Theatrum vitae

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O lugar de onde olhas
as loucuras dilacerantes
nada tem de idílico;
antes ressoa o vendaval
desgovernado,
antes concreta em ais
as paixões devorantes.

Escorres em música
as vozes coléricas;
coleias em danças
o erotismo ardente,
palavras ausentes,
corpos em chamas.

Trazes ao contemplantes
a sarça em vão ardente
da liberdade agonizante.
Uivas aos abismos, ó teatro,
as dores indomáveis.

No jorro contínuo
das palavras sem eco,
revestes os rostos
com o inferno de dentro.

Nem louros, nem aplausos
recobrem teu solo trágico:
nele desaba o imperioso castigo.

A culpa corrói o protagonista
e desavém palco e público.

Inversos

Da abundância fluem carências;

os fios das teias se enovelam;

a gota espessa, que balança

na ponta da folha, deságua.

No cume da montanha

vige o desejo dos vales;

das correntes turbulentas,

o sonho do remanso voa.

Nas areias do deserto,

o verde viril pontifica;

de cada boca sedenta,

a fome mais irradia.

Em cada beijo volátil,

o sexo mais se atrofia;

assim a vida se vira,

em carências, opostos,

nervuras.

Sob dossel fantasmal,

a matéria em desatino

faz brotar dos lençóis

sangue, suor e gemidos.

Há no tempo que passa

pelas janelas do corpo

um corroer magistral,

embebido de alegrias,

latentes e desdobráveis,

a mostrar, entredentes,

a beleza inconstante,

que dentre as cinzas

renasce

Marta Morais da Costa

Crença

Marta Morais da Costa

Atrás de qualquer porta

a lua pode te seduzir.

No muro que te cerceia

a curruíra faz seu ninho.

Na paisagem deserta

a flor oculta as pedras.

Na árvore seca

a cigarra vem cantar.

Por trás da pálpebra

o olho busca a luz.

Assim o tempo que te corrói:

preserva em um átimo

nítidas lembranças

e a frágil esperança

da sobrevivência,

fortuita,

aleatória.

Livro

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Todo livro principia

no ponto de encontro

da ponta com o papel.

 

Lápis ou caneta,

pouco importa.

 

Qual broca na rocha

a ponta cria o ponto

de onde jorram águas

                ainda impuras,

represadas,

embebidas

de matéria orgânica

que fertiliza a escrita

na enchente das páginas.

 

Agricultor zeloso,

o escritor se entrega

ao solo copioso

a separar o joio

– que indiciará a realidade –

enquanto faz do trigo

o pão das utopias.

 

Marta Morais da Costa

AVESSOS

Marta Morais da Costa

 

nas contas opacas de um colar de dores

a cinza leve de um corpo ausente

 

no sorriso tímido de um rosto magro
a voragem imersa da fome atroz
 
a lua alfange mira o vácuo
a vida desatenta se esvai
 
no canto do quarto em silêncio
o menino sorve o veneno do sonho
 
a noite insensível ensombra
 
ela dá as costas e tranca a porta
desta vez sem volta.
Foto por Lucas Pezeta em Pexels.com

HENRY BOREL (E MAIS 2000)

Marta Morais da Costa

Ele não conheceu a altura em longas pernas

não subiu em árvores não transpôs os mares

não trocou os dentes nem usou lentes

amigos raros brincadeiras poucas

as letras para ele continuaram enigmas

não passou do berço à cama

do pijama à beca ou terno

diplomas e salários não recebeu

não visitou Paris nem Pequim

não sofreu amores

não viveu a paternidade.

++++

Silenciado, imóvel e seviciado,

deixou a infância e a vida

entregues à sanha pérfida

do adulto, brutal disciplinador,

deformidade humana

ungida pelo manto

do silêncio,

da violência

da vaidade

da prepotência.

Necrópole

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Marta Morais da Costa

Em vão o desamparo clama sua impotência.

Perdem-se na noite os ais sem remédio.

Nada retorna a não ser o escárnio

do Olimpo de fados sinistros.

Remorso não cabe, consolo não há.

A resposta de impassíveis deuses

pune, asfixia, consome, reduz a pó.

Apelo

Marta Morais da Costa

Não invoques os espíritos

contra a corrupção dos homens:

eles vivem na paz,

não virão para a guerra.

Não invoques a fúria paterna

para defender-te das injustiças:

aprende a lutar tuas próprias batalhas.

Não invoques o amor materno

para curar teus ferimentos do existir:

cura-os com a homeopatia do viver.

Não invoques o meu amor

para perdoar tuas ofensas:

aceita que ele está findo,

exaurido, estéril, ultrajado.

Nenhum apelo o fará renascer.

Foto por Karolina Grabowska em Pexels.com