Estacionou o Ka na garagem do prédio. Do porta-malas retirou três sacolas plásticas. Ajeitou a máscara e com cuidado pressionou o botão de chamada do elevador. Imediatamente deu um banho de álcool em gel nas mãos. Dentro do elevador, mais um banho. Abriu a porta do apartamento, deixou os sapatos na entrada ao lado das sacolas. Correu lavar as mãos com sabão, ainda de máscara. Preparou uma solução higienizadora, armou-se de bacia, panos e vaporizadores e voltou à entrada da casa. Banho cuidadoso em pacotes e sacolas e mãos. Também os sapatos.
Só então retirou a máscara, acondicionou-a em um saco plástico e levou à lixeira, do lado de fora da porta de serviço.
Cumprido o ritual, abriu a janela e respirou pausadamente para recobrar a segurança e a tranquilidade. Nove meses haviam se passado. Quatro apavoradas saídas ao longo desse tempo todo. Uma consulta médica, uma bateria de exames de laboratório, uma extração dentária e um passeio em automóvel fechado para relaxar de violenta crise de ansiedade que lhe custou uma insônia de quatro noites.
E agora a quinta saída: uma visita dispendiosa à farmácia. Ela foi precedida de dias de preparação da lista de remédios e chás e unguentos. Havia adotado um procedimento de registro de sintomas quase diário, intitulado: A botica da pandemia. Para isso, observava-se detidamente ao longo do dia e anotava tudo o que sua saúde apontasse como anômalo. Eram diferentes tipos de queixumes. Anotado o acontecimento, buscava lembrar pessoas que pudessem, à distância, sugerir ou indicar medicamentos e recursos para melhorar as dores e incômodos.
Quando amanhecia com dor de cabeça no lado direito, tia Constância era uma boa fonte de soluções: compressas de chá de melissa com folhas de louro. Se a dor era do lado esquerdo, melhor consultar primo Luís e lá vinha a receitinha: chá reforçado de alecrim, gotas de cachaça da boa e um comprimido de AAS. Na falta deste, um suco reforçado de couve com limão.
Para os dias em que a dor era muscular, a consulta invariavelmente era com prima Dorinha. Escalda pés com gotas de vinagre de maçã e uma boa fricção de abacate, devidamente embebido e maturado por 40 dias em álcool 45º. E mais um repouso de 15 minutos de manhã e à tarde, depois de comer uma maçã fuji. Talvez uma pomada de castanha da Índia também possa ajudar. Mas a maçã tem efeito mais imediato. E é uma delícia! Dorinha é uma mulher prática.
Para o estômago virado do avesso uma tisana de camomila, melissa e ruibarbo. Na falta deste, umas gotinhas de extrato de calêndula: era tiro-e-queda segundo vó Leonor. Caso a melhora não fosse imediata, ela recomendava uma taça de vinho do porto, aquecido e temperado com canela.
Se o intestino estava condenado à prisão perpétua, aí o tratamento era mais rigoroso. Dieta imediata: água e mais água durante um dia inteiro, exclusivamente. No segundo dia, caldo de legumes frescos exclusivamente. No terceiro, dieta pastosa de batata doce, mandioquinha e aipim amarelo. Se o a entrega do supermercado chegasse a tempo e com os ingredientes certos… Na falta de aipim amarelo, um bom suco de laranja, medicava a irmã, sofredora contumaz da falta de liberdade do criminoso intestino.
A insônia é combatida com relaxamento, insistia prima Celeste. Algumas posições de ioga (pegue lá no Google, tem um monte, dizia). Um copo de leite com chocolate belga atende seu desejo libidinoso gastronômico e aquieta sua angústia com a balança. Afinal, remédios sempre têm efeitos colaterais, o peso é um deles. Dormir emagrece; daí o corpo se equilibra… Com essa filosofia médica, Celeste é a prima que mais recebe pedidos de ajuda na família.
A medição em casa deu aumento da taxa de glicose? Não se apoquente, aconselhava tio Dudu, compreensivo. Elimine frutas e carboidratos. Alface e verduras em geral, em especial as verde- escuras. Com três dias dessa dieta, você perderá peso, ganhará uma pele mais ecológica, e, batata, o índice de glicose despencará! Depois, estará liberada: até maionese e leite condensado são recomendados!
A pandemia trouxe o estresse mental e a falta de atividade física jogou seu condicionamento no lixo? Ou você sai do conforto e faz exercícios em casa, com vassoura, um tapetinho, uma corda de varal e recipientes com água pra servir de pesos, ou vai pro sofá assistir jogos de futebol pelo mundo, concursos hípicos e hóquei no gelo. Neste segundo caso, programe uma visita ao geriatra logo, logo. Seco e direto, o primo Benjamim sugeriu.
Para o estresse mental, leia livros de autoajuda, sucinta recomendou prima Dita.
A piora geral levou nossa heroína à quinta saída: a consulta ao clínico geral, a visita à farmácia e às sacolas plásticas, mais recheadas do que as de supermercado.
Agora estava preparada para mais nove meses: que venham os sintomas!
Recomendação do narrador: as receitas aqui divulgadas são de responsabilidade dos familiares consultados. Eu apenas servi como escriba.
Ao longo desta longa reclusão desta infortunada e cada vez mais longa pandemia, escolhi dividir meu tempo diário com um grande número de lives, esta invasora dos lares e dos silêncios. Se alguma aversão eu tivesse à tecnologia, eu a teria perdido gostosamente neste período. Ser analfabeta digital não significa que sonho com tempos do uso da pena de ganso e do pergaminho. Como nos amores não correspondidos, quanto mais dificuldades encontro, mais o desejo aumenta.
Seria muito mais devoradora de vida a pandemia sem a vida (live) com que a tecnologia me presenteou. Seria menos ativa intelectualmente esta trecentena sem o convívio com pensares e falares tão diversificados. Seria mais triste este tempo de horror (e não só causado pela pandemia) sem o riso provocado por palavras jocosas e por erros imprevistos que rechearam esse tempo de espetáculos. Seria mais tedioso o contínuo descarte das folhas do calendário – enquanto a vacina não chega – não fosse a companhia de pessoas, em sua maioria desconhecidas, que desfilaram em imagens quadradinhas ou em diálogos chat(ianos).
Congressos, feiras, cursos, palestras, entrevistas, encontros à distância, nada deixei de lado quando os assuntos estavam no meu horizonte de interesse ou na minha simpatia pelos assuntos. Do entusiasmo e voracidade iniciais cheguei ao sublime estágio da seleção rigorosa e do impiedoso descarte do que se repetia, do que se superficializava, do que demonstrava a arrogância e presunção de falantes e escreventes.
Porque estou em fase de prova de vida em ano de mortes e rebobino os filmes – caraca, como esta expressão envelheceu! – do que vi e vivi, registro uma breve síntese. Já que falei em filmes, recordo também aquele aviso providencial que eximia de responsabilidade judicial a equipe técnica e artística: “Qualquer semelhança com fatos e pessoas reais é mera coincidência.” Coincidência sim, mas também consciência de que essas pessoas existem de fato.
Mediador-a: Por favor, ligue seu microfone. Aí na parte de baixo da tela…não achou? o ícone que tem um microfone…esse é o do vídeo!…a imagem sumiu…está me ouvindo? tente o outro, o do microfone…Aíííí, agora deu. Parabéns!
Entrevistado-a: Pois é na minha infância, quando eu era criança, não tinha livros em casa…Li meu primeiro livro completo na universidade. Mas lá na escola a gente lia historinhas com fadinhas, bichinhos, fantasminhas, casinhas…
Mediador-a: Professora, como a senhora explica os resultados da pesquisa “Retratos da leitura no Brasil” que dão conta da diminuição do número de leitores no Brasil? Mas antes que a senhora responda que saudar as pessoas que estão nos assistindo…oi, Clara! Há quanto tempo!! que bom que você está aqui. Nossa, também o Carlos Alberto, presidente da companhia de Velas Iaraçu! Agradeço por estar aqui. Professora, sua amiga Joana lhe manda um beijo e saudades. Também estão conosco pessoas de Luís Navegador (SC), Arraial dos Aflitos (GO), Boa Esperança dos Vulneráveis (PR), Cratera (PI), Sol de Inverno (AC) e muitos outros lugares deste Brasilzão. Professora, o que a senhora poderia dizer sobre a leitura de bebês?
Entrevistado: Então, quando vim morar aqui na capital e entrei para a universidade…sei lá, meio assim sem muita leitura, entusiasmado com a possibilidade de aprender e aí fui conhecendo alguns mestres: o professor João que me emprestou muitos livros e dava umas aulas inesquecíveis; o excelente professor Vítor, que me apresentou Descartes, Darwin, Derrida e me indicou o livro de minha vida, o ….(inaudível), do grande Nietszche. Também li Sartre, Camus, Proust, Butler, Botton, Bacon, Arendt (neste momento a avalanche de nomes foi cortada por uma tosse agnóstica potente e o mediador passou a palavra para outra convidada).
Palestrante: Bom dia a todos. Bom dia a todas. Gostaria de agradecer blá-blá-blá e dizer que no momento desenvolvo os seguintes projetos blá-blá-blá (a enrolação se prolonga por mais uns vinte minutos ). Eu escrevi a minha fala e peço desculpas porque vou ler. Segundo os princípios da epistemologia genético-virótica, os sintomas de desleiturização estão relacionados….(o número de pessoas assistindo diminui a cada 30 segundos). Passando ao segundo item (já são 15 os participantes). Concluindo… (o-a palestrante e o-a mediador-a são os participantes restantes).
Mediador-a: Vou fazer uma pergunta a todos os convidados e quem quiser começar é só falar: a literatura infantil serve para quê? E, se quiserem, podem já responder à segunda questão: como é escrever para crianças?
Não fiquei conectada para ouvir as respostas. Sei que, ao menos por boa educação e respeito, deveria dar aos participantes meu voto de confiança e acreditar que as respostas seriam de alto nível e proveito, já que as perguntas ficaram aquém do analfabetismo indagativo. Mas me esperava no canto esquerdo da mesa um volume da obra completa de João Cabral de Melo Neto. Preferi rever a “Educação pela pedra”, porque o avanço tecnológico ainda não conseguiu me explicar porque a educação tem tantas carências no Brasil.