George Orwell: Por que escrevo.

George Orwell. Porque escrevo e outros ensaios.  Tradução Cláudio Marcondes. Companhia das Letras, Penguin, 2021     126p.

“Por que escrevo”: Orwell dá como justificativa da escrita o “puro egoísmo”, o “entusiasmo estético”, o “impulso histórico” e o “propósito político”.

“Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos, e bem no fundo de seus motivos há sempre um mistério. Escrever um livro é uma luta terrível e exaustiva, como o longo acesso de uma enfermidade dolorosa. Ninguém empreenderia nada do tipo se não fosse impelido por algum demônio, ao qual não se pode resistir nem tampouco compreender. Até onde se sabe, esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que leva um bebê a berrar por atenção. E, no entanto, também é verdade que não se pode escrever nada legível a não ser que se lute constantemente para apagar a nossa própria personalidade. A boa prosa é como a vidraça numa janela. Não posso afirmar ao certo quais dos meus motivos são os mais fortes, mas sei qual deles merece ser seguido.” (p.19)

Retrato de uma professora 1

Foto por S Migaj em Pexels.com

Ontem o Dia dos Professores não poderia terminar melhor, nem de forma mais surpreendente e enternecedora. Há muitos dias venho lendo em conta-gotas – com o desejo mais intenso de que a leitura nunca consiga terminar o livro – a obra de Irene Vallejo, O infinito em um junco.

O poder da escrita, a beleza do tratamento do conteúdo, a paixão, que cada página revela, me fazem uma leitora morosa e amorosa.

Ontem, dia 15 de outubro, o sono não chegou antes que eu fosse premiada com duas páginas de exaltação a uma professora. Não resisti e nem quero resistir em compartilhar com vocês a lindeza do que então li.

Confesso que tenho três raros professores como Pilar Iranzo em minha memória, mas eles são pilares do que eu me tornei.

Segue o texto com meu profundo agradecimento a Irene Vallejo por esta homenagem ao trabalho de uma professora excepcional.

TECEDORAS DE HISTÓRIAS

“(…) para mim, o grego começou com voz de mulher – a voz da minha professora no colégio. Lembro-me de que, no começo, suas aulas não me impressionaram tanto. Como demoramos a reconhecer quem vai mudar nossa vida! Na época, eu era uma adolescente decidida a cobrar muito caro pela minha admiração. Esperava encontrar professores carismáticos, seguros de si, desses que- como eu tinha visto em alguns filmes – entram na sala de aula com ar rebelde, encostam a bunda na beira da mesa e começam a falar, engenhosos, brilhantes, divertidos. Externamente, Pilar Iranzo não se encaixava nessa fantasia. Altíssima e magra, ela andava curvando ligeiramente os ombros como se estivesse pedindo desculpas por ser mais alta do que todos nós. Usava uma bata branca convencional. Quando falava, suas mãos longas de pianista agitavam o ar com nervosismo. Às vezes se engasgava explicando uma lição, como se de repente as palavras fugissem em disparada da sua cabeça. Ouvia tudo com muita atenção, fazia mais perguntas do que afirmações e parecia se sentir especialmente confortável com o amparo de um sinal de interrogação.

Em pouco tempo a surpreendente Pilar rompeu as barreiras do meu ceticismo. Daqueles dois anos estudando com ela, guardei o prazer da descoberta, a viagem, a surpreendente alegria do aprendizado. Éramos um grupo tão pequeno de alunos que acabamos nos sentando todos em volta de uma mesa e formando rodinhas como se fôssemos conspiradores. Aprendíamos por contágio, por iluminação. Pilar não se entrincheirava atrás de declinações, de datas e números frios, de teorias abstratas, de aparatos conceituais. Era transparente, sem truques, sem alarde, sem pose, ela nos transmitiu sua paixão pela Grécia. Sempre nos emprestava seus livros favoritos, contava os filmes da sua juventude, as viagens que fez, os mitos em que se reconhecia. Quando falava de Antígona, ela própria era Antígona; e quando falava de Medeia, a história nos parecia mais aterrorizante do que nunca. Ao traduzi-las, sentíamos que as obras clássicas tinham sido escritas para nós. E esquecemos o medo de não entendê-las. Deixaram de ser fardos pesados, imposições. Graças a Pilar, alguns de nós anexamos um país estrangeiro ao nosso mundo interno.

Anos depois, quando eu mesma tive que enfrentar a vertigem de uma sala de aula, entendi que é preciso gostar dos alunos para expor diante deles o que você ama: para se arriscar a mostrar a um grupo de adolescentes os seus entusiasmos verdadeiros, os seus pensamentos próprios, os versos que tocam a sua emoção, sabendo que poderão debochar ou responder com cara de paisagem e uma ostensiva indiferença.

Enquanto estava na faculdade, eu costumava visitar Pilar durante suas horas de plantão, no seminário de grego. Quando se aposentou, continuamos nos encontrando num bar próximo à casa dela. Eu tinha necessidade de agradecer-lhe por sua forma tão imprudente de ensinar, confiando em todos nós. Acreditando que merecíamos saber. Partilhando conosco sua maneira íntima e misteriosa de ouvir as vozes do passado.

Conversávamos durante horas nesses encontros, viajando no tempo, em nossos assuntos, do presente à Antiguidade grega, que era o nosso elo. Mas sempre esbarrávamos num paradoxo: saber que seria terrível viver na época que tanto nos fascinava, quando as mulheres permaneciam afastadas do poder, não tinham liberdade e nunca deixavam de ser menores de idade. Pilar, que dedicara tantos anos a transmitir a herança luminosa da Grécia, sabia que naquela época ela estaria condenada a ficar na sombra. Sentia falta das escritoras perdidas e seus poemas nascidos no silêncio.”

In: Irene Vallejo. O infinito em um junco: a invenção dos livros no mundo antigo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Wacht. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2022. p.176-178.

Marta Morais da Costa

Irene Vallejo

Você acha que o mal é um aliado da literatura?

Acredito que a literatura visa explorar o nosso interior, tanto os espaços luminosos quanto o subsolo escuro. Não creio que haja uma aliança entre o mal e a escrita, mas entre a criação e o humano em todas as suas facetas. Cada artista inventa o seu próprio percurso e mapeia os territórios que mais o fascinam. A bondade, como o mal, tem complexidades interessantes. Nosso Quixote, por exemplo, mergulha nas contradições de um personagem que aspira a ser justo e ajudar pessoas carentes, mas que comete grandes erros ao tentar colocar suas ideias em prática. O Idiota, de Dostoievski, é seu herdeiro. Uma literatura que só se interessasse pelo mal seria tão pobre quanto a literatura exemplar.

E aqui derivamos outro debate contemporâneo: a corrente que defende eliminar dos clássicos as palavras e ideias que dos nossos parâmetros atuais achamos inadequadas, especialmente os livros infantis e juvenis. Na minha opinião, é preciso aspirar a que os jovens entrem em contato com criações complexas, não com manuais de conduta. Personagens malignos são um ingrediente crucial nos contos tradicionais, para que as crianças aprendam que o mal existe. Mais cedo ou mais tarde eles terão notícias dela (dos valentões que os assediam no pátio da escola aos tiranos genocidas). O maravilhoso e perturbador Flannery O’Connor escreveu que aquele que “lê apenas livros edificantes está seguindo um caminho seguro, mas um caminho sem esperança, porque lhe falta coragem. Se por acaso você lesse um bom romance, saberia muito bem que algo está acontecendo com ele”. Sentir algum desconforto faz parte da experiência de ler um livro; há muito mais pedagogia na inquietação do que no alívio. Podemos colocar toda a ela vai parar de nos explicar o mundo. literatura do passado sob a faca para cirurgia plástica, mas então  ela vai parar de nos explicar o mundo. “

Parte da entrevista de Irene Vallejo publicada em :

https://cultura.estadao.com.br/noticias/literatura,best-seller-mundial-narra-a-espetacular-historia-do-livro,70004120020

A espanhola Irene Vallejo é autora de “O infinito em um junco” sobre a história do livro.

Que diriam os fariseus sobre Monteiro Lobato?

Fragmento de O longo adeus, de Raymond Chandler (1953)

Personagem rico Harlam Potter dialogando com o detetive  Philip Marlowe (p.252-253)

 “- Não sou uma figura pública e nem tenho a intenção de ser. Sempre tive muito trabalho evitando qualquer tipo de publicidade. Tenho influência, mas não abuso. (…) Nós vivemos no que se chama de democracia, regida pela maioria do povo. Uma ideia ótima se chegasse a funcionar. O povo elege, mas são as máquinas partidárias que nomeiam, e as máquinas partidárias, para serem eficientes, precisam de muito dinheiro. Alguém precisa dar esse dinheiro a eles e este alguém , seja um indivíduo, um grupo financeiro, um sindicato ou o que você quiser, espera alguma coisa em troca. O que eu e gente como eu esperamos é simplesmente viver nossa vida numa decente privacidade. Os gritos constantes em favor da liberdade de imprensa, com algumas honrosas exceções, significam liberdade para lidar com escândalos, crimes, sexo, sensacionalismo, ódio, alusões indiretas ou os usos políticos e financeiros da propaganda. Um jornal é um negócio feito para faturar através  das vendas de publicidade. Esta é uma pré-condição à sua circulação e você sabe do que a circulação depende.”

(…)

“Há uma coisa especial em relação a dinheiro – continuou. – Em grandes quantidades, tende a ter vida própria, até mesmo uma consciência própria. Fica muito difícil se controlar o poder do dinheiro. O homem sempre foi um animal venal. O crescimento das populações, os enormes custos das guerras, a incessante pressão confiscatória dos impostos – tudo isso faz o homem cada vez mais venal. O homem comum está cansado e assustado, e um homem cansado e assustado não pode ter ideais. Precisa comprar comida pra sua família. Na nossa época presenciamos um declínio chocante tanto na moral pública quanto na moral privada. Não se pode esperar qualidade de pessoas cujas vidas são uma sujeição à falta de qualidade. Não se pode ter qualidade com produção em massa. Não se deseja isso porque demoraria muito a chegar. Portanto, para substituir isso há o estilo, que é um logro comercial com a intenção de produzir coisas obsoletas e artificiais. A produção de massa não poderia vender seus produtos no ano que vem a não ser que faça o que vendeu este ano ficar fora de moda. Temos as cozinhas mais brancas e os banheiros mais brilhantes do mundo. Mas na adorável cozinha branca a dona-de-casa americana média não consegue cozinhar uma refeição boa de comer, e o adorável banheiro brilhante é sobretudo um receptáculo para desodorantes, laxativos, soníferos e produtos desta quadrilha de vigaristas que se chama indústria de cosméticos. Nós fazemos as embalagens mais bonitas do mundo, sr. Marlowe. O que está lá dentro é, na maior parte, lixo.”

Bartolomeu Campos Queirós

Palavras que continuam vivas.

“Gostaria de viver numa sociedade em que não fôssemos dirigidos pelos caprichos de alguns, mas num movimento estabelecido pela soma de todos nós. Num mundo pleno de dúvidas, uma vez que para mim a dúvida nos torna mais cuidadosos, mais cautelosos, mais delicados com as relações. Quem supõe ter encontrado a verdade passa a um estado de fanatismo. E isso no exercício do poder é muito perigoso. Meu sofrimento advém de estar e viver numa sociedade tão injusta, em que as diferenças não concorrem para o enriquecimento, mas a diferença é apenas uma maneira de dividir os homens em classes. Sofro por viver em uma comunidade analfabeta, como eu, marcada pela impossibilidade de ler o seu entorno, uma sociedade em que o sofrimento nos impossibilita de participar da poesia existente. Uma vez que as necessidades básicas são mais prementes.”     

(Bartolomeu Campos Queirós. Literatura: leitura de mundo, criação de palavra, 2002).

Riso e pandemia

“A risada é uma manifestação de divertimento, e o divertimento é um estado de espírito socialmente fecundo voltado ao mundo exterior. O riso começa como uma condição coletiva, como quando as crianças riem juntas por causa de alguma bobagem. Na idade adulta, a diversão continua sendo uma das maneiras com que os seres humanos desfrutam da companhia uns dos outros, conciliam as diferenças e aceitam a sorte comum. Rir ajuda a superar o isolamento e nos fortalece perante o desespero.”

(Citação retirada de obra de Roger Scruton)

Amigos:

em tempo de notícias tristes, saber que o riso é uma condição coletiva que nos fortalece e ajuda a ultrapassar dores e temores só nos faz desejar estar logo, logo reunidos em volta de uma mesa, com café quentinho, pinhão na brasa, conversas sem fim e o riso correndo de boca em boca, dizendo de nosso estado de afetuoso reencontro.

em 26 de maio de 2020, 7 graus lá fora, saudades aqui dentro.

Recomeçando

Era uma vez um desejo de não perder o tempo presente.

Era outra vez um desejo de saber lidar com recursos materiais de escrita.

Era sempre uma vontade de não desistir.

Desta vez recomeço em outro blog outra tentativa.

Cansada do anterior? Que nada!

Ele me traiu e saiu com outros pelo espaço digital.

Deixou-me sem lugar-site, deixou-me sem nem dar adeus.

Sumiu como somem seres e coisas em esconderijos e frinchas.

Aprendi a substituir. Sem esquecer as caras e fieis companhias de textos anteriores bissextos.

Inicio novamente. Clamo pela ajuda de Hermes, o deus de pés alados.

Desta vez quem sabe eu não (me ) perca nas esferas.

PS: esta linguagem empolada aí de cima é pra dizer aos amigos que retorno a esta ferramenta de comunicação, com outro design e título.

Mas continuo deleiturando.

Poty Lazarotto em Sagarana, de Guimarães Rosa (prêmio na Bienal Internacional de São Paulo de 1969). Feliz simbiose entre texto e ilustração.