de meu monitor. Nem desobedecer a meu médico e fugir do posto de saúde com medo de virar jacaré ou ser ferido por uma agulha contendo um DNA invasor.

Mas reconheço que nem sempre conhecer a bolha opositora, quebrar barreiras e polarização é um estratagema recomendável para enfrentar o brandir de paus, pedras e balas ou para resolver, num ato de extrema arrogância, ignorância e covardia, abolir o tempo do rei de um relógio que nem digital era. Talvez porque, em sua ignorância e oclusão mental,  desconhecesse algarismos romanos e ponteiros e pensasse que todo dourado é ouro de tolo.

Enfim, sabendo de identidades prêt-à-porter, de vieses de confirmação, bolhas e reforços da própria opinião, cabe observar, analisar e, se for preciso, reformular metodologias para que o viver a beleza e diversidade da literatura, não seja uma atitude empática como a que descreve a reportagem, e que usar a palavra empatia não signifique cobrar empatia do outro, sem que nós mesmos sejamos empáticos.

Enfim, descobri que meu horóscopo estava certo: Mercúrio  bagunçou meu dia e minha mente.

 

Fonte; https://www.estadao.com.br/alias/a-mente-aceita-so-aquilo-em-que-acredita-dizem-cientistas/

 

Quando o ano principia

(…)

Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste

(…)

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar

Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer

Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você

 (“Eu não existo sem você, música e letra de Tom Jobim)

Não sei o porquê, mas sei que ela veio. Não sei se eu assim o queria, mas sei que ela veio. Não sei se será útil, mas sei que veio.

A canção de Tom Jobim surgiu como sonoplastia do desejo de escrever a respeito da chegada de mais um ano em nossas vidas.

Quando pesquiso biografias, na infinita curiosidade de saber da vida dos outros e de trazer o que viveram como lição para minha existência, encontro invariavelmente ao lado do nome a informação sobre o ano de nascimento e o da metamorfose para algum estágio que não sei como é. Embora acredite que exista.

É porque são datas extremas e limites do conhecimento racional. Antes de nascer, uma promessa. Depois, ao final, um desejo, em especial de quem fica. Mas as datas anuais ali estão e ali permanecerão. É verdade que os calendários mudam, adaptados a culturas e a decretos do poder. É verdade que nossos mais que antepassados, vivendo em tempos de pouco registro e raros depoimentos, ficam por vezes em limites largos como IV a.C. e século XIV ou a datas cambiantes, como Gutenberg, Dante Alighieri e Shakespeare.

Seja como for, nem sempre se dão importância aos dias, mas os anos, ah, esses, reinam absolutos. Não é raro ao lembrar o passado, que seja ouvida a frase-quase-desculpa não lembro o dia – ou o mês – exato, mas sei que foi em 1954 (ou 1985, ou 2016).

Os anos são imensas unidades de bilionésimos de segundos que escorrem mais velozes do que as corredeiras do rio Iguaçu ou do Sena.

E pesam nos corpos humanos, fazendo com que a lei da gravidade se altere ao longo dos anos. É verdade: mais grávidos e mais graves ficamos à medida que acumulamos primeiros de janeiros. Além disso, morre-se mais jovem em 31 de dezembro do que no dia seguinte, assim o provam as biografias.

Por isso, votos de Feliz Ano Novo têm suma importância nas biografias. Não se trata apenas de etiqueta, afetividade ou carinho. A data tem a ver com saudar a possibilidade de transpor em vida um tempo de dias difíceis & venturosos, de vitórias sobre si mesmo & de derrotas para os fatos da vida. Além de ter podido ultrapassar os longos e tediosos dias de bruma e solidão amarga. (Lembro aqui que existe uma doce solidão que transcende tempos e perpassa os refolhos da alma.)

Aprendi a considerar o primeiro do ano um evento extraordinário porque revela alta carga emocional & exercício de memória & balanço de perdas e ganhos. E, acima de tudo, pela ocasião datada, prevista e necessária das faxinas mentais, espirituais, afetivas & materiais.

É Janus, o deus romano que olha para trás e para frente; e nessa bifrontalidade instaura uma terceira margem. A que compara & une & amalgama o que foi & o que será.

Vá chegando, Janeiro, coloque mais um ano em minha biografia, mais pontes em meu presente. Pontes a unir que marcou o passado & todos os desejos de melhoria para o futuro. Chegue, assente-se no pátio da memória e vá construindo novos fatos, destruindo preconceitos, dando vida e forma a expectativas, boas e más. Acima de tudo, Janeiro, confirme nesta cronista o conceito de que nem todo amor tem que ser triste e, menos ainda, que nem todo poeta tem que sofrer para ser bom poeta.

Confirme, Janeiro, que mesmo o sofrimento mais atroz pode ser filtrado pelo prazer da escrita e que a alegria é companheira inseparável (silenciosa e clandestina), à espreita em todos os momentos ruins que, por sermos humanos, vivemos.

Repita, Janeiro, que o passado ensina a quem é bom aluno; que o futuro em suas utopias sustenta o presente, colorindo, arejando, criando espaços para alguém ser alegre & ser triste.

Venha, Janeiro, mais uma vez, acrescentar vida aos caminhos da vida, criar mais canções de afirmação, repletas de amor & poesia, amantes & poetas. Porque todos os caminhos me encaminham o viver.

Marta Morais da Costa

Bem que eu quis escrever sobre o Natal

Marta Morais da Costa

Pensei em escrever um texto, de um formato qualquer, sobre o Natal.

Talvez um conto, desses que narram histórias emocionantes sobre possíveis milagres de papais e mamães ou do Noel ou de Jesus Menino.

Natal é uma data épica. Ou lírica, se pensamos nos solitários e nos memoriosos de infâncias.

Na falta de imaginar um “como se”, pensei em um poema de muitas estrofes, em que coubessem pessoas queridas e presentes, árvores verdejantes e multicoloridos enfeites, um montão de comida – para ser jogada, talvez, no lixo, por excesso de calorias: ai, os famintos, nem migalhas herdarão. Ah, mas haveria contenção métrica, metáforas deslumbrantes e um par de estrofes de tirar o fôlego dos leitores.

O poema, contudo, travou no oitavo corte de um verso decassílabo: o repertório léxico não se deu o humano prazer de solidarizar-se com a poeta buscadora e perdida e abandonou-a no dátilo incompleto.

Quem sabe uma crônica? Esse gênero tão incompreendido e que parece um “mafuá de malungo” (grata, Bandeira, pela generosa permissão do meu roubo titular!). Nessa feira de ofertas desencontradas, enfiam-se estilos, narrativas tortas, pretensiosos escritos que semeiam a discórdia teórica e colhem os ventos das liberdades sem eira nem beira.

Assim, fiz chover uma narrativa em primeira pessoa, amorosamente bordada de memórias infantis de natais felizes e infelizes, com o objetivo de emocionar os leitores adultos de hoje, que juntariam às minhas as suas lembranças de natais para rir, chorar copiosamente ou sorrir amarelo em razão da lembrança de uma agressiva vergonha pessoal.

Já a vergonha alheia me lembrou de escrever uma antologia de piadas natalinas para serem contadas à mesa do banquete substitutivo da Missa do Galo. Anedotas provocadoras de explosões de farofas e pernis e perus renascidos depois da combustão. Seriam piadas castas em respeito à data festiva de um nascimento de renovação e confirmação de contratos religiosos.

Também deixei de lado: há uma face moralizadora em todo piadista de plantão.

Quem sabe uma página em formato de diário, em que pessoas reais vivem momentos imaginários, coloridos pela pátina de uma falsa escrita antiga dos tempos do eu-criança. Um diário permitiria narrativas, as homenagens aos vivos e às novas estrelas em outros céus, as correções da realidade trágica de natais coloridos pelo vermelho dos sofrimentos censurados e até mesmo as mentiras contadas às crianças, crentes em falsos doadores dos presentes desejados. Uma página de um diário de boas intenções, de pessoas dadivosas, de manjares de mel e ambrosia, de noites em comunhão, de desejos formais de futuro abundante em prêmios e paz.

Nem para diário natalino as teclas do computador se mostram buliçosas e operárias. Os dedos supreendentemente ficam pousados inertes sobre letras incapazes de se combinarem em uma frase com um mínimo de coerência.

Escrever – por que não? – um cartão de Natal ao menos, que expresse a ansiada metamorfose de tempos duros e cruéis em uma época de alegrias e desejos de que tudo dê certo (mesmo o que sabidamente dará errado). Um cartão colorido, corações à beça, vermelhos e verdes vinhetando as palavras-chave, emoticões e gifes salpicando a página, substituindo as palavras que, sempre indiferentes e obstaculizadoras, teimam em não sair. Um cartão sonoro, à moda e com auxílio da Célia Cris, com uma música sugerida pela Rita, que possa substituir em sua volúpia sonora a falta de inspiração para um texto natalino.

Nem cartão, nem cartinha: nada se faz substancial e merecedor de estar em letras e palavras.

A única certeza é que continuarei, insistente, a busca por uma escrita que me diga, que diga em eco a quem gosto de boa e demais, que bendiga tempos vindouros, que consiga fazer acreditar que esta escriba ainda pode nascer, verdadeira e consistente, em um momento qualquer, de dia ou de noite.

Talvez até em uma noite de Natal.

 

Foto por Aleksandr Slobodianyk em Pexels.com

Antigamente

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Bateu fundo o desejo nostálgico de escrever sobre um tempo passado e que dificilmente retornará. Um pouco de biografia, um tanto de memória, muito de imaginação, alimentados por relatos orais de outros e pelas páginas lidas em fontes diversas.

Nada como recordar o passado sem nunca poder recuperá-lo de verdade: ilusões de sermos testemunhas fiéis de qualquer fato observado. Nós, sempre nós, coletivos, a cultivar uma pretensa individualidade impossível.

Vamos, no entanto, em busca desses utópicos tempos memoriais.

Antigamente os sinos badalavam para marcar o inexorável escorrer do dia e da noite. A marcar missas e enterros, festas e quaresmas, centros da vida social e recatada em aparência.

Havia o ranger das rodas das carroças, algumas explosões de motores de automóveis, a atingir velocidades surpreendentes de 80 km horários!

Compravam-se alimentos a granel nos poucos armazéns de famílias a atender famílias, à vista ou no fio de bigode das cadernetas a fiado. A economia doméstica rigorosa mal permitia a matinê aos domingos. Mas a roupa era sempre asseada, engomada e impecável. Mães e tias estilistas e prendadas mantinham na máquina de costura a pedal a família em sua elegância interiorana.

A família crescia a cada dois anos, como cresciam os seios das meninas e as preocupações de soslaio de pais vigilantes.

A infância ainda não se havia ido de todo e a adolescência não era termo nem impedimento ainda. Era como se a passagem fosse direta da infância para a juventude adulta. Com dois marcos irrefutáveis: o baile dos 15 anos para as chamadas meninas-moças e o serviço militar para os rapagões.  Pórticos para a vida adulta com suas disponibilidades e responsabilidades. Esse duo de –ades não se exercia com igual intensidade nos dois sexos exclusivos (hoje, na multiplicidade de gêneros, palavra consiferada mais adequada e politicamente correta). Rapazes criavam asas e esporas facilmente. As moças ficavam sob as rédeas familiares. Avós, tios e irmãos decretavam costumes em igualdade com os atarefados pais, às voltas com todos os demais filhos e com a subsistência diária.

Nada impedia as brincadeiras de sempre: bola de gude, futebol, figurinhas, bonecas, pingue-pongue, pular corda, subir em árvores de quintais espaçosos e usar rodas de todos os diâmetros. Sem distinção de sexo. Uma infância de brincar com tudo e sem limites de território: em sua contiguidade o espaço mais socializado e socialista das crianças e dos adolescentes.

Um tempo em que a rua só era perigosa em momentos regulados pelo trabalho: a hora de ir para a fábrica ou a lavoura e a hora de voltar para casa, jantar e dormir. Sem televisão nem baladas ou raves: apenas as ondas do rádio e as conversas na cozinha, centro da sociabilidade familiar.

Quermesses da igreja, leilões, rifas, pescarias de bugigangas e músicas dedicadas aos namoricos e amigos, nessa ordem de preferência. Quando sobravam moedas, as matinês de domingo, animadas por filmes lançados há anos nos cinemas da capital.

No mais, a monotonia feliz dos dias regulados, das férias em casa, das viagens raras, dos amigos que só se disputavam por figurinhas e intrigas tolas.

O antigamente se espraia em ações e expectativas do hoje. De tal maneira amalgamou-se na vida interior e na memória, que dá sempre a impressão de ter sido apenas um documento histórico para dizer, entre rugas e cãs, “meninos, eu vi!”. Ou, em dias de mau humor e indignação com o presente, poder dizer-se em silêncio ou como uma acusação ao mundo mudado: “Era um tempo melhor: aquilo é que era vida!”

No entanto, no silêncio da solidão, em conversa com o espelho interior, sei que, verdade da verdade, o melhor mesmo era a idade: os olhos impregnados de jovens aprendizados e a alma aberta a acreditar no que viria.

Andando de banda…

“Do lado esquerdo carrego meus mortos.

Por isso caminho um pouco de banda.”

Carlos Drummond de Andrade

Amigos deveriam sempre estar de chegada. Jamais de partida.

Amigos deveriam sempre dizer alô. Adeus, jamais!

Amigos deveriam poder transformar retratos em cenas vivas; fotografias em revivescências.

Amigos não poderiam ter autorização para irem embora sem estar outras vezes conosco, em casa, na rua, em uma confeitaria, bebericando um café, ou até mesmo, num banco de praça contando lorotas, histórias e falando de amizade sem fim.

Amigos não poderiam partir de supetão: afinal, a amizade é longa porque os anos já pesam e se medem em décadas.

Amigo contador de histórias, não pode partir jamais. Porque não tem como recuperar a voz uma vez solta no ar. A voz não é uma pipa que retorna. Mesmo que o amigo crie pipas e faça de sua voz conto e canto. A voz não é como um livro, que reabro e refaço a conversa.

Amigo com voz mansa, voz de avô cuidadoso, de pessoa encantadora de pessoas, de cuidador de amizades, de cuidador de mentes, de cuidador de corações, ah, este não tem ordem nem licença para partir.

Mas partiu. E deixou amigos partidos. Uma história com fim. Um canto em silêncio. Uma leitura interrompida.

Francisco abriu voo para o além, aonde as pipas não chegam, aonde as histórias são outras.

Lá, juntou-se a outras bibliotecas andantes e irão banquetear-se com seus jeitos inesquecíveis de falar histórias de seus povos, agora mais órfãos.

Francisco Gregório Filho, sua presença na vida de seus amigos será perene, porque é impossível esquecer a generosidade, a fidalguia e a arte de um amigo como você.

Agradeço à vida que me permitiu aprender com você.

Marta Morais da Costa

A FALTA QUE A LEITURA FAZ

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Poucas aventuras são mais instigantes do que a escrita. Veio pela nuvem um convite para participar de uma experiência compartilhada sobre leitura. Não para tratar de sua teoria, muito menos de estatísticas – às vezes decepcionantes – sobre o número decrescente de leitores no Brasil. Tampouco para falar de experiências exitosas sobre a conquista de novos leitores (as experiências decepcionantes ficam guardadas no íntimo de nossas conversas ao espelho).

É para, no reverso da história e no modo inverso do espelho, dizer com o peito opresso e os olhos prestes a marejar a falta que a leitura faz. Primeiro e veloz passo foi a consulta etimológica desta palavra tão dolorida, a falta.

Falta de comida, de escola de qualidade, de vergonha na cara, de carinho, de pessoas, de sentimentos humanos altruístas. A falta é sempre um mergulho no contundente, no preocupante, no vexaminoso. Mas vá lá: convite de boas intenções, vindo de mãos generosas e mente afiada, como a da Eliana Yunes, é irrecusável. Boto a mão na massa do texto e escondo aquilo que machuca na parte inferior da parte inferior da parte inferior do fundo do cérebro.

Até a origem da palavra falta, em sua etimologia indoeuropeia, é obscura. Mas as suas derivações trazem um conjunto de situações e naturezas que se combinam para dizer da distância daquilo que um ser humano de razoável inteligência preza. Senão vejamos esse bando de palavras em nuvem sobejamente pesada: falaz, falência, falácia, falha, falso, falecer, desfalecer, falsete, falível, falsificação. Queremos, em nosso professar, que todas elas tenham em seu formato um redundante não a precedê-las.

Nosso desejo é de total negação: não as quero em meu entorno, em meus amigos, dentro de mim.

Falta, proveniente do latim vulgar fallita é forma verbal do verbo fallere, que pode significar“enganar,faltar,falsificar,equivocar-se, escapar a algo ou passar despercebido”.De cara, afirmo sem medo de errar: falta e leitura são opostos absolutos. Sua proximidade é a negação do empenho em formar leitores, objetivo maior do trabalho intenso e denodado de muitos de nós.

Em mim, a falta da leitura teria me conduzido (neste ponto, seguro meus dedos para não escrever uma mesóclise tão repudiada quanto correta gramaticalmente!) ao Hades pessoal, ao apagamento intelectual, ao isolamento, a um estado de regressão humana naquilo que reputo de mais significativo: a capacidade de visão múltipla e crítica.

Sem leitura, viva a falsificação! viva o equívoco! viva a diminuta capacidade de perceber a vida! viva o engano e, mais ainda, viva o auto-engano!

No elogio da ignorância, projeto político há tanto tempo vigente no Brasil – e, na atualidade, convertido em dogma-, a leitura não tem lugar. Sua falta, seu desfalecimento e a falsificação do conhecimento projetam-se em sombras ululantes, em esgares sem lucidez, em falas de fundo falso.

Em antiga marchinha de carnaval de minha meninice, cantava a letra: “pode me faltar tudo na vida: arroz, feijão e pão/ mas não quero que me falte a danada da cachaça”. Quando se chega a um tempo em que até a cachaça falta, além da manteiga, do pão, pior que tudo, do amor, faltar também a leitura é acabar com o carnaval, com a música, com a alegria.

Eu precisaria renascer para poder encarar uma distopia sem leitura.

Talvez o aniversariante de setembro, este país nascido à beira de um riachinho, ouvindo um grito contendo a palavra morte, pudesse renascer para outra realidade menos degradante, mais diversa e múltipla. O riachinho poderia estar lá, mas o grito seria primal, vital, cobrando o direito a pensar. Porque neste, a leitura tem seu lugar. E não é o lugar da falência, mas o da vida, “mesmo que seja Severina.”, como acreditou um poeta que carregava em seu nome o achamento da terra até então ignota.

Marta Morais da Costa

Curitiba /PR, 14 de setembro de 2022

OBS.: Este texto integra a coletânea de crônicas editada pelo iiLer e pela Cátedra Unesco de Leitura PUC-Rio sob o título “A falta que faz a leitura“, em formato de livro digital, organizado por Eliana Yunes, publicado em 26 de outubro de 2022.

Onde antes…

Onde antes estava o verde, agora predomina a terra seca, quase areia.

Foto por Pok Rie em Pexels.com

Árvores centenárias foram obrigadas a prestar vassalagem às motosserras.

A mata nativa – troncos finos e ramas debruçadas sobre o chão – jaz inerte.

O silêncio sem pássaros e as trilhas sem pisadas nem rastros.

As folhas e galhos perderam seu farfalhar, agora monturos secos e esquálidos.

Cortou-se a comunicação entre as árvores, abriu-se o horizonte em luz e vazio.

Onde antes não havia caminhos, agora são vias sem margens, travadas pelo entulho vegetal.

Por tantos anos, o arvoredo foi repouso dos olhos, umidade contra a secura do asfalto, paisagem de fotos e resguardo de degradação.

Hoje, de surpresa, a descoberta de que em alguns poucos dias, a natureza elaborada em séculos amanheceu destroçada.

O ser humano, rei das espécies, mais uma vez mostrou-se vilão, depredador, criminoso.

Contra ele, a dor da perda, a dor da crueldade alheia, a dor de descobrir-se também humano na desamparada impotência.

Lágrimas corroem a manhã ensolarada, desverdecida.

Marta Morais da Costa

A escrita utópica

Foto por Jessica Lewis Creative em Pexels.com

Queria escrever um conto falando de amor, com gentileza, com palavras poéticas e beijinhos doces.

Queria escrever um poema infantil, com musicalidade que ficasse impregnada na memória, com achados verbais e dialogando com os sentimentos ainda imaturos, mas já presentes na alma da criança.

Queria escrever uma crônica sobre a saudade com aquelas palavras que submergem o coração nas letras e que fazem as lágrimas verterem suaves sobre os sulcos da face.

Queria escrever um romance histórico com personagens que foram carne e ossos, frutos de suas fraquezas e coragem, mas que assumiram seu papel no momento em que a história deu uma cambalhota e mudou de rumo.

Queria escrever a biografia de cada um de meus antepassados até a quarta geração. Para tanto, eu pesquisaria em documentos familiares e na composição de meu sangue suas pequenas epopeias diárias, sua força de trabalho e a construção de um imaginário futuro utópico que as gerações seguintes não conseguiram construir. Queria descrever os detalhes mais crus e mais emocionantes do momento em que fui concebida.

Queria reconstruir em uma peça semidrama-semicomédia os percalços e as conquistas vividas por uma atriz no período da belle époque em temporadas-relâmpago por vários palcos do Brasil. Seriam certamente cenas de intensa paixão e imensas frustrações que mergulhariam minha escrita em desencontrados sentimentos de dor e de júbilo, encerrados pelo cair da cortina do esquecimento ao final do terceiro ato.

Ah, a escrita que poderia ser e nunca será! Talvez sua existência seja em mim esse embate entre o que eu gostaria de escrever e o que minha habilidade expressiva permite.

Tenho certeza de que na carta à posteridade que escrevo ao viver, eu não conseguirei ultrapassar as “mal traçadas linhas”.

Marta Morais da Costa

Juntas em dia frio

Marta Morais da Costa

Atravessam minhas velhas juntas o frio e a preguiça. Um me paralisa diante do aquecedor. A outra me paralisa diante do computador.

É quando a preguiça toma conta, que o cérebro à toa decide e exige a escrita. Toda razão aos romanos: se o ócio domina, vão-se os negócios! E tudo é só deleite, de café e de vinho. Escrever traz todo o trabalho para dentro e é como se não fosse trabalho (tripalium, voltam os romanos: aquilo que tortura).

Tem quem me diga por que você não sossega? Outro me alfineta aposentou pra quê? De novo escrevendo? Isso não vai dar certo. E rolam estigmas, desalentos, ralas invejas.

Além das juntas, a idade corrompeu os tímpanos que perderam sua acuidade e viraram paroxítonas, timpano, timpano, cada vez mais roucos e moucos, negando os graves e alisando os agudos.

Fui sendo alfabetizada e letrada ao longo da vida, mudando de escala e de intensidade. Já prevejo mais uma aprendizagem, desta vez sem palavras faladas, só nas mãos – sem canetas ou teclados – mas na dança dos sinais. Talvez para compensar as juntas duras avessas à dança, as mãos dançarão, bailarinas não previstas a realizar aquilo que o corpo exigiu de esforços, e não teve recompensa. Dancei como Ginger Rogers e Cid Charisse nos braços de Astaire em todos os filmes a que assisti. E tomei chá de cadeira em todos os bailes da vida.

Faz mal, não. Lembra o ditado: quando a vida fecha uma porta, Deus abre uma janela? Pois é: quem tem pernas e quadris imóveis, dança com as mãos. Manuletrare, diriam os romanos se falassem o estrupício de latim que penso saber.

Advertência ao possível leitor: o frio e a preguiça somam-se em uma escrita macunaímica sincrética e desacreditável. Lá no romance, o piá confessa em nuvens de ingenuidade que mentiu. Com a cara-de-pau latino-americana, tem todas as etnias e vizinhanças e sai supimpamente para continuar mentindo e arrotando grandezas.

Não sou capaz de tanto, painho Mário de Andrade. Mas tenho também meus sincretismos : a preguiça de hoje juntou em um texto sem-vergonha algumas meninas de cabelos brancos e com zoínhos revirando de gosto, a contar seus desgostos e fragilidades, bebericando um chá mais a sustância de um bolo de fubá.

Eita povinho que se queixa de barriga cheia!

Para além da janela da sala onde escrevo sobre velhezas, vejo passar pessoas que não têm tripalium, mas têm os olhos fundos de fome e de abandono.

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Memória, leitura e comemorações

Marta Morais da Costa

Neste 9 de agosto, meu pai faria 100 anos. Essa nossa ocidental preferência por números decimais e, talvez, a imagem mítica de Matusalém vivendo um século podem estar na origem de uma celebração desse percurso de tempo.

Para além dessa motivação numérico-religiosa está a ação da memória que, ao constatar na folhinha a data repetida durante muitos anos, que vinha acompanhada de abraços, festejos e presentes, presentifica imagens, palavras, recordações.

Gosto do termo recordações, que tem em seu centro a palavra coração. O latim cordem amarra-se ao prefixo de repetição e ao sufixo de ação e temos o passado em movimento. A data e o coração tomam de assalto a memória e num átimo atômico, o pregresso regressa.

Para sua leitura tranquila,  ó raro leitor ó esquiva leitora, não pretendo falar de emoções filiais, de sentimentos de falta, de histórias familiares extintas.

Quero tratar da memória. O neurocientista Richard Restak publicou recentemente no New York Times uma recomendação de cuidados com a mente e exercícios para preservar a memória. O primeiro desses cuidados é o da atenção, que exige um desapego de diversionismos e derivativos e uma constante vigilância para manter a focalização.

Quando ler dá sono, podemos apostar que o leitor está à beira de um colapso por excesso de trabalho ou sua atenção ao texto que lê se perdeu. Não se exclui, é claro, o falso leitor, aquele que faz pose de, o desabituado de leituras, até mesmo avesso a elas, que, para não passar vexame público, finge que leu.

Nesse artigo, Restak recomenda como exercício para a memória “ler mais romances”. Esta ingênua e persistente mediadora de leitura aqui, ao ver essa recomendação, elevou o neurocientista ao Panteão dos Gurus da Leitura.

Cá pra nós (como aprecio esta expressão de cumplicidade!), acompanhar um texto verbal longo não é para qualquer leitor digital ou de imagens (sequenciadas ou não). Talvez isso denuncie a memória curta de grande parte de cidadãos brasileiros… Não lembram o que viam e leram em curto espaço de tempo. Mais ainda, procuram apagar da memória, como se a vida fosse uma página em branco que se escreve a cada dia. Como se fôssemos seres caídos de galáxias vizinhas e de olhos completamente sem história nem imagens precedentes.

Ler um romance é exercitar a capacidade de lembrar. Lembrar personagens, espaços, imagens verbais poderosas e situações que aconteceram não a milhas de distância, mas há algumas páginas atrás.

Minha longa história com meu pai se encadeia  e se circulariza a cada dia à medida que mais dias cabem na minha biografia. Não é apenas no espelho que o reencontro. São frases, conceitos, conselhos. A nem todos adotei ou segui. Sem arrependimentos. Foram escolhas, desacordos e recusas. Como qualquer filho em sua relação com os pais, Freud explicou. Como a própria história das nações e dos povos: a imagem do Pai precisa ser superada para que a civilização possa afirmar-se.

A lembrança de meu pai no seu centenário me faz pensar mais agudamente e com tristeza no bicentenário do Brasil. E, no espelho dessa comemoração cívica, eu não me reconheço.

Fonte: https://www.estadao.com.br/internacional/nytiw/exercicios-mentais-e-mudanca-de-habitos-neurologista-da-dicas-para-proteger-a-memoria/. Acesso em 7 de agosto de 2022.