Desfile

Marta Morais da Costa

de mansinho cheguei ao camarim
no silêncio da madrugada
em cima vesti  cetim
por baixo rala alpaca
olhos de quiçá e cautela
pensar de só dúvidas
 
às pressas saí pra rua
pernas à toa
voz em sussurro
fora de prumo
leque de plumas
olhar quase azul
 
cantei
dancei
cansei
 
hora de retrair
mãos vazias
rosto sem brilhos
traje em tiras
na passarela
jaz a fantasia

 

esquecida
no asfalto.
 
cá dentro a nudez
reveste o  jamais

Albert Camus, cartas e laços.

Albert Camus (1913-1960) foi romancista, ensaísta, dramaturgo, filósofo e jornalista. Construiu sua obra baseado em um humanismo em que a consciência do absurdo da condição humana produz a revolta como uma resposta a esse absurdo. Entre seus textos há uma linha de pensamento filosófico desse absurdo presente na obra O mito de Sísifo (1942) , bem como nos romances O estrangeiro (1942) e A peste (1947) e peças de teatro como Calígula (1945). Em 1957 recebeu o Prêmio Nobel de Literatura. Foi uma das mais importantes  consciências morais  do século XX. Faleceu em um acidente de automóvel em 1960.

Ao receber o Prêmio Nobel escreveu uma comovente carta de agradecimento a seu professor da escola primária, M. Germain Louis. A carta de Camus é conhecida. Menos acessível é a resposta de seu professor, de que não encontrei tradução em português e cometi a ousadia de traduzi-la do francês. A seguir as duas cartas.

19 de novembro de 1957

Caro Monsieur Germain,

Deixei que passasse um pouco o movimento que me envolveu todos esses dias antes de vir-lhe falar-lhe de coração aberto. Acaba de me ser feita uma grande honra que não busquei, nem solicitei. Mas quando eu soube da novidade, meu primeiro pensamento, depois de minha mãe, foi para você. Sem você, sem essa mão afetuosa que você estendeu ao menino pobre que eu era, sem seu ensino, sem seu exemplo, nada disso teria acontecido. Eu não faço questão dessa espécie de honra. Mas essa é ao menos uma ocasião para dizer-lhe o que você foi e é sempre para mim, e para assegurar-lhe que os seus esforços, o seu trabalho e o coração generoso que você coloca em tudo que faz, sempre de maneira viva com relação a um de seus pequenos discípulos que, não obstante a idade, não cessou jamais de ser seu aluno reconhecido. Eu o abraço com todas as minhas forças.

Albert Camus

Carta publicada em “O primeiro homem”, de Albert Camus. [tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luiza Newlands Silverira]. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.

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30 de abril de 1959

Meu querido menino,

Recebi, enviado por ti, o livro Camus, que o senhor J.Cl.Brisville houve por bem dedicar a mim.

Não sei expressar a alegria que me propiciou teu gesto gentil nem a maneira de te agradecer. Se fosse possível, eu abraçaria fortemente o rapaz que te tornaste e que seguirá sendo para mim sempre “meu pequeno Camus”.

Entretanto ainda não li a obra; apenas as primeiras páginas. Quem é Camus? Tenho a impressão de que aqueles que tentam decifrar tua personalidade não chegam a fazê-lo de verdade. Tu mostraste sempre um pudor instintivo em mostrar tua natureza, teus sentimentos. Tu consegues fazê-lo melhor quando tu és simples, direto. Bom demais! Estas impressões, tu me deste em sala de aula. O pedagogo que quer exercer com consciência sua profissão não negligencia nenhuma ocasião para conhecer seus alunos, suas crianças, e ele não cessa de o fazer. Uma resposta, um gesto, uma atitude são amplamente reveladores. Eu acredito, por isso, conhecer bem o rapaz gentil que tu eras, e o menino, frequentemente, contém em embrião o homem em que se tornará. Teu prazer de estar na aula revelava-se de todos os modos. Teu rosto expressava otimismo. E ao te analisar, eu jamais desconfiei da verdadeira situação de tua família, e não tive senão uma rápida percepção no momento em que tua mãe veio me ver a respeito de tua inscrição na lista dos candidatos a uma bolsa de estudos. Além do mais, isso ocorreu na ocasião  em que tu irias me deixar. Mas até aquele momento tu me parecias estar na mesma situação de teus colegas. Tinhas sempre tudo o que precisava ter. Como teu irmão, tu estavas adequadamente vestido. Acredito que eu não possa fazer um mais belo elogio a tua mamãe do que este.

Eu vi a lista crescente das obras que te são consagradas ou que falam de ti. E é uma satisfação muito grande para eu constatar que tua celebridade (é a exata verdade) não fez tua cabeça. Tu continuaste a ser Camus: bravo. Acompanhei com interesse as múltiplas peripécias da peça teatral que adaptaste e também montaste: Os possuídos. Gosto tanto de você que não me impediria de te desejar o maior sucesso: aquele que tu mereces.

Malraux quer, também, te oferecer um teatro. Sei que o teatro é tua paixão. Mas…conseguirás tu levar a bom termo e avante todas essas atividades? Temo que tu abuses de tuas forças. E, permita a teu velho amigo de observar, tu tens uma esposa gentil e duas crianças que necessitam seu marido e pai. A este respeito, vou te contar o que nos dizia às vezes nosso diretor da Escola Normal. Ele era muito duro conosco, o que nos impedia de ver, de sentir, que ele nos amava realmente. “A natureza tem um grande livro em que ela escreve minuciosamente todos os excessos que vocês cometerem.” Confesso que este sábio conselho me conteve muitas vezes no momento em que eu parecia esquecê-lo. Por isso digo, tente manter em branco a página que te foi reservada no Grande Livro da natureza.

Andréia me lembra que nós te vimos e ouvimos num programa literário da televisão, referente à peça Os possuídos. Era emocionante te ver respondendo às perguntas. E, apesar de mim, eu fazia a observação maliciosa de que tu não duvidavas que, finalmente, eu acabaria te vendo e ouvindo. Isto compensou um pouco tua ausência da Argélia. Não te vemos há tanto tempo…

Antes de terminar, quero te dizer o quanto me fazem sofrer como professor leigo, os projetos ameaçadores urdidos contra nossa escola. Acredito, ter respeitado ao longo de toda a minha carreira o que há de mais sagrado na criança: o direito de procurar a sua verdade. Eu vos amei a todos e creio haver feito todo o possível para não manifestar minhas ideias e não pesar assim sobre vossa jovem inteligência. Quando o assunto era Deus (está no programa), eu dizia que alguns acreditavam nele, outros não. E que na plenitude de seus direitos, cada um fazia o que queria [fazer]. O mesmo para o capítulo das religiões, eu me limitava a indicar aquelas que existem, às quais pertenciam aqueles a quem ela agradava.

Para ser sincero, eu acrescentava que havia pessoas que não praticavam nenhuma religião. Sei bem que isso não agrada àqueles que gostariam de fazer dos professores uns caixeiros viajantes da religião e, para ser mais preciso, da religião católica. Na Escola primária da Argélia (instalada então no parque de Galland), meu pai, como seus companheiros, era obrigado a ir à missa e comungar todos os domingos. Um dia, revoltado com esta obrigação, ele pôs a hóstia “consagrada” dentro de um livro de missa e o fechou! O Diretor da escola foi informado desse fato e não hesitou em expulsar meu pai da escola. Eis o que querem os partidários da “Escola livre” (livre…para pensar como eles). Com a composição da atual Câmara de Deputados, temo que o golpe tenha sucesso. O “Canard Enchainé” assinalou que, em um departamento, uma centena de turmas da Escola leiga funciona sob um crucifixo afixado na parede. Vejo nisso um abominável atentado contra a consciência das crianças. O que virá a acontecer daqui a algum tempo? Esses pensamentos me entristecem profundamente.

Saiba que, mesmo quando não escrevo, penso frequentemente em vocês todos.

A senhora Germain e eu abraçamos fortemente a vocês quatro.

Afetuosamente teu

Germain Louis

Post Scriptum: Deixo a cada leitor a interpretação da carta do professor Germain Louis, mas não posso deixar de manifestar minha admiração pelo exemplo de ser humano e de profissional educador. Há na relação entre o professor e o aluno por ele educado uma corrente ética indelével, transfusiva, de continuidades. Assim como nossos filhos, nossos alunos serão sempre “nossos pequenos”, não porque permaneceram infantis, mas porque deixaram em nós o sopro da infância e da juventude que manteve nosso espírito vivo e interessado na vida e na profissão.

Marta Morais da Costa

LEITURA

Marta Morais da Costa

Hoje, 7 de janeiro, Dia do Leitor

Foto por Pixabay em Pexels.com

Folhear livros é ter certeza da ignorância.

Ler vorazmente é a certeza do tempo rarefeito.

Na biblioteca infinita a consciência do tempo.

Na solidão da página a evidência do outro.

Um livro é o começo de outro eu,

desenhado na capa dos encontros,

inatingível na última página,

lançado à incógnita do próximo volume.  

Na leitura, a eterna incompletude.

O sorriso

Marta Morais da Costa

Se pudesse, passaria o dia todo sorrindo. Não porque fosse uma otimista, mas porque seus dentes eram perfeitos, brancos como a neve ao cair.  Os músculos faciais, ao se retesarem para formatar aquela expressão de completo acordo com a vida, faziam sobressair as maçãs do rosto, em puro veludo rosa. A pele esbanjava brilhos e os olhos executavam uma ciranda caprichosa e franca. A cabeça parecia ganhar altura e o corpo repousava em uma postura ao mesmo tempo sem tensões, mas atenta, como que à espera do correspondente sorriso alheio, receptivo, admirador, concordante.

Sorrir era sua arma de conquista, sua alma exibicionista. Era um cartão de visita e a  mensagem de ocupação do espaço-tempo do contato, da conversa, do centro da roda.

Sorria segura, ocultando atrás das retinas um cérebro de observadora, de cientista, de dissecadora de cobaias. Armadilhava o sorriso e capturava detalhes e reações que, de imediato, selecionava e arquivava na memória. A surpresa de quem a considerava apenas mais um exemplar de fêmea. A admiração de quem inscrevia em sua pessoa o sinete de mulher perfeita. A explosão emocional em quem o rosto em movimento elevava o enlevo ao grau mais absoluto de amor à primeira vista – melhor, ao primeiro sorriso. A contida inveja de possíveis rivais estraçalhadas entre o reconhecimento da força de sua presença contente e a autopiedade pela revelação dos próprios defeitos. Mais que todos, sobressaía o olhar hipnotizado do esteta no momento em que descobria a sua frente uma Vênus renascida ou Galatéia retirada da pedra informe.

Sorria e amealhava reações. Sorria e alimentava-se com a adjetivação superlativa que coalhava o chão imaginário em seu redor. Sorria e vampirizava a existência alheia, sobrevivente.

Veio o tempo em que o sorriso fixou-se. Não aceitava que ele desaparecesse do espelho em que, estática, se contemplava. Recusava posar para fotos em que só ou acompanhada não pudesse irradiar o sorriso complacente com a posteridade. Sentava-se à mesa, desdenhando ações mortais de comer e beber: passava as refeições entre líquidos sorvidos entre lábios distendidos e garfadas-relâmpago a justificar um mastigar risonho. Adormecia somente após certificar-se que o rosto ainda encenava a alegria de permanecer sorridente na cabeça pousada sobre o travesseiro.

Para todos, era a Miss Simpatia perfeita nos primeiros encontros. Aos poucos a fixidez inalterada do sorriso emitia sinais de complacente e pegajosa aceitação de tudo. Em pouco tempo, o sorriso assemelhava-se a uma máscara a desdenhar da realidade e a qualificação de indiferença e desprezo pela dor alheia colava-se ao ricto facial. Ela envelhecia em uma ilha de solitude.

O sorriso que atraía era o mesmo que afastava. Seu senso de observação passou a exigir mais aproximação, mais empatia. Passou a exercitar os músculos para compor expressões de afeto, de compreensão, de consideração para as histórias de outros. O sorriso, antes fixo, começou a apresentar fissuras e desalinhos. Na desarmonia do rosto não mais imperava a atração. Abria-se o confronto com a repulsa.

Sorria automaticamente para os pedidos de ajuda, para as queixas de amor, para as notícias de luto, para as urgências da fome, para as descrenças e desesperanças. Quem se aproximava dela era recebido pela mecânica irrefreável de um sorriso petrificado. Por dentro, ela se contorcia em impossíveis mudanças da face: queria gritar sua compaixão, despejar suas lágrimas, estender-se em ouvidos solidários.

Em vão. A solidão alargou-se em profundo isolamento.

Musicais

Foto por Pixabay em Pexels.com

Marta Morais da Costa

Musicais

I

Dor maior,

recipiente de lágrimas e

mil flechas,

fabricantes de ocas

soluções  ilusórias,

labirínticas falácias,

simulacros de cura.

                           

Dor maior que

sustém o coração

em síncopes

e silêncios.

 

II

Doce amor primeiro,

respirou ares de  primavera

mirando paixões estivais,

fatalizou os ventos gélidos  e

solidificou-se no outono,

latência aguda neste ocaso,

sinuosa e persistente chama.

 

Dos embates da paixão

restaram  ternas asperezas

misturadas a imagens solares,

fascínio de paisagens insólitas

solstícios de inquietudes

lastreados em tormentas,

sismos que todo amor contempla.