Não a aurora da primavera: penei, sofri. fui libertada.
Este é o presente, uma alegoria do desperdício.
Tanta coisa mudou. E no entanto você tem sorte:
o ideal arde em você como uma febre.
Ou não como uma febre, como um segundo coração.”
Este é um fragmento da poesia “Outubro”, de Averno, livro de poemas de Louise Glück, publicado em 2006, na tradução de Heloísa Jahn.
A poeta norte-americana recebeu o reconhecimento pela qualidade de sua poesia, quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2020. Foi a segunda poeta a receber tal distinção, a primeira foi a polonesa Wislawa Symborska em 1996. Duas escritoras de alta voltagem literária, donas de estilos diferentes com a mesma alta qualidade técnica e conhecimento da alma humana.
Em Averno, os leitores ouvem a voz da jovem Perséfone, a mulher raptada e encerrada nas profundezas do reino de Hades, o senhor do mundo inferior, o deus dos mortos. É uma voz ancestral a expressar o sentimento vital de sobrevivência e de desejo de outra vida e de outros haveres existenciais. Perséfone, mito das estações do ano, está ligada à ideia de mudança e de afetividade: quando, depois da decisão ajuizada por Zeus, que lhe concedeu uma temporada na superfície da Terra e outra no submundo das trevas, Perséfone passava com sua mãe a primavera e a transição do verão para o outono. Era quando a natureza florescia e frutificava. Presa com Hades, a beleza e o sustento se escondiam, para renascer em outra primavera.
Esse mito da mulher dividida entre a possibilidade da criação e da fartura e a necessária permanência no escuro, no adormecimento e na espera, fazem de Perséfone a mulher ambivalente, em contínua romaria, vivendo a alternância de fazeres e deveres.
Na melancolia de um canto poético simples na estrutura das frases, na escolha de palavras, na sequência fragmentada de estrofes curtas, na absoluta e total reivindicação de sobrevida, Louise Glück captura em mim atenção e liames (quase algemas) de sensibilidade incomuns.
A visão do outono que se aproxima no calendário e o estágio das estações da minha vida pessoal estabelecem posições que se entrelaçam nas encruzilhadas da leitura.
Mais do que a interminável viagem ascendente e descendente de Perséfone, impactam em mim as ressonâncias de um estado outonal.
Em decorrência, a pergunta incontrolada se manifesta: o quanto um leitor pode ser fisgado por um texto que chega na hora precisa quando a necessidade de compreensão é mais aguda?
Estar em sintonia psíquica com um texto – vindo de outras geografias e de outros tempos – casualmente conectado ao leitor, transborda o conhecimento e se derrama em vínculos indestrutíveis. Esta é uma das magias da leitura.
O quanto impacta um verso como “a afinação do dó está mais escura” em um leitor primaveril ou em um leitor outonal – talvez já invernal? Em que grau de vivência é absorvida a expressão “a alegoria do desperdício”, quando o desperdício é a realidade. Ou quando ele é memória, lembrança, saudade?
Em que dimensão o termo desperdício atinge o leitor? Mais ou menos do que “waste”? Mais ou menos do que “esbanjamento”, “perda” ou “resto” , seus sentidos próximos?
Perséfone olha a luz, olha para cima, para a superfície que invariavelmente e duas vezes ao ano lhe inundarão as fases e os fazeres.
Para que luz, em qual direção e quando uma vida outonal poderá assim ter esperança? Os versos límpidos, despidos de grandiloquência e rebuscadas metáforas (permanecendo tão somente no terreno dos símiles), Louise Glück energiza a voz de seu Outro poético:
“o ideal arde em você como uma febre.
Ou não como uma febre, como um segundo coração.”
Pode ser. Uma febre, um segundo coração. Esse estado de anatomia similar – e isso a literatura faz belamente – justifica a concretude e a razão mais justificável da leitura.
Roland Barthes afirmou em O prazer do texto (1971):
“Às vezes, o prazer do Texto cumpre-se de forma mais profunda (e é nesse momento que se pode dizer realmente que há Texto): quando o texto “literário” (o livro) transmigra para nossa vida, quando uma outra escrita (a escrita do Outro) consegue escrever fragmentos de nossa própria cotidianeidade, enfim, quando se produz uma co-existência.”
Para brindar esse encontro de outonos e segundos corações é que escrevi este breve comentário.
Curitiba, a onze dias do começo de mais um outono.
As obrigações na leitura não são necessariamente repudiáveis e negativas. Ter que ler, ler obrigatoriamente um texto escolhido por outrem, obrigar-se a ler um texto de autoria de um amigo – mesmo que não seria selecionável em uma escolha voluntária – ou por exigência do trabalho podem ser ocasiões de aprendizagem, de descobertas, de questionamentos, de exercício crítico.
Uma ocasião especial respalda essa leitura obrigatória: a de compartilhar interpretações. É diferente quando cada um dos participantes de um grupo reunido para pensar a partir de textos escritos ou em múltiplas linguagens – como o cinema, o teatro, a música, os quadrinhos – lê, vê ou ouve textos diferentes. Mesmo que apresentem ao grupo sua atividade e o texto, os demais se colocam como ouvintes limitados, pois o livro em foco pode não fazer parte de seu repertório pessoal. São intérpretes de outros e diversos textos, mas não leram efetivamente o texto que está sendo trazido para o grupo.
A apresentação fica, portanto, como uma forma de publicidade individual, em que a participação, que pode até existir, se faz subordinada a uma interpretação de origem individual. São ideias trocadas sem a efetiva leitura de todos de um mesmo texto.
Há, entretanto, ocasiões em que a leitura obrigatória origina ações e palavras de liberdade interpretativa e de contribuições enriquecedoras sobre o texto e sobre seus intérpretes. Estou me referindo aos grupos de leitura, ou clubes de leitura – este, um termo atual e gourmet.
Quando ouço acusações sobre a leitura obrigatória – um hit de crítica sobre a leitura da literatura – imediatamente desfilam diante de meus olhos interiores as pessoas que integram e integraram os grupos de leitura que coordenei. Uma parte agradável das atividades é escolher solidariamente os livros a serem lidos. Estabelecida a lista, todos aderem de imediato. E trazem seus livros para as conversas que irão desvendar subentendidos, entendidos e superentendidos (aqui estou pensando em Umberto Eco e seu livro “Interpretação e superinterpretação”). Mas o acordo tácito e predominante é o da leitura solidária.
Como é gratificante quando os personagens e os autores são tratados pelos nomes próprios, como se fossem os vizinhos de porta, membros da família ou até amigos! É Paulo Honório pra cá, Clarice para o outro lado, Rubem tão próximo, Elena tão avessa a publicidades, Proust tão tímido e Raskólnikov tão perturbado…
Livros trazem o mundo e seus habitantes para morar com os leitores e ampliam casas imaginárias convenientes para receber mais e mais hóspedes. A obrigação se transforma em diversão, debate, aprendizagem. Ah, se tudo que é obrigatório na vida em sociedade pudesse viver essa transformação!
Tem manhãs que são como holofotes sobre o nada. Muito trabalho e pouco resultado aproveitável.
Tem manhãs que são como roseiras em flor: o trabalho rende umas flores miúdas e bonitas, mas muito, muito espinho.
Tem manhãs que são como show de hard rock: muita luz, fumaça, barulho, maquilagem e gritos como se fosse música. O resultado? Cabeça à roda, corpo moído.
Tem manhãs com gosto de café, de terra molhada por chuva fininha, de sabiá cantando a alegria de filhotes. Dá vontade de escrever.
O que veio para a ponta dos dedos foi uma cantilena antiga, ciranda de volta e meia, partitura toda de cor e ação, sons arcaicos, ritmo em dobras e voltas, ideias de voltas e dobras.
É que o assunto era a formação de leitores, “pra toda vida” dizem os utópicos; “na prática de sala de aula” pedem os ansiosos; “pra meus alunos deixarem os tabletes e os celulares” rogam os desiludidos.
O café, a chuva e o sabiá sonorizam e aromatizam a escrita. Só que ela vem dizer quase que o mesmo de anos passados porque o presente não soube ou não quis ver, ouvir, dançar junto, repartir.
Nas teclas já conhecidas o que surge é enumeração farta e aberta.
1 Gostar de ler é como amor feinho: leva tempo pra chegar, vem sorrateiro e fica morando pra sempre. Precisa de dois: olhares, recusas, balbucios, rubores, persistência. Mas quando chega, toma posse, instala-se, abre as janelas, purifica o ar e a alma.
Precisa de dois: eu e tu, tu e eu. Um livro e um leitor, apresentados em festa ou em velório. Presenteados: tu me envolves e eu recuo. Eu recuso, tu insistes. Tu demonstras e eu me calo. Eu te afasto, tu me cercas. Não te esqueço e tu me enlaças. Depois, cantam as harpas de Sião.
2 Formar leitores não é colocar em fôrmas. É estimular em alguém as formas de expressão, de extensão, de comoção. Formas são infinitas, pessoas são infinitas, livros são infinitos. Finita é a displicência, a ignorância, a desimportância e a falsa suficiência.
Precisa criar, rir, compartilhar, narrar e poetar o quanto não baste, nunca. Lançar ao ar as folhas da fantasia e as flores da sedução e esperar ansioso que elas caiam no colo de quem não sabia que as desejava tanto. Banir a tempestade das utilidades para um canto remoto; trazer no assovio a mutável imaginação para um namorico sob o leque da palmeira dançando com a brisa.
3 Leitura é infinda como as águas dos mares. Diversas em coloração, efêmeras em humores, fieis ao ir-e-vir constante, ora rasas-ora abismos, às vezes piscosas-às vezes perigosas, sempre maiores do que o tamanho de nossas vidas.
Quanto mais leio, mais releio. Quanto mais acumulo, mais devo. Quanto mais me despreza, mais me tem de joelhos. Quanto mais, quanto mais…
4 Um livro é uma máquina criada e movida por pessoas. Cadeia de gentes, seus elos são ares e olhares de quem pensa, age, recolhe e leva adiante. Elos de uma corrente que foi, é e virá. Diálogo entre tempos, têmperas e temperamentos. Corrente que integro e lego. O elo pequenino que sou suporta a torrente de todos os leitores.
O livro, indiferente ao meu afeto, segue, Casanova, em busca de mais amores.
Formar leitores vai além de alfabetizar. Supera momentos de encanto e emoção. É mais do que ter uma companhia que leia em voz alta ou que esteja junto em uma leitura silenciosa e individual. Formar leitores não é encher a casa de livros ou deixar alguém em uma biblioteca, perdido entre estantes. Formar leitores tem a ver com educação, gradação, diversidade, acompanhamento. Não tem a ver com controle. Significa dar a mão para a pessoa e ensiná-la a andar entre livros. Formar leitores (não importa se crianças ou adultos) é apresentá-los aos textos do mundo, contar de sua beleza e de seus perigos, exemplificar com outras histórias de leitores (inclusive a nossa) e aos poucos educar para ver, compreender, interpretar. Para descobrir e recriar. Educar tem a ver com conhecimento e paciência. As pessoas têm tempos diferentes de aprendizagem: o educador lhes oferece o seu tempo e o seu saber. O saber não é um depósito de informações. São aprendizagens lidas e vividas colocadas a serviço de outrem. Um educador que não lê, não serve para formar leitores. Não terá a aprendizagem necessária para o infinito de textos. Não apenas em livros: em palcos, em sons, em papel, nas telas digitais. Quem não sabe nadar, sucumbe ao mar. Para nadar no mar é preciso saber navegar. Para o oceano de textos, o leitor precisa de bússola, mapas, roteiros, ciência. Que se aprende na prática e no legado dos navegantes que por esse mar viajaram. Formar leitores é uma arte. Arte tem a ver com técnica. Técnica tem a ver com estudo. Estudo tem a ver com leituras. É o ciclo da vida. O círculo.
Só quem já percebeu o riso escarninho com que o interlocutor recebe a informação “Sou professora. De leitura e literatura.” sabe o que é uma sociedade desprovida de atenção e compromisso com a informação, o conhecimento, a cultura e a capacidade de compreender o mundo a partir de visões plurais.
Primeiro porque sempre se considera leitura sinônimo de alfabetização. A relação tem, é claro, sua história e pertinência. Até a década de 60, a leitura passava mais pelas metodologias de aprendizagem de letras do que por reflexões filosóficas, históricas, psicológicas, sociológicas e linguísticas. Com as teorias da recepção foram crescendo e se intensificando as áreas conectadas aos estudos sobre leitura, interpretação, conhecimentos prévios, cultura e desenvolvimento de inteligências. A leitura ganhou foros de cidadania, de espírito crítico, de relações plurais e de pensamento inovador.
E o Brasil, como em muitos setores mais, viveu um novo achamento da terra: a leitura era um território ainda ágrafo. Nova bandeira passou a tremular nas lides universitárias e nas salas de aula e centros de cultura: é preciso criar um país de leitores. Despejou-se sobre os bem intencionados bandeirantes um enorme volume de escritos, de teses, de ações, de feiras e congressos. As reações foram quebrando algumas barreiras, mas muros e fortalezas ainda resistem. Os números das pesquisas apontam um andar sonolento e desestimulante rumo ao não-me-importismo e mimimis irresponsáveis.
Vamos com Ana Maria Machado, retratando essa realidade amarga no livro Silenciosa algazarra, quando trata da outra leitura, a que não é alfabetização: “É outra a leitura que tantas vezes parece não ter importância e que, por isso, tem sua significação questionada e debatida nas insistentes perguntas feitas por jornalistas em entrevistas a escritores ou pelas sugestões de tema dadas por organizadores de congressos e seminários. É leitura de jornais, revistas, principalmente livros, a leitura daquilo que faz crescer. Tanto a leitura de informação aprofundada, que aumenta os conhecimentos, como a de literatura – sobretudo esta. Da primeira, é voz corrente dizer (com um ar superior e cheio de si, como se fosse verdade) que hoje em dia ela ficou inteiramente dispensável, substituída por meios de informação mais rápidos e eficientes, como a televisão ou a internet. Da literatura, desconfia-se porque se diz que ela é elitista, um luxo, coisa de intelectual de óculos que não faz sucesso na hora de namorar, algo que não tem nada a ver com a vida das pessoas, toma tempo de atividades mais interessantes e outras bobagens no gênero.” (p.13-14)
São comentários e comportamentos que tratam a cultura e o desenvolvimento de pessoas – e por extensão do país em que habitam – como se fosse um jogo de futebol em que apenas dois times concorrem (os leitores e os analfabetos funcionais) a um prêmio consumista e imediato (dinheiro, teres e haveres, erudição vazia e pernóstica). Um “ou isto ou aquilo” fora de tempo em uma sociedade plural e uma cultura diversificada. Em especial, quando se confunde uma rima que não é solução: leitura e literatura. Um mal entendido que não se dissipa porque convém aos seres de má vontade: “não leio literatura porque ela não serve para nada”.
Tudo mais mal que bem: adultos em geral são pessoas de caráter formado (assim creem), não dispostos a mudanças (comodidades são conquistas) e avessos a desafios (tá bom como está). Nem se queixam mais dos filhos mimados e do conhecimento atrasado. Afinal, se der para curtir o final de semana, as férias, a televisão, para que estudar? para que ler? para que suportar essa chatice?
Mais um pouquinho de Ana Maria Machado, a escritora e uma das muitas defensoras da leitura e da literatura como formadoras de autonomia pessoal: “Lê-se pouco no Brasil porque não se acha que ler é importante, não se tem exemplo de leitura, existe a sensação de que livro é uma coisa difícil, trabalhosa, não compensa o esforço. Só se faz obrigado. Um sacrifício penoso, feito andar em esteira de ginástica (…). No entanto, a realidade cotidiana, ao longo da vida, me ensinou outra coisa. Se é verdade que não é comum que um adulto que nunca leu consiga, de repente, do nada, descobrir as delícias da leitura, também é verdade que não conheço um único caso de criança alfabetizada que, tendo acesso a livros bons e interessantes, deixe de encontrar algum que a atraia muito e, a partir daí, queira ler mais e mais, sem parar. A curiosidade é instintiva. A constatação do encantamento, advinda do alimento da imaginação e do prazer da inteligência em atividade, garante o resto.” (p.16)
O texto de hoje é apenas um sinalizador: muitas paragens ainda virão nesse trabalho de Sísifo que é a formação de leitores.
SERVIÇO: MACHADO, Ana Maria. Silenciosa algazarra: reflexões sobre livros e práticas de leitura. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
Continuo pelo avesso: não estarão certos os leitores que trocam os livros por outras atividades? Não estarão certos os entrevistados do mais recente “Retratos da Leitura no Brasil”(publicado em 2020 , cuja pesquisa foi realizada de novembro 2019 a janeiro de 2020) a não ler um único livro, mesmo que incompleto, nos últimos três meses? Quatro milhões e seiscentos mil brasileiros deixaram de ler, e sinalizam aos demais que é preferível crer no que dizem do que encontrar tempo e paciência para ler um livro, a sós? A pesquisa dá conta que houve queda nas regiões Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste. Apenas as regiões Norte e Sul tiveram acentuado acréscimo: 10% e 8% respectivamente.
Stefan Zweig escreveu que os livros são um universo “diversificado e perigoso”. No entanto, muitos projetos de leitura no Brasil ainda propõem visão única, padrão antigo, fuga a polêmicas, engessamentos. Lê-se para não pensar. Lê-se para não se pensar. Pode haver um “perigo na esquina” do texto que constrange e do texto que liberta, do texto que se consome e do texto que nos consome.
Julgo que ao confrontarmos as duas posições antagônicas das encruzilhadas da leitura (o padrão único e o diversificado) em momentos diferentes de nosso percurso na vida, chegamos à conclusão de que o alicerce da valorização da leitura nasce de nossa experiência, de nossas vivências com os textos. E a partir dessa vivência construímos nossa crença e nossa ética. Afirmamos, e com razão, que ler se aprende lendo. Melhor ainda, ler se aprende correndo riscos, permitindo que a diversidade de textos (e também de suportes) mantenha a aprendizagem em contínua revisão.
Nem sempre a leitura e a literatura entram em nossa vida como um ato de razão, uma escolha racional. Por vezes, ler constitui um momento mágico. O nascer do leitor, por exemplo, origina narrativas que o registram de forma sempre emocionante. Uma das mais tocantes, a meu ver, é a de Alberto Manguel contada em “A história da leitura” (1997, p.18)
“Então, um dia, da janela de um carro (o destino daquela viagem está agora esquecido) vi um cartaz na beira da estrada. A visão não pode ter durado muito: talvez o carro tenha parado por um instante, talvez tenha apenas diminuído a marcha, o suficiente para que eu lesse, grandes, gigantescas, certas formas semelhantes às de meu livro, mas formas que eu nunca vira antes. E, contudo, de repente eu sabia o que eram elas; escutei-as em minha cabeça, elas se metamorfosearam, passando de linhas pretas e espaços brancos a uma realidade sólida, sonora, significante. Eu tinha feito tudo aquilo sozinho. Ninguém realizara a mágica para mim. Eu e as formas estávamos sozinhos juntos, revelando-nos em um diálogo silenciosamente respeitoso. Como conseguia transformar meras linhas em realidade viva, eu era todo-poderoso. Eu podia ler.”
Esse momento inaugural e iluminado do processo de alfabetização é um caminho sem volta, melhor ainda, um caminho que dará em muitas encruzilhadas. Não há diplomas de leitor, eles se fazem ao andar. Não existe encruzilhada quando o caminho é único, não é mesmo?
Passei a adolescência na companhia dos livros que comprei (com verba de aniversários e natais) de baciada na papelaria próxima de casa (traduzindo: a Biblioteca das moças, com M. Delly capitaneando os livros preferidos). Li também os que fui encontrando aleatoriamente em estantes da Biblioteca Pública, em especial aventuras da coleção Terramarear. Naquele tempo as bibliotecárias se limitavam a carimbar a carteirinha e a conferir se devolvíamos os livros inteiros, sem rabiscos, manchas de café etc. Li o que encontrei em caixotes de revistas e livros de bolso de um tio aficionado: a revista X9, volumes de Seleções do Reader’s Digest e os volumes do faroeste fake, tendo como cenário o oeste dos EUA . Mais tarde descobri que o faroeste era caboclo, os livros foram escritos por José Carlos Riyoki Inoue, autor do interior de S. Paulo. É claro que não li os 1 086 que escreveu, mas passei por dezenas deles e por muitos de seus 39 pseudônimos! Vem daí, acredito, uma elasticidade leitora que me levou nas muitas décadas da vida a não ter preconceitos arraigados contra quaisquer gêneros literários! Eu tinha a estrada pavimentada para ser uma devoradora de inutilidades bibliográficas! Mas encontrei uma história semelhante ao ler um romance menor de Umberto Eco, “A misteriosa chama da Rainha Loana”(2004), que me devolveu a serenidade de encontrar citados muitos dos livros, revistas e filmes que fazem parte desse terreno subterrâneo e inconfessável de leituras que afrontam os cânones.
Assim como não fui tolhida ao garimpar os caixotes sangrentos, o mesmo não se pode dizer de experiências de leitura censuradas, seja no plano individual, seja no social. Bibliotecas escolares organizadas segundo critérios discutíveis (eles sempre o são) estabelecem rigidamente por prateleira a série a que correspondem os livros e professores e bibliotecários ou atendentes da biblioteca, seriamente comprometidos, mas censores convictos, impedem as crianças de terem acesso a prateleiras “proibidas”, “perigosas”.
Expandindo essa censura escolar para momentos históricos e ideológicos mais complexos, a destruição de livros, nascida da necessidade que o poder impõe de corrigir rotas, de apagar encruzilhadas tem acompanhado a história da humanidade desde tempos muito remotos. E atende sempre à intenção de destruir a encruzilhada e substituí-la pelo caminho único. Luciano Canfora, em “Livro e liberdade” rastreia o desaparecimento violento de obras e a censura a autores na Antiguidade Clássica. Fernando Báez, em “A história universal da destruição de livros” mapeia eventos e estigmas que levaram ao desaparecimento cruel e intencional de boa parte dos escritos ao longo da história da humanidade. O SESC Copacabana realizou uma exposição imersiva em que, depois de assistir à reconstituição da biblioteca real de Alberto Manguel (cujo livro dá título à exposição: “Biblioteca à noite”), os visitantes iniciavam, no cenário de uma floresta, uma viagem por dez bibliotecas físicas ou lendárias, visíveis com óculos de realidade virtual e uma delas de impacto brutal: o incêndio da biblioteca de Sarajevo, durante a Guerra da Bósnia Herzegovina. Um violinista tocando, sentado no degrau da uma escada que conduz ao saguão da biblioteca, enquanto o fogo inicia e se propaga atrás das portas fechadas da entrada ao acervo da biblioteca.
Báez no final de seu livro relata o episódio trágico da destruição da Biblioteca de Bagdá pelas tropas dos Estados Unidos em evento recente. E anuncia uma possibilidade arrepiante:
“Convém assinalar que milhões e milhões de livros foram digitalizados e convertidos em dados eletrônicos recebidos por uma espécie de biblioteca de caráter virtual. (…) Essas bibliotecas de traços futuristas, no entanto, não estão a salvo. Dezenas de hackers, ou piratas informáticos, tentam atacá-las constantemente para destruir seus arquivos. Não está longe o dia em que no lugar de fogo os biblioclastas utilizarão programas informáticos destrutivos, limpos e devastadores.(…) A destruição dos livros está longe de acabar.”
Enfim, nesta tarefa de colocar em perigo de morte as bibliotecas com seus livros, fica muito distante a compreensão da atividade leitora, segundo C.S. Lewis, em“Um experimento na crítica literária” : “O verdadeiro leitor, este lê todas as obras com seriedade, no sentido que as lê com total entusiasmo, fazendo-se tão receptivo quanto é capaz.”. A negação dos livros é a escolha exata das eternas Veredas Mortas, dos pactos com a negação, com a ausência de recepção, com o fechamento e bloqueio de todas as estradas. O negacionismo da essência do entusiasmo, que etimologicamente assinala a ligação da ação de ler com o estado de arrebatamento, de fervor interior, de inspiração divina.
Não pretendo abrir a intimidade de minha leitura para todas as encruzilhadas que vivi, não se preocupem. Há abismos que nem a nós mesmos confessamos… Mas um dos mais recentes, eu posso confessar.
Referi-me no início desta fala sobre a atração dos abismos, o amor ao perigo. Na leitura, é claro. Vasculhando livrarias há alguns poucos anos encontrei um livro nessa linha perigosa. É de Mikita Brottman, uma psicanalista e professora estadounidense, do Maryland Institute College of Art, de Baltimore, intitulado “The solitary vice against reading” (O vício solitário contra a leitura). É um livro instigante porque traz relatos, experiências e reflexões a respeito de leituras que não são as mais respeitadas, que não estão exclusivamente em livros e integram a cultura de massa (revistas e cinema, por exemplo). Enquanto professora universitária e escritora, ela lê os repertórios da cultura contemporânea pelo avesso ou pelo anverso, como quer João Cabral de Melo Neto, em poema dedicado à poeta Marianne Moore (1897-1972):
Ela aprendeu que o lado claro
das coisas é o anverso
e por isso as disseca:
para ler textos mais corretos.
E que gêneros ela leu e se encontrou neles? Livros de crime e horror, biografias, livros com confissões de celebridades (que denomina “vanity fair” e a cultura do voyeurismo), policiais- sem dúvida- e revistas leigas sobre psicanálise. Mikita Brottmann enlaça essas leituras com uma bem-humorada crítica à leitura de obras “bem comportadas” e de clássicos da literatura. Sua argumentação gira em torno da rejeição de leitores adultos a leituras sisudas, tradicionais, que apelam mais à razão do que à sensibilidade, mais à abstração do que ao real cotidiano. Sua visão de leitura aponta para outra sinalização: ‘Não abandone o caminho do prazer da leitura! Leia sem preconceitos. Desconfie de seu professor.”. Sim, isso mesmo! Uma postura à moda da “Sociedade dos poetas mortos” com sua atitude desafiante e a proposta de formas alternativas de ler a produção cultural.
Na conclusão do livro, ela afirma: (vou tentar traduzir aproximadamente o texto – fiquem tranquilos não o lerei em inglês, pois tenho respeito aos ouvidos alheios.) “A literatura me deu uma dose enorme de prazer, e há certos livros aos quais voltei de novo e de novo. Em retrospecto, porém, eu reconheço que os livros que foram os mais significativos para mim ao longo da vida foram aqueles que, na primeira leitura, eu considerei os mais perturbadores ou os mais difíceis de ler.” Interessante esta conclusão porque, ao mesmo tempo em que insiste na noção de prazer e de liberdade de escolha, retorna à ideia de que significativo é o texto perturbador. Podendo estar fora do circuito das obras constantes de listas das obras mais valiosas e merecedoras de leitura. Posiciona e valoriza o leitor como aquele que foi perturbado e que encontrou a sua frente um texto desafiador.
Segue mais profundamente nessa valorização do leitor, citando Mortimer Adler, com o qual concorda que “a prática de educadores, mesmo que bem intencionados, que tentam deixar a leitura menos penosa do que ela é, não só a tornam menos estimulante, mas também enfraquecem a vontade e as mentes daqueles contra quem esta fraude é perpetrada.”
Esta é uma encruzilhada profissional tão séria e desafiadora, semelhante às Veredas Mortas de Riobaldo, em “Grande sertão: veredas”. A função do educador em seu desempenho profissional na formação de leitores, em especial de leitores da literatura, tem a ver com três aspectos, no meu entendimento:
1 a definição dos objetivos e valores humanos da leitura da literatura (permanentes ou mutáveis);
2 a definição dos critérios de seleção de textos (que denomino, “As escolhas de Sofia”);
3 a definição de metodologia equivalente ao objeto em estudo (cujo apelo se pode traduzir por um “Professor, poetize-se!”).
Este momento abre para outros caminhos: os atalhos, veredas e becos sem saída do trabalho voltado à formação de leitores na escola. E pede um novo capítulo. que poderá vir a seu tempo.
fico por aqui, quem sabe na chegada a uma nova encruzilhada. Agradeço sua companhia, sua paciência e atenção. Agradeço em especial à Pastoral; também à Patrícia e à Maria Beatriz pelo impecável suporte tecnológico.
E convido João Cabral de Melo Neto a vir em minha companhia por mais um tantinho do caminho. Maurício Fernandes, a quem agradeço demais, em sua voz e interpretação dirá um pouco do que esta velha leitora conseguiu aprender nas encruzilhadas de sua vida:
Para Paul Ricoeur, “a leitura é REFIGURAÇÃO = transformação, re-simbolização, re-mitização.” A partir dessa analogia, hoje não se pode mais conceber a leitura como exercício de alfabetização ou como procedimento que levará a interpretações únicas, fechadas, pré-determinadas, pré-configuradas pela intenção de um autor. Mesmo um texto objetivo: “A República foi proclamada pelo marechal Deodoro em 1889.” provocará diferentes reações, a depender do modo de ler e do repertório dos leitores. Aceitação, dúvida, negação, repulsa, patriotismo, exaltação militar etc.
Mesmo alfabetizado, o leitor não termina nunca seu processo de formação leitora. Vive em estado de tensão permanente entre o horizonte do presente (o leitor que é hoje) e os textos do passado. Isso faz com que o horizonte do presente esteja em constante formação porque põe sempre à prova nossos pré-conceitos. Mas a tensão se revela também, e continuamente, quando o leitor se depara com textos até então excluídos de seu repertório: livros sobre física quântica, sobre jornalismo literário, sobre teoria da desconstrução, sobre a história da perspectiva dos excluídos, sobre filmes ficcionais com o tempo reverso (p.e., o filme “Amnésia”, de 2000, com Christopher Nolan).
Essa multiplicidade permite compreender por que as portas de entrada da leitura são muitas e, por vezes, surpreendentes. Bruxos, vampiros, cabanas, números, fórmulas, imagens, sons podem estar na fonte primeira da sede saciada. O perigo não está nessa fonte, está, sim, em converter a fonte em único lugar onde se pode beber. Há lagos, rios, corredeiras, cascatas, riachins e oceanos, em que se apresentam e despenham as águas da leitura. Para beber, para banhar-se, para afogar-se, para aceitar ou recusar. O leitor pode viver sua vida leitora no mesmo lago, mas jamais compreenderá a força do oceano. Pode ler exclusivamente quadrinhos a vida inteira, mas perderá as imagens incompletas dos grandes romances. Pode ler exclusivamente textos científicos, mas perderá o movimento intenso e prismático dos quadrinhos e a força imaginária da literatura. Poderá ler exclusivamente a ficção, mas não aprenderá a intensa liberdade da poesia e o rigor especulativo do discurso histórico. O escritor japonês Haruki Murakami afirma: “Se você só lê os livros que todo mundo está lendo, você só pode pensar o que todo mundo está pensando.”
Ler é uma ação solidária de integração na história da cultura. Ao ler, estou sozinho, isolado, mas apenas fisicamente. Mental, imaginária e intelectualmente, estou bem (ou mal) acompanhado. Por isso, antes de interromper, com boas intenções, a leitura de alguém embevecido, pense que pode estar cortando – temporariamente – o fio humano que tece a história da cultura.
E as ações para formar leitores e dar alma à leitura oferecem às pessoas a oportunidade de descobrirem-se múltiplas na multiplicidade incontrolável dos textos.
(In: Revista da Academia Paranaense de Letras, Curitiba, nº 69, p. 68-70)
(Live no I Circuito de Literatura e Artes da Pastoral Univeritária Anchieta da PUC-Rio, em 27 de outubro de 2020)
Marta Morais da Costa
“Sem a beleza, o amor ou o perigo, seria quase fácil viver”.
(Albert Camus)
Saúdo a todos e agradeço o convite de Maurício Fernandes, que chegou em uma noite de ares rarefeitos por causa da seca curitibana e trouxe a energia boa da leitura e da literatura. Agradeço também à Pastoral Universitária Anchieta pela oportunidade de conversar com seus participantes e convidados.
Em minha idade, estar fazendo uma live tem algo de paradoxal: nos bastidores fica a luta travada com a tecnologia (e como trava), esta indesejada da velha geração. Fica igualmente a encenação de um estar à vontade conversando com a câmera como se estivesse no olho a olho com as pessoas. Nós nos fazemos falta: eu cá sem vocês e vocês aí me vendo em uma tela limitadora, em fala intermediada pela transmissão à distância. Confesso que ficarei feliz se a imagem não congelar, se o som for audível, se o power point não falhar, se a voz não quebrar no meio das frases… assim, tipo pesadelo de professor.
Se o convite foi um presente, a sugestão do professor Maurício para o tema deste nosso encontro foi maior ainda. “Ler é perigoso!” com um ponto de exclamação que é ao mesmo tempo um alerta e uma descoberta. Confesso que tenho uma queda pelos abismos, pelos precipícios, pelos riscos do desconhecido. Alguém falou perigoso? Deixa ver: para quem fica escrevendo e falando que ler é uma atividade prazerosa, que contribui para a formação de um espírito crítico, que transforma o leitor, que favorece a imaginação e mais isso e mais aquilo e este outro, como assim, perigoso? E lá fui eu baixar livros da estante, consultar o falível Google, ler os livros quase esquecidos, comprar mais uma dezena deles, interrogar e interrogar-me. Aos poucos quem estava a perigo era eu. Insônia, inquietude, insegurança, interrogações. Mas aos poucos o abismo foi lentamente ficando menos atemorizador, sem ter perdido a atração dos perigosos abismos.
Os papeis, livros, anotações, memórias e leitura leitura leitura foram se organizando devagar, devagarinho. E nasceu uma proposta de fala que foi ganhando corpo e alguma organicidade. E aqui chegou. A primeira modificação foi na abertura do título: a proposta do professor Maurício foi singular, mas a resposta será plural. Não cruzamentos, apenas seguindo a forma de cruz, mas encruzilhadas, que além de lugar de cruzamento pode assegurar o significado metafórico de “Momento ou situação em que se apresentam várias possibilidades para se chegar a uma decisão”. Serão, pois, encruzilhadas, implicando escolhas: a continuidade ou a ruptura de um novo caminho.
Começo pela origem da palavra.
PERIGO! do verbo latino periri: periculum (significa tentativa, prova, risco, exame). O ato de ler enquanto uma atividade de risco, o leitor enquanto um aventureiro que se arrisca. Fazendo tentativas de compreensão, interpretação e apropriação. Ler enquanto uma operação, um agir, não enquanto uma submissão. O texto encarado como um desafio, uma desacomodação. O leitor inicia sua trajetória no texto entendendo que precisa arriscar, nada lhe será dado pronto, fechado, definido. Ele precisa atuar como periclitor, ou seja, precisa arriscar-se, por-se em perigo. Não se trata de um perigo físico, nem mental: a própria ação de ler é arriscada. Em cada texto submetemos nossa aprendizagem de leitura ao perigo de nos confrontarmos com o incomum, com o não experimentado, com outra e diferente forma de atuação leitora. Quando eu me refiro a texto, incluam, por favor, textos, em diferentes linguagens (jornais impressos ou digitais, publicidade, documentários, livros didáticos, jingles, fotos, filmes etc) .
E a leitura da literatura? Bom, desde que o texto seja efetivamente arte, isto é, que contenha a técnica literária e a intenção artística, nós, leitores, estaremos sempre em risco durante nossa atividade. Banksy, um artista plástico contemporâneo e desafiador, afirma que “a arte deve confortar o perturbado e perturbar o confortável”. Enquanto arte, será sempre contramão.
Volto à etimologia para trazer dois termos pertencentes ao mesmo campo semântico de “periculum”. São as palavras peritus = perito, que significa o “que sabe por experiência, o instruído”; e imperitia = ignorância. São os que passaram pela experiência textual e, no caso da arte, enfrentaram os perigos mais numerosos, perturbadores, desafiadores e desconfortáveis. E amadureceram na experiência. Ou ignoraram os textos que lhe passaram pelo caminho.
Ler entendido como um ato de ruptura, como quem chega de mansinho e confortável e… plict, plact , zum! o que foi lido muda, desvia, transtorna, perturba o leitor.É o momento de estar sobre um fio que atravessa o abismo. É chegar a uma encruzilhada em que a estrada desconhecida é a única saída. A encruzilhada abre caminhos, mas a decisão de tomar um ou outro é do leitor. E nesta escolha ele pode encontrar a pedra de Drummond, a toca do coelho de Alice ou a planície da literatura de massa.
Retirar um volume da estante pode ser um passaporte para lugar nenhum, mas pode ser o visto de entrada em um país estranho, diferente, revelador. E aí ler é perigoso porque é arriscado, porque sai do traçado, porque coloca à prova, porque examina. É a própria aventura do leitor que arrisca sentidos, que questiona, que “se coloca à distância para melhor ver”, como ensina Eliana Yunes. Por isso, perito é o que sabe por experiência, porque se arriscou, porque experimentou.
Pois é, vinha eu, criança ainda, e topei com o perigoso Monteiro Lobato (hoje mais perigoso ainda porque acusado de não ser o autor da história de hoje por ter sido o autor da história de ontem). Pior ainda, por ter criado uma perigosa boneca falante e asneirante que botou abaixo alguns ditames da velha educação e da velha República, construindo uma biografia ficcional para lá de desafiadora. Eu vinha de contos, fábulas e poemas, em modelo uniforme de colégio de freiras: blusa branca, saia anil. Neles, tudo dava certo no final: as crianças aprendiam a ser adultas antes do tempo, por contingência e por obediência.
Emília me jogou uma capa de chita, tirou meus sapatos de verniz e encheu minha cabeça de porquês! Mais perigosa ficou porque o livro que me chegou às mãos (tipo “Felicidade Clandestina”) não veio pelos caminhos da escola. Um tio bem intencionado pretendeu me presentear com um volume de reforço às aulas do primário e colocou em minhas mãos um exemplar de “Emília no país da gramática e aritmética da Emília”! Um volume, duas histórias! Mas o tiro saiu pela culatra em bom ditado antigo… e perigoso. Em lugar de aprender as classes gramaticais, o fascínio veio pelas ilustrações em que palavras viravam corpos e vice-versa, e uma voz irônica botava abaixo barbarismos e solecismos, questionava classificações e mostrava uma dança de palavras que escapavam pelas frestas da gramática e se perdiam em outros mundos. Foi paixão daquelas de preocupar pais vigilantes.
Cada um de nós, leitores, carrega seu primeiro amor (“que foi como uma flor que desabrochou”). O tal “Ai, a primeira festa, a primeira fresta, o primeiro amor” que o Chico Buarque cantou em “Flor da idade”. Também carrego o meu.
Eu poderia dizer uma mentira deslavada: havia nascido ali com Emília o abismo em que me precipitaria para o resto de meus dias. Que nada! Depois do furacão-abismo Lobato, voltei ao conforto de leituras escolares padronizadas e livros sobre aventuras em países exóticos e manuais de amores eternos, com mulheres perfeitas e cavalheiros arrogantes e mais tarde apaixonados!
O psicanalista Bruno Bettelheim, que faleceu aos 82 anos, em entrevista afirmava que, de tudo o que leu ao longo da vida, avaliava ter encontrado leituras significativas e transformadoras em apenas 4 obras. Levo a vantagem de, um pouco distante dos 82 e espero distante também da hora fatal, já ter encontrado um número maior de paixões literárias e desviantes. Talvez eu seja mais volúvel. Ou tenha uma formação mais rasteira e por isso sujeita a sacudidas mais frequentes, a mudanças de caminho mais constantes.
Nesta já longa caminhada acompanhada de livros, magistério e muita leitura algumas dúvidas consegui esclarecer para mim mesma. Mas à medida que solucionava algumas, pululavam a minha volta dezenas de outras. Vou escolher algumas só para ilustrar algumas encruzilhadas que deram em caminhos inusitados e em muitas pedras.
Começo por uma paixão de maturidade: Manoel de Barros
VII
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos –
o verbo tem que pegar delírio.
(Manoel de Barros. O Livro das Ignorãças. 1993.p.17)
Os delírios que Lobato criou deixei se espalharem em outros livros e outros fazeres ao longo da vida.
Tive uma formação profissional na Universidade muito desigual, péssima em áreas essenciais para meu magistério posterior. Um dos livros que me colocou no caminho possível da grande encruzilhada pedagógica foi “Summerhill, liberdade sem medo”, de Alexander Sutherland Neill, que chegou ao Brasil no início da década de 1960 e que conheci alguns anos depois. Perigosíssimo. Falar em liberdade sem medo em tempos de ditadura era quase como ter escondido em casa um volume de “O Capital”, de Karl Marx. No livro, é narrada a experiência inovadora com educação na Inglaterra apoiada em um tipo de gestão democrática com flexibilização curricular, em que as aulas são opcionais e os alunos participam das decisões sobre estudos e gestão. Como resultado da leitura que me fascinou, comoveu e entusiasmou, não criei uma Summerhill curitibana. Criei, sim, uma utopia interior que me arrastou por planícies e abismos ao longo da carreira. E que reencontrei e vivenciei na literatura. Liberdade sem medo tem tudo a ver com literatura de qualidade, com leitura qualificada. Juntei as duas e saí lutando.
Alguns anos depois uma encruzilhada de Veredas Mortas, habitada pelo Cujo, o Ão, o Cramulhão, o Barzabu, o Satanazim, o Dianho de Guimarães Rosa colocou no precipício mais profundo e chamuscável a literatura que eu havia lido até o momento. Grande Sertão: Veredas é até hoje a paixão e a encruzilhada mais definitiva de minha leitura e de minha ligação umbilical com a língua. foi realmente “a voz de poeta, que é a voz de fazer nascimento”. Liberdade sem medo de ler, de escrever, de pensar, de sentir, de olhar para o mundo. Parodiando o “Ver com olhos livres” do Manifesto Pau-Brasil de Oswald de Andrade, pude viver um ler com olhos livres. E estávamos em plena ditadura…
Outros terremotos, outros verbos delirantes viriam e continuam a chegar. Há uma formação de leitores que atinge certo grau de autonomia ao final da escolarização, mas há outra formação que realizamos, muitas vezes individualmente, ao longo de toda a vida. Isto significa que, ao buscar insaciavelmente o encontro com o livro perfeito, nos arriscamos, caminhamos à beira do precipício – talvez com maior cansaço e dificuldade motora por causa da idade, mas permanecemos abertos ao erro e às descobertas.
Um teórico da leitura, de base filosófica e histórica, Hans-Robert Jauss, lançou em sua teoria o termo “horizonte de expectativas” de que gosto muito. “Todo leitor se aproxima de um texto com suas próprias ideias sobre o que espera encontrar nele; estas ideias dependem do marco social e cultural em que se encontre o leitor”, assim se define esse horizonte. Eu acrescentaria que também atua como baliza nesse processo o histórico de suas leituras, o modo como lê e os objetivos que projeta para aquilo que lê. Trata-se de reconhecer os limites de percepção e visão ditados pelo histórico de leituras de um leitor e por seus conhecimentos prévios a respeito da língua, dos modos de produção de sentidos e de cosmovisões, todos colocados em um texto determinado.
Gosto dessa denominação “horizonte de expectativas” porque horizonte é uma metáfora visual muito rica, vivenciável e mutável. Quem pouco lê, tem um horizonte de expectativas em relação à leitura que é estreito, finito, restrito. Este horizonte se ampliará à medida que leituras diversificadas e múltiplas forem acontecendo. Será ampliado na medida em que o leitor, ultrapassando perigos, se torne mais perito na ação de ler. Contribuem para essa ampliação todos os textos da cultura que fazem parte de sua formação, não importa o suporte em que estejam.
Outra não é a posição do escritor-cartunista-gênio Quino, o criador da Mafalda, quando a faz afirmar que “Viver sem ler é perigoso, porque te obriga a crer no que dizem.”. Sujeita-se o leitor, voluntariamente ou não, a assumir o “horizonte de leitura” estabelecido por outrem.
Está posto um problema ontológico e metafísico neste momento: afinal qual ação é perigosa? Ler? Ou não ler? “’Ora, direis ouvir estrelas”: é claro que tudo depende da perspectiva e valores. Depende de ver o horizonte?
Cócegas mentais me fazem pensar pelo avesso: não seria mais tranquilo, e com grande economia de tempo e expansão dos prazeres do ócio, deixar a indolência tomar conta das pessoas e limitá-las a ler apenas o básico, isto é, aquelas formas textuais necessárias à sobrevivência cotidiana básica, primária? Ou então, convencê-las que ler é difícil, trabalhoso, que é melhor substituir os livros por outras atividades ou ler apenas livros de que se goste e que sejam simples em sua linguagem e rasos no tratamento dos assuntos? Textos que sigam o mesmo modelito narrativo ou poético, cristalizado? Ou então que proporcionem exclusivamente entretenimento?
Não quero que pensem que prefiro um atalho de pedras, sem asfalto nem sinalização, a uma ampla estrada pavimentada e em, digamos, dez vias. Também tenho minhas paixonites volúveis no mundo atraente dos best-sellers. Só não fico estacionada em uma das dez pistas, acreditando que assim chegarei a qualquer lugar paradisíaco. Percebo que nem todas as encruzilhadas me oferecem perigos dramáticos e riscos. Elas podem apontar caminhos de Iaras e Botos sedutores que, enleando o leitor em abraços amorosos, o prendem em armadilhas mortais. Ler qualquer coisa, ler por ler, ler para contabilizar, ler para atender à lista dos mais vendidos, pode significar um abismo acolchoado, atapetado, envolvente, atordoante e escravizador.
Não é esta a programação decretada por Beatty, o comandante dos bombeiros incendiários em Farenheit 451? Algo assim como:
“Encha as pessoas com dados incombustíveis, entupa-as tanto de “fatos” que elas se sintam empanzinadas, mas absolutamente “brilhantes” quanto a informações. Assim elas imaginarão que estão pensando, terão uma sensação de movimento sem sair do lugar. E ficarão felizes, porque fatos dessa ordem não mudam. Não as coloque em terreno movediço, como filosofia ou sociologia, com que comparar suas experiências. Aí reside a melancolia. Todo homem capaz de desmontar um telão de tevê e montá-lo novamente, e a maioria consegue, hoje em dia está mais feliz do que qualquer homem que tenta usar a régua de cálculo, medir e comparar o universo, que simplesmente não será medido ou comparado sem que o homem se sinta bestial e solitário. (…) Portanto, que venham seus clubes e festas, seus acrobatas e mágicos, seus heróis, carros a jato, motogiroplanos, seu sexo e heroína, tudo o que tenha a ver com reflexo condicionado. Se a peça for ruim, se o filme não disser nada, estimulem-me com o teremim, com muito barulho. Pensarei que estou reagindo à peça, quando se trata apenas de uma reação tátil à vibração. Mas não me importo. Tudo o que peço é um passatempo sólido.” ( Ray Bradbury, Farenheit 451)
Ler e escrever. Lire et écrire. Leggere e scrivere. To write and to read. Lesen und Schreiben
Essas palavras que, irmanadas, ecoam uma na outra a sonoridade final ou inicial, não constituem apenas verbos e rimas, mas propõem uma aliança que seus praticantes recusam a desfazer. Leio para bem escrever. Escrevo para melhor ler. Qual dos dois, tal o enigma infantil – e transcendental – da galinha e do ovo, está na origem, é o momento inaugural de uma trajetória em códigos, textos e suportes?
Em décadas recentes, vozes que procuram atestar a importância dessa dupla ação física e intelectual povoam páginas impressas ou digitais. As opiniões, as definições, os depoimentos e as tentativas de descrição invadem a cultura em seus mais diferentes ambientes: a oralidade, o público massivo, a erudição mais refinada.
Escritores no Brasil espalham-se pelos mais diferentes canais, códigos, plataformas e suportes. A cultura vê-se invadida por uma produção que parece fazer submergir os leitores e emergir escritores em cada canto, fresta e desvão deste país. Talvez seja um auspicioso sinal de um povo em necessidade premente de expressão pessoal. Talvez seja um sinal de um povo em desvio inconsciente da aprendizagem provocada pela leitura: escreve-se mesmo sem amadurecer leituras. Ou talvez a enxurrada de novos textos e nos mais variados suportes comprove que o nível intelectual de um povo talvez possa ser medido não pelo que se lê, mas pelo que se escreve. O que jogaria ao mar todas as pesquisas que achatam nosso orgulho nacional quando os brasileiros participam de concursos ou competições de leitura, compreensão e reflexão a partir do que leem, como o PISA, o Enem, o ENADE.
Sônia Rodrigues dedica um livro à descrição e à análise do RPG – ou seja, do Roleplaying game – um jogo alicerçado em personagens e enredo, arquitetado pelos jogadores ao jogar. O título é “Roleplaying games e a pedagogia da imaginação no Brasil”. Duas afirmações da autora chamaram-me a atenção. Eu as reproduzo para poder comentá-las.
A primeira delas afirma categoricamente que “Uma criança ou adolescente narrando histórias só com o auxílio de sua imaginação, sem repertório ou iniciação, está fadada a propor enredos pobres.” (RODRIGUES, 2004, p.137). Não posso fugir a uma associação com a escola. Professores almejam que seus alunos sejam capazes de produzir textos denominados pela pedagogia do engano de “criativos” sem a devida preocupação com “repertório e iniciação”. Temas livres, redações de supetão, textos de baixa paródia, chavões, lugares-comuns, banalidades e trivialidades colocadas no alto do pódio da avaliação, como se fossem o suprassumo da capacidade expressiva dos pobres redatores iludidos.
E sabemos que não apenas a escola valoriza este campeonato de trivialidades narrativas ou poéticas. As estantes e os e-readers acumulam textos que não passam de um amontoado de clichês, de desabafos, de falsa espontaneidade em forma de narrativas (como as biografias de anônimos em busca da celebridade, de narcisos desejando que a água se transforme em espelho, de preferência com gambiarras de LED).
É verdade que aprendemos muito ao reconhecer e aplicar modelos, padrões, exemplos. Mais rapidamente aprende a ler quem tem em sua vida exemplos de leitores. A família, os professores, os amigos, um vizinho, um ídolo do cinema ou da música, alguém que leia e divulgue a leitura será sempre um indutor de leitores, um formador de leitores. São círculos concêntricos dentro das águas da cultura. Mas “sem repertório, sem iniciação…os enredos serão pobres.” Seria como se o mundo começasse repetidamente da fase zero. Seria como se, em termos de leitura e escrita, o aprendiz estivesse sempre retornando ao período anterior à criação dos sumérios. O repertório criado pela história dos textos, o leitor-escritor que tem conhecimento ao menos de parte desse percurso, está melhor equipado para ler e escrever. Mesmo que posteriormente venha a se insurgir contra padrões e exemplaridades. Os pioneiros serão marcos inamovíveis da Estrada Real da leitura e da escrita.
A segunda afirmação adota outra perspectiva: “Escreve o leitor que se arrisca à exposição. O leitor que não teme (em excesso, pelo menos) a rejeição ou aquele que precisa da companhia, do aplauso, da apreciação de alguém que o leia.” (RODRIGUES, 2004, p.185). Quando me deparei com esta frase, entrei em grave crise identitária. Escrevo há muito tempo com a ingênua intenção de expor ideias, preferencialmente. A forma reflexiva do verbo (expor-se) passava ao largo de minhas modestas pretensões. Mas aprendi que a linguagem é um confessionário ou um divã inescapável. Ao expor me exponho. Nem Pablo Neruda com sua definição objetiva e professoral de texto (“Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio, você coloca ideias.”) me propiciou alívio à crise.
Talvez uma visão cética como a de Carlos Drummond de Andrade pudesse aquietar-me: “Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante”. Materializar dessa forma a escrita, pensar apenas como um preenchimento de lacunas espaciais, como um quantitativo de linhas e volumes talvez pudesse retirar da escrita o peso da exposição da identidade.
Argumento enganoso! A escrita, mesmo de uma crônica desengonçada e despretensiosa sobre ler e escrever como esta, pode corroborar a visão de Elvira Vigna: “Quando escreve, você não fica igual ao que era antes. Você se modifica. Tem que pagar esse preço, de saber que você vai ficar diferente.”
Neste período de epidemia – que se faz longo, além de qualquer expectativa – em que fomos encerrados por força de um vírus em nossas casas e em nós mesmos, quantos não deram início à leitura ou à escrita? São tantas as demonstrações livrescas (jogos, gincanas, declarações de amor, bibliotecas como pano de fundo de lives, crescentes vendas eletrônicas de livros, ebooks e audiolivros) que formam um lastro de euforia em educadores e promotores de leitura. Talvez seja apenas um fenômeno pandêmico que cessará com a chegada de vacinas anti-leitura.
Também a escrita se derrama em páginas, sites, blogs, mensagens, diários. Não necessariamente uma escrita literária ou estética. Mas algo como uma via de expressão a mais na sociedade tão afogada por palavras escritas. Mas a escrita, seja destampatória ou exercício, traz novidade para uma cultura avessa a textões e a qualquer papel que lembre, ou exija, o trabalho de ler.
À espera da vacina, à espera das transformações, à espera de outro olhar da sociedade para a escrita e a leitura, continuarei nesta cidadela, acreditando na resistência de seus muros feitos de livros e de suas janelas feitas de escritas. Talvez nada do anunciado “novo normal” se cumpra. Faz mal, não. Perder batalhas, perder a guerra, perder o juízo e até a própria história são fatos da vida. Nem sempre é possível nesta jornada sobre a Terra exclamar “veni, vidi, vici”.
Mas será sempre possível dizer, em latim ou em português, ego vivo, eu vivo, continuo viva.
Obs.: Esta é uma nova versão de um texto que publiquei em novembro de 2017. São dois anos, oito meses, milhares de páginas e uma epidemia de diferença entre aquela data e esta publicação. Algumas ideias e citações permanecem. Outras foram acrescentadas ou intensificadas. O propósito central permaneceu: tratar da relação entre leitura e escrita, porque continuo acreditando que essas duas ações fazem a diferença no mundo e na vida. Salvacionismo? Talvez. Eu diria antes que é um manifesto, um protesto e uma constatação.
Na placidez atemorizada dos dias de quarentena, o tempo escorre lentamente e os dias parecem mais longos. Nos vazios criados pelo estar constantemente em casa, surgem oportunidades e ânsia de experiências diferentes. Na tecnologia capaz de aproximar pessoas isoladas em casas diferentes, surgem recursos que sustentam ideias e ações de aproximação. Esses ingredientes combinados justificam o novo espetáculo chamado “live”, o já conhecido “ao vivo”.
O termo e o fato se tornaram corriqueiros e as pessoas abrem bocas desmesuradas para anunciar a novidade: a laaaaive.
Como tudo na vida da comunicação nasce, tem sucesso, redunda-se, satura e morre, viveremos o ciclo da novidade com bastante rapidez. Tão logo voltem os dias supostamente felizes, nada superará o encontro real de olhares. Ficarão resquícios do que vimos e ouvimos nas telas, pois a solidão e a distância são humanamente esporádicas.
O vivo abstrato e mediado por recursos tecnológicos é frio, tem apenas duas dimensões, de vez em quando apaga, trava, não me responde no tempo adequado do diálogo presencial. A oralidade transmitida tem atrasos, descompasso de movimentos labial e de som, são seres esquartejados, colados em álbum de figurinhas moventes, parecem marionetes humanas (realizando com a diferença de século e meio o sonho de Meyerhold!)
Mas quem não tem vida normal na clausura, caça com laives: abundantes, diversificadas em temas e semelhantes no formato. Como presas fáceis, capturadas pela impossibilidade de deslocar-se a lugares de convivência coletiva, podemos passar o dia todo a assistir as laives no compasso estranho de real conversação ou em formato histórico do já acontecido no Youtube. Umas funcionam como desfastio, outras como aprendizagem. Outras…bem…não funcionam simplesmente.
Participar de uma, no entanto, tem o encanto da novidade, o desafio do nunca feito, a exposição aos inesperados (sejam de fala ou de tecnologia). Uma vivência com todas as qualidades e defeitos da vida: a busca de saídas, a procura de contatos humanos, o compartilhamento, a exposição de ideias e valores, os encontros e desencontros.
Em parceria com Etel Frota e Vera Mussi, enfrentamos o tema “A literatura como remédio para uma epidemia”, uma fala a três, patrocinada pelo Departamento Cultural do Clube Curitibano. A discussão trouxe aos participantes uma reflexão sobre os modos como são recebidos os textos pelos leitores e o uso que dele fazem durante um período de quarentena. Também foi explorada a questão relativa aos estágios de enfrentamento mental durante esse período quase (às vezes totalmente) solitário e tenso, que põe à prova disposições diferentes de enfrentamento. Na conclusão, a literatura apareceu como uma forma múltipla, tanto em personagens, culturas, temas e narrativas. Pela diversidade própria do gênero, ela tem condições de atingir de modo diferente, leitores diversificados. Mais do que isso, o isolamento permitiu a exploração de outros suportes para o texto literário, seja o digital ou o audiolivro.
Não se pode também esquecer a importância das narrações orais que ocuparam muitos espaços das lives de diferentes leitores e narradores orais, amenizando a tesão, trazendo a público histórias e autores, provocando olhares diferentes sobre a realidade e a própria literatura.
No meu percurso profissional estive sempre disposta a aventuras. Fazer uma live nas condições atuais representou mais um desafio e me lembrou uma pequena crônica que escrevi sobre outra experiência que impactou o modo com que passei a mediar saberes e textos literários enquanto professora. A crônica é de 2006 e o passar do tempo apenas mudou a tecnologia. O assombro e a vontade de experimentar continuam os mesmos. Para quem tiver a paciência de ler, segue a transcrição do texto, tal como foi publicado pelo jornal “O Estado do Paraná”, que apoiava e divulgava uma crônica semanal sobre leitura e cultura (esta, sim, uma atitude que assombra pela ausência na atualidade).
A PRIMEIRA MULTIMÍDIA A GENTE NUNCA ESQUECE
As aventuras de um professor em sala de aula só podem ser bem compreendidas à distância. Enquanto se dá a travessia pelas águas conturbadas dos deveres do magistério – preparação de aulas, reuniões, projetos, relatórios, infinitas leituras e correções e reescritas, além das prioritárias atividades na tarefa de transmitir/discutir o conhecimento – pouco tempo sobra para uma reflexão sobre o fazer docente e seus instrumentos.
À medida que o tempo se esvai na sucessão vertiginosa dos números de horas, meses e anos, tomamos consciência das mudanças pelas quais passaram nossos dias em sala de aula, bem como da maneira como assimilamos, ou não, as teorias e os paradigmas, também estes em sucessão vertiginosa. A imersão no tempo presente costuma distorcer a proporcionalidade e mérito de fatos, pessoas, atitudes e pensamentos. Não seria diferente com a escola e seus agentes.
Não faz tanto tempo assim, a tecnologia mais avançada em sala de aula era representada pelo flanelógrafo e pelo projetor de slides. Não faz tanto tempo assim, um sinal de modernidade era a projeção de transparências (lâminas, em algumas regiões do país) em preto e branco e, suprassumo dos encantos e despesas, a colorida! A era digital rapidamente jogou para o canto escuro das antiguidades esses materiais. Hoje, é com certa sensação de vergonha – e encontrando um ar de mal disfarçada comiseração de nosso interlocutor – que pedimos um retroprojetor para ilustrar, definir melhor, economizar nosso trabalho docente.
As universidades fizeram do instrumental mulmidiático um fator de sedução para atrair novos alunos. Quem organiza eventos se prepara com muitas unidades do já popular datashow, escolhendo salas especiais, porque sabe que palestrantes e conferencistas não abrem mão dessa tecnologia. As escolas, no entanto, ainda amargam essa deficiência a mais.
O computador, já sabemos, não veio apenas para facilitar o trabalho docente e a aprendizagem discente. Trouxe consigo um novo modo de ler e nova textualidade. Provocou uma enxurrada de estudos e desencadeou uma reflexão intensa sobre a possibilidade de desaparecimento do livro. Passado o período terrorista, lidamos na atualidade com novas realidades em sala de aula. A tecnologia permitiu aos docentes revelar não o domínio sobre a máquina e a inventividade de formas visuais: demonstrou com grande clareza as deficiências cognitivas e didáticas dos utilizadores de multimídia.
Tenho em minhas retinas da memória a imagem da primeira apresentação em datashow a que assisti. Para iniciar a apresentação, foram necessários um complexo trabalho técnico de montagem e, durante a palestra, a permanente assistência de um especialista em informática. Mas a revelação das imagens e a descoberta das possibilidades comunicativas e sedutoras daquela apresentação marcaram profundamente os neófitos como eu. O novo brinquedo, ou melhor, a nova tecnologia permitia transformar em imagens idéias e, sobretudo, relações inumeráveis. Além de trazer um certo clima cinematográfico ou televisivo para o ambiente radiofônico da sala de aula.
Muitos e muitos slides depois, já me é possível utilizar e conviver com o instrumental (hoje mais simplificado e banal), além de produzir alguma análise sobre seu uso docente.
Em ensaio de 1996, José Dieguez atribuía às imagens três funções básicas: a funções informativa, persuasiva e de catalisação de experiências. Na primeira, abria para quatro subgrupos: o primeiro realiza a substituição de uma realidade concreta, o segundo trata de categorizar os objetos, o terceiro explica e organiza as relações entre objetos, e o quarto facilita a amostragem de informação, porque apenas traduz a linguagem verbal em imagem.
Já a função persuasiva está apoiada em dois tipos de imagem: as motivadoras e as estéticas. A função final, a catalisadora, eu a vivi naquele primeiro contato com a possibilidade de organizar as imagens para transformá-las em material vivo, móvel, docente.
Mas, ao longo de minha experiência, tenho assistido a um uso preferencialmente informativo e pouco estético dessa tecnologia. A cor, as formas, os recursos de som e movimento são utilizados muitas vezes em si mesmos. A fala docente que os acompanha tornou-se repetição da imagem. Não foram poucas as ocasiões em que o professor leu o texto tal qual inscrito na imagem da tela. A função de facilitação redundante, concretizada no uso da multimídia como um retroprojetor animado e colorido, sempre me dá a impressão de uma rubra e macia cereja enfeitando um bolo insosso e pétreo. Enfeite tecnológico para criar um ambiente de modernidade, mascarando conteúdo e prática docente primitivos, deficitários e enganadores.
A associação imediata que um leitor crítico dessa nova linguagem, proposta pelo computador, faz é com a televisão, cheia de recursos de imagem, cor e movimento, tratando do óbvio com obviedade, persuadindo pela redundância, estimulando o olhar catatônico com uma enxurrada de signos visuais primários.
Quando o ensino supervaloriza a tecnologia (por mais rápida e universal que possa ser) em detrimento do saber, podemos estar seguros de que o conhecimento foi se alocar num canto escuro da biblioteca, em livros ainda fechados, fáceis de abrir e movimentar porque não precisam de cliques e teclas.
(crônica publicada em “O Estado do Paraná” em 10 de março de 2006)