Pra não dizer que não falei de cruzes

Marta Morais da Costa

Já li os jornais. Já chorei por dentro todas as desilusões e temores. Já adubei a esperança, já troquei a água dos vasos de projetos de vida melhor. Já desaguei em textos de delicadeza e amorosidade. Fiz valer meus bons propósitos de mulher e cidadã. Já prestei ao meu dia nascente os deveres e ações a que me propus ao acordar em leito quente e de noite bem dormida.

Agora, manhã já alta, me arrogo o direito de gritar minha indignação, minha dor mais profunda, meu desejo de açoitar responsáveis pela terra arrasada que virou o país que eu amava e que defendia. Foram décadas de dedicação a uma cultura que acreditava valer o tempo de estudo e de divulgação, a uma terra que podia abrigar pessoas bravas e destemidas em defesa de um futuro melhor para todos.

Hoje me dedico a lamentar. Lamentar um país que, em 521 anos de história, atualmente só é capaz de repetir defeitos e crimes e de retornar ao atraso, à negação. Lamentar que, em razão da deseducação, da desinformação, do abandono institucional, o Brasil conseguiu produzir 500 000 mortos, e em contagem crescente.

Pior ainda: segundo a médica infectologista Ana Luiza Bierrenbach, autora de um estudo para a Vital Strategies, a marca trágica chega a mais de 700 000  vítimas de uma peste que combina a agressividade de um vírus com a agressividade assassina dos negacionistas.

Espero ter saúde para saber daqui a alguns anos toda a extensão dessa tragédia brasileira. A combinação vírus+ignorância+assalto aos cofres públicos+fome+desemprego+destruição das instituições criará outro Brasil. Segundo prognósticos sem bola de cristal e sem curandeirismo, sairemos da pandemia destroçados, doentes, pobres e desesperançados.

Tentei me filiar ao cordão pollyânnico para acreditar que pensamento positivo, escrita tematicamente amorosa e disseminação da esperança trariam conforto para uns, otimismo para outros e a crença no futuro para todos.

Com o passar dos dias, descubro que nada compensa os mortos queridos, os mortos desconhecidos, os mortos não sabidos. Morremos um pouco com cada um deles. Sinto que aos poucos estou morrendo por dentro, expatriada em meu país, soterrada em meus propósitos, descrente de saídas próximas e acuada pelo vírus e pela história.

Ao longo de um pouco mais de quinze meses, foi ganhando em mim a percepção atávica e ancestral de outras pestes, de outras ditaduras e falsas democracias, de períodos de fome e desumanidade, de grosseria e agressividade que afligiram pessoas melhores que eu. A peste de Tebas se fez presente em Édipo Rei. Boccaccio gravou em Decamerão a peste medieval. Camus metaforizou a mortandade de alma e corpo em A peste.  Picasso legou à posteridade todo o horror de Guernica. Antônio Callado fez de Reflexos do baile e Quarup o testamento da ditadura militar no Brasil.

Deste último, sempre me foi impactante a descoberta feita pelo protagonista de que o centro, o coração do Brasil, era um imenso e indestrutível formigueiro. Callado hoje vivo talvez substituísse a imagem por um esgoto a céu aberto em que os ratos se entredevoram, pela fome, pela ambição ou pelo poder.

A pátria armada, a madrasta hostil e o sangrento pavilhão sem esperança são as distorções de hinos cantados com a mão no fuzil e os pés na lama.

Os gladiadores saudavam o César de plantão, antes de morrer em benefício do espetáculo “panis et circem”. Talvez aqueles que, asfixiados, jazem nas UTIs brasileiras endereçassem de outro modo sua mensagem ao mandatário mortífero da vez e seus gestos não tivessem nenhuma compostura heroica.

Em Curitiba, no dia posterior ao trágico registro de 500 000 brasileiros mortos asfixiados.

O CAMAFEU

Marta Morais da Costa

Foto por Tom Swinnen em Pexels.com

O banco de jardim estava convidativo e eu cansada por demais. Os anos deixaram as pernas fracas e o fôlego curto. Sentada, fiquei a observar os passantes. Todos pareciam saber aonde queriam chegar, todos pareciam ter pressa e precaução, todos não me viam ali a observar sua passagem. Até que…

Saltou-me na memória a conversa que eu havia tido com uma quase adolescente, na festa de aniversário de meu neto. Eu também estava sentada, à frente de uma mesa de docinhos, balões e sanduíches. Ela foi chegando devagar, os olhos fixos no camafeu que enfeitava uma correntinha de prata no meu pescoço.

– Posso lhe perguntar uma coisa? – disse ela, com olhos inquietos.

– Você não quer antes dizer seu nome? – perguntei.

– Eu sou Luísa. Queria saber onde você conseguiu esse…como se diz?

– Camafeu – respondi. Comprei em uma viagem no ano passado.

– Ah! Eu quase tive um desses…

– Como assim: quase tive ?

– Bem… é uma história comprida.

A menina sentou-se na cadeira em frente.

– Eu morava ao lado da casa de dona Sofia. Sempre que dava um tempo, eu corria para a casa dela e ficava conversando. Levava uma flor, um doce, uma fruta ou um pouco de chá. Ela era muito sozinha, sabe? O Teco falava que ela era meio maluca. Mas hoje eu sei que não era. Era apenas solitária. Os filhos e netos moravam longe. O marido tinha morrido. Ninguém ia na casa dela. Mas ela contava histórias muito bonitas do tempo em que era menina, lá longe, na Europa. Às vezes chorava e eu ficava triste também.

Luísa falava com rapidez e dava para perceber pelos olhos dela que as imagens e as histórias estavam lá dentro ainda vivas.

– Estou deixando você chateada, tia?

– Nada, nem um pouquinho, Luísa. Pode continuar…

– Um dia, dona Sofia me levou até o quarto dela e abriu uma caixinha cheia de anéis, correntes, brincos, braceletes. Um mais lindo que o outro. E foi contando: este, ganhei de meu marido, aquele foi presente de minha avó; o azul comprei na Espanha. Cada joia tinha uma história. Ela contava e eu ouvia com gosto. Então ela me mostrou um camafeu, igual ao da senhora. Assim com essa figurinha de mulher, branca, delicada, parece que olhando para mim, cercada de pedrinhas brilhantes. Dona Sofia percebeu que eu gostei do camafeu. Então ela colocou ele em minhas mãos e disse: cuide dele alguns dias para mim. Voltei para casa, feliz. Minha mãe disse que eu ficasse alguns dias com ele e depois deveria devolver. No dia em que devolvi, Dona Sofia me disse sorrindo: quando eu for embora desta vida, vou deixar esta joia para você. Vou avisar meus filhos e eles darão o camafeu para você.

– Por que você não está usando esse presente? – perguntei, curiosa.

– Bem …quando dona Sofia morreu, os filhos vieram e levaram tudo o que era dela e nem lembraram de meu camafeu.

Luísa abaixou a cabeça e escondeu as lágrimas. Pensei na dor dessa menina, lembrei minha infância tão sem recompensas, considerei que poderia quem sabe comprar outro para mim.

Retirei a corrente do pescoço, abri as mãos da menina e nelas depositei a nacarada figurinha cercada de pequenas luzes brilhantes.

– É seu – disse. Faz de conta que dona Sofia me pediu para dar a você.

Luísa sorriu, segurou o camafeu como um tesouro e depositou em meu rosto um beijo agradecido como jamais recebi na vida.

Hoje, juro que vi passar, junto ao banco em que estou sentada, uma jovem de lindos olhos brilhantes e um camafeu pendurado no pescoço. Talvez fosse Luísa.

Urbanismo

Marta Morais da Costa

Da janela do apartamento, ela era visível na esquina do outro lado da rua. Nem os moradores mais antigos sabiam quem a havia plantado, ou quando. Talvez fosse uma remanescente de antigo bosque, arrasado para que casas e prédios surgissem no local.

Foto por Felix Mittermeier em Pexels.com

Ela significava o melhor antídoto contra a rotina, a pressão do trabalho, a consciência da morte. Eu e ela nos olhávamos, companheiras, ao longo do dia. Uma festa de diferentes sensações. Ver a dança suave dos galhos ao movimento da brisa ou frenética no tempo da tempestade. Admirar o brilho do sol em milhares de pontos de luz em suas folhas. Sentir a sombra protetora em dias de canícula. Acompanhar as cores cambiantes seguindo o  movimento do sol e das estações, tal um Monet vivo, urbano e intermitente na afirmação de sua maturidade.

Ela dominava majestosa a esquina de ruas que talvez nem existissem em sua mocidade. Mas casas e edifícios trouxeram pessoas. Pessoas trouxeram seus automóveis e a esquina trouxe um cruzamento de muitos acidentes. Este foi seu decreto de morte.

Como nas histórias, um dia – nada belo – chegaram os caminhões com seus operários e motosserras. Caíram primeiro os galhos mais altos, mais jovens. Em sua indesejada nudez, o tronco não dançava, nem brilhava, imóvel em cores e espanto. Esquartejá-lo foi questão de horas.

No lugar onde outrora existira uma imponente chau-chau, restou a ruína de uma saliência na calçada.

Na esquina, agora sem obstáculos visuais, os acidentes de trânsito continuam a acontecer.