O acordeão, a flauta e o violão

Marta Morais da Costa

Dizia a velha flauta ao acordeão bailarino:

– Enquanto grito tesa e louca, você dança e sacode a pança. No mesmo ritmo, enquanto eu choro, você ri.

– Engano seu, dona Flauta, responde o acordeão. Minha dança me cansa. Sinto-me pesado. Mas você parece esbelta e faceira.

Enquanto a conversa seguia, o violão, sem alarde, fazia ressoar dores de amor nas notas tristes de um samba canção.

Na orquestra da vida, cada um e todos se queixam, enquanto a música não para.

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Árvores

Marta Morais da Costa

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Eram árvores vizinhas.

Uma de largas folhas. Outra de delicada folhagem.

Cada uma a produzir flores em diferentes épocas do ano. Uma lançava grandes cachos amarelados na primavera. Outra se enfeitava de pequenas flores roxas no verão.

Uma erguia-se com tronco despido e coroa exuberante. Outra se espalhava em finos galhos, multiplicados e indomáveis ao longo de todo o tronco.

Encontravam-se as duas no alto quando galhos e folhas ficavam tão próximos que as árvores pareciam conversar com intimidade.

Mas era quando o vento punha em movimento a massa verde que elas melhor se definiam. Bastava a brisa chegar que o diálogo manso começava. Eram delicadas palavras de amizade, eram juras de fidelidade, eram sussurros de esperança.

Quando se anunciava a tempestade, e o vento agredia as ramagens, a fúria se instalava. Só se ouviam queixumes, gritos e palavrões. O choque dos galhos era tremendo. Vez ou outra vinham ao chão as folhas mais sensíveis e as pequenas ramas enfraquecidas. O chão cobria-se com os restos de uma batalha floral.

Era, porém, nos dias claros da primavera, em que o vento – criança imprevisível – ora golpeava, ora acariciava, que as duas árvores vizinhas mais se assemelhavam aos humanos. Na lufada mais violenta, se debatiam, misturavam-se com força. Ora se impunham, ora eram feridas.

No entanto, quando o vento amainava, tocavam-se delicadamente, trocavam palavras gentis, e uma delas espargia sobre a outra pétalas douradas, que selavam sua intimidade, como beijos e carícias para sempre.

Até o próximo confronto, eram duas árvores destinadas a viverem próximas e unidas até a morte.

Fábula do lobo e da cabra

Marta Morais da Costa

Na montanha, as cabras se dispersaram, cada qual em busca de novas plantas rasteiras para se alimentar e cumprir sua sina de sobrevivência e produção de leite.

Atrás de um robusto pinheiro, o lobo as observava, faminto e paciente. Sabia que era comum alguma cabra distraída afastar-se do rebanho e colocar-se voluntariamente em perigo. Seus ancestrais eram exímios caçadores e ensinaram como agir diante da imprevidência caprina.

Naquele dia, o sol forte deixava um rastro de cansaço e sonolência na paisagem e nos animais. Uma cabra experiente aconselhou à jovem e distraída cabra a precaver-se dos lobos e a não se separar do rebanho.

Mas cabras jovens são arrojadas e desobedientes. E, além disso, logo ali, entre pedras e um fio d’água que descia da montanha, havia um tufo de erva macia e apetitosa, como que a chamar por ela. A jovem cabra dirigiu-se para moita e ficou escondida do rebanho pelas pedras.

O lobo percebeu que era sua oportunidade de almoçar. Sorrateiramente aproximou-se. A cabra só percebeu sua presença quando já estavam frente a frente.

– A grama está macia, senhorita? , perguntou o lobo.

A cabra não titubeou:

– Muito macia, senhor! Quer dividir comigo?

– Não, obrigado. Não como ervas. Prefiro carne.

– Faz mal, senhor. Carne envelhece e pode causar vários problemas de saúde, inclusive tumores malignos.

O lobo ficou surpreso. A cabra não havia se assustado com sua feroz aparência. E ainda tinha o desplante de lhe dar conselho! Inclusive usava uma linguagem complicada…

– Engana-se, mocinha.  Meus antepassados já comiam carne e, que eu saiba, nenhum deles morreu dessas palavras difíceis aí.

A cabra percebeu que o lobo ficou assustado com o que tinha ouvido. Aí resolveu exagerar. Abriu bem os olhos, franziu os pelos da testa, caprichou no cabrês e disse candidamente:

– Veremos o que o senhor dirá quando suas entranhas forem sendo destruídas e a dor o fizer uivar dia e noite, sem remédio. Dizem que são doenças terríveis, daquelas que só se deseja para o pior inimigo…

O lobo começou a duvidar de sua fome. E se ela tivesse razão? Nos tempos modernos tudo havia mudado. Quem sabe os lobos atualmente não seriam mais vulneráveis à carne? Quem sabe as cabras também fossem diferentes, com um organismo mais envenenado e comer sua carne seria perigoso?  

Na dúvida, afastou-se e desapareceu entre os pinheiros.

A cabra voltou tranquilamente a degustar a moita verde e macia.

Morais da história:

A informação, quando bem utilizada, salva vidas.

Ser jovem não significa ser ingênuo.

Os tempos mudaram, assim como as fábulas.

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O que será

Marta Morais da Costa

Foto por Rezha-fahlevi em Pexels.com

Já levantava da cama com a língua envenenada. Expelia um “bom dia” que sabia a cianureto. Os olhos, geralmente atrozes círculos vermelhos e íris dilatadas, jogavam sobre coisas e pessoas o ácido muriático armazenado em noites de insônia. As mãos, enregeladas, eram hélices em movimento tentando afincar garras e unhas em qualquer corpo sólido interposto ao seu caminhar. A cabeça coroava o píncaro da arrogância e da pretensão.

Abriu a porta dos fundos e lançou-se ao quintal, farejando rastros da noite agonizante e caçando razões para alimentar sua fome de ações turbulentas, motivadas por nenhum sentido e sem objetivos confessáveis.

Chutou pedras, latas e tijolos. Catou cavacos e galhos secos para acolchoar os lugares possíveis de andar, de sentar ou descansar. Aos outros, o pior. Um varapau lhe servia de lança para cutucar ninhos, desfazer frutas, desbastar folhas das árvores. Sanhudo e beligerante, começou o dia a seu modo: em pé de guerra.

Trouxe para a casa e a rua, a aguda e inescapável violência. Reprimendas, caras feias, palavras azedas e gestos indignados eram combustível aditivado para sua razão de existir e agir.

O tempo lhe trouxe a solidão e o repúdio. A comunidade preferiu preservar-se e garantir frestas de paz.

Isabel contou para Raul que disse ao José que avisou ao Fernando que trocou mensagens com o Luiz que comunicou à Gabriela que resolveu interromper a corrente: o dia se anunciava em trevas, o ar rarefeito lembrava fumos de enxofre, tudo era culpa dele, o Cujo, o que trazia guardado no dentro o desejo de aniquilar – pelas armas, pelo descaso, pela língua e por atos – as amedrontadas manifestações de sobrevivência e de afeições.

Gabriela sussurrou para Vitória que murmurou ao ouvido de Sofia que repassou a Francisco que confidenciou ao Álvaro que cochichou a Simone uma mensagem de convocação à resistência. Nem precisou de brisa a espalhar o desejo de agir. Aos poucos cada qual trouxe ao grupo o que sabia fazer de melhor: cantar, escrever, discursar, guardar segredos, destilar confiança, clarear obscuridades, desvendar intenções, cumprir acordos, despertar esperança.

Quando a noite instalou no céu a lua dos sonhos, uma nova história começou a nascer. Nela não haveria o protagonismo plutônico. O raio da novidade iluminou céu e, mesmo sabendo das agonias a ser vividas, ninguém titubeou, temeu ou desistiu.

Mal a luz atravessou as soleiras, um a um, eles foram povoando a praça e, congraçados plantaram árvores, desembaraçaram de galhos os lugares, restabeleceram velhas normas de convivência. E se prepararam para dizer não e enfrentar as Fúrias.

Sóis e luas se sucederam, indiferentes. No pó, que o tempo vai espalhar, continuam a circular grãos beligerantes. No presente, os venenos ainda se impõem. Amanhã, quem sabe, os perfumes irão impregnar a brisa.

A garça e a cobra

Marta Morais da Costa

Fotos: Fábio Morais da Costa

No lago em que uma garça branca habitava, os peixes se tornavam cada dia mais escassos. Talvez porque, vindas nas migrações anuais, houvesse cada vez maior número de garças que comiam cada vez mais peixes. Talvez porque os peixes se reproduziam cada vez menos. Talvez porque os homens pescassem cada vez mais os peixes que se reproduziam cada vez menos. Fosse por qualquer um desses acontecimentos ou por todos eles juntos, a verdade é que a garça ficava cada dia mais faminta.

Uma tarde a garça viu uma pequena cobra ao lado de uma pedra no fundo do lago. Imediatamente mergulhou o longo bico, sentiu a cobra presa e começou a puxá-la lentamente, estranhando o peso excessivo.

Disfarçada em formato de pedra, havia uma cobra maior, mais esperta, mais experiente, cheia de artimanhas. Quando viu aproximar-se o bico da garça, agarrou-se à cauda da cobrinha e deixou-se puxar, engatada, para fora da água.

Sabia que poderia salvar-se mais facilmente deslizando pela superfície do lago.

A garça fazia um grande esforço, mas de repente o peso diminuiu. Ela descobriu só então que havia puxado uma presa maior e mais suculenta. Mas já era tarde, porque a falsa pedra descolou-se da cobrinha, deslizou velozmente para longe e desapareceu nas plantas da margem.

A garça, então, teve de contentar-se com o petisco menor. Que, nem por isso, foi menos delicioso. A diferença é que a fome voltaria mais cedo.

Moral: Experiência, esperteza e artimanhas mantêm vivos os graúdos. Por isso, todo dia é dia de Golias.