“A risada é uma manifestação de divertimento, e o divertimento é um estado de espírito socialmente fecundo voltado ao mundo exterior. O riso começa como uma condição coletiva, como quando as crianças riem juntas por causa de alguma bobagem. Na idade adulta, a diversão continua sendo uma das maneiras com que os seres humanos desfrutam da companhia uns dos outros, conciliam as diferenças e aceitam a sorte comum. Rir ajuda a superar o isolamento e nos fortalece perante o desespero.”
(Citação retirada de obra de Roger Scruton)
Amigos:
em tempo de notícias tristes, saber que o riso é uma condição coletiva que nos fortalece e ajuda a ultrapassar dores e temores só nos faz desejar estar logo, logo reunidos em volta de uma mesa, com café quentinho, pinhão na brasa, conversas sem fim e o riso correndo de boca em boca, dizendo de nosso estado de afetuoso reencontro.
em 26 de maio de 2020, 7 graus lá fora, saudades aqui dentro.
Ela aparentava 35 anos, mas seus olhos baixos e nervosos a convertiam em uma anciã. O corpo moreno franzino, as costas eretas, a cabeça em contínuo movimento e as mãos a remexer papeis, revistas, folhetos de publicidade desfaziam a velhice em agitação quase infantil.
A sala de espera do consultório estava vazia, exceto pelo funcionário, atento à tela do computador e com o telefone colado à orelha. Falava e escrevia simultaneamente com domínio perfeito de corpo e máquinas.
Quando a mulher loira entra, com ela também entra o ar abafado do corredor. O ar refrigerado da sala de espera é uma ilha de bem-estar. A loira dirige-se imediatamente à mesa do atendente:
– Boa tarde! Meu nome é Helena Ricordati. Tenho consulta marcada com dr. Artur para as 15 horas.
– Boa tarde, senhora! fala o rapaz enquanto confere a agenda no computador. Por favor, queira sentar-se e aguardar.
– Sei que cheguei cedo demais, mas não quis perder a carona com meu marido que vinha nesta direção. Aguardarei. Sem problema.
Senta-se de frente para a outra mulher. Toma uma revista como um álibi. Folheia vagarosamente e entre uma página e outra lança um olhar curioso para a companheira de espera. Quem será? como vive? de que sofre? indaga-se interiormente.
Faz sempre assim: as outras pessoas são mistérios a serem desvendados.
Numa coincidência, os olhares se cruzam. Helena não perde a oportunidade:
– Está quente hoje, não?
– Hum, hum… e um movimento afirmativo de cabeça.
Mulher de poucas palavras, pode ser até antissocial. Helena a classifica de imediato.
– A senhora é cliente do dr. Artur há muito tempo?
– Não. Primeira vez.
– Ah, mas a senhora vai gostar muito dele. É competente, simpático, atencioso…
– Que bom! fala a morena como um ponto final da conversa.
Helena volta à revista: o que será que ela tem? gravidez? cólicas estomacais? endometriose? quem sabe câncer? A loira busca examinar furtivamente a outra. Descobre na palidez, a possível anemia. Nos olhos que teima em olhar para o chão vê a depressão. Nas mãos amareladas, a hepatite. Na respiração por vezes fora de ritmo, o temor de uma gravidez indesejada.
A loira cria diagnósticos desenfreadamente. Fosse realidade tudo o que atribui à outra, seria um catálogo de doenças à espera do veredito fatídico.
– A senhora mora aqui? Em que bairro?
– Sou de outro estado.
Ah, ah! Veio em busca de uma clínica de aborto. Ou de um tratamento mais barato. Helena volta a lançar hipóteses como um alarme dispara ao ser acionado.
– Eu gosto muito desta cidade. Nasci e cresci aqui. Conheço muita gente e muitos lugares. Só não conheço esses bairros novos. São tantos e nascem como plantas parasitas. Parece que toda semana tem um novo. Tem muita gente chegando para morar aqui.
-É, pois é.
Deixa ver: morena, magra, calada, de passagem, nervosa, em um consultório médico. Deve ser alguém que quer esconder uma doença. Já sei: é câncer mesmo! Ou quem sabe leucemia…Pode morrer em breve. Coitada! Este corpo frágil já anuncia…
A porta do consultório se abre, dr. Artur aparece, ainda sem jaleco e se dirige à mulher morena:
– Então, dona Bárbara, o dr. Argolo mandou o recibo dos honorários dele? Sim? Então entre, por favor, enquanto faço o cheque.
Helena, um tanto decepcionada, fecha a revista. Que pena: era mais interessante se fosse leucemia…
Busca outra revista, pois a porta do corredor deixa passar a figura alquebrada de uma idosa, magérrima, exalando aroma de flores de cemitério.
Desta vez não tem erro, pensa. Folheia a revista, pronta a reiniciar o processo de desvendamento do mistério e disposta a não perder desta vez as palavras e a caminhada rumo ao patíbulo da Maria Antonieta chegante.
Satisfeita por poder voltar a exercer seus dotes de interpretação conclui: ainda bem que só tenho uma gripezinha.
Um terço do corpo tatuado, os lóbulos esbanjando enormes botões pretos assemelhados a bodoques, fones devidamente posicionados nos ouvidos para curtir um heavy metal altissonante, skate nas mãos e boné de pala reta – colocado ao contrário, é claro – e a última gíria na boca: tudo isso me permitiria, anciã provecta, divar na tchurma do meu neto?
Segundo alguns equivocados (vá lá, talvez bem intencionados) lidadores culturais, atitude e ação semelhantes podem ser adotadas com textos machadianos com o objetivo meritório de conquistar leitores.
Depois da morte do autor, constatada e epitafiada por Foucault e Barthes, estaríamos vivendo os lúgubres tempos da morte da autoria e da autoridade escrevente. Nada de a linguagem expressar um tempo e uma cosmovisão históricos. O importante agora é travesti-la em garota-propaganda para seduzir o mercado de leitores. Diriam os anjos do Mal: bem feito para quem colocou o leitor como juiz absoluto! Tal como nas famílias condescendentes, o adolescente bate o pé e as chaves do carro deslizam para suas mãos. Então, adolescente e leitor viram rei.
Queremos conquistar leitores? Sim. Temos recursos para isto? Sim. Até mesmo trocar autoria e estilo dos maiores escritores da língua portuguesa para adequar obras à compreensão tida como rastaquera e rasteira dos adolescentes e dos jovens? Sim e não! Sim, para a finalidade de prolongar, aprofundar e manter a imbecilidade cultural reinante. Não, se entendermos que a leitura é também desafio e conquista, e não é acomodação.
A formação de leitores para a literatura pela escola tem produzido resultados esquizofrênicos. Alguns poucos alunos se dizem leitores por causa de seus professores. A maioria foge entediada da leitura obrigatória, dos livros considerados clássicos ou de qualquer texto que exija um razoável espaço de tempo e concentração, uma reflexão de profundidade mínima, um trabalho de compreensão mais apurado. Essa realidade é flagrada nos índices nacionais e internacionais a respeito da leitura de qualidade, é flagrada na absurda ausência de usuários de bibliotecas e frequentadores de livrarias. Talvez seja arcaísmo pensar bibliotecas e livrarias físicas. Pensemos, então, em celulares, tablets e e-readers. Basta averiguar o que fazem os aficionados de produtos de alta tecnologia que, alheios ao entorno, se dedicam a teclar e alisar telas o tempo todo. Quantos deles estão lendo algum livro digital?
Para consertar esse mundo quase sem literatura, pensam alguns que basta aplicar aos textos a mesma idiotia pedagógica da facilitação, uma metodologia de facilitação. Pois é preciso ler os clássicos – porque sempre são eles os bodes expiatórios de programas e professores que, para formar leitores, servem-se da papa fina da literatura, usando-a como angu. Então, para que a pretensa e, segundo eles, a intransponível dificuldade de leitura seja amenizada, não se furtam a resumir, adaptar, extrair palavras, sinonimizar pobremente os textos literários de qualidade. Há tempos a escola vem operando essa mutilação. Agora, a intenção, a metodologia e os recursos ganham notoriedade na imprensa com o aval do governo federal.
Relato uma experiência do início dos anos 90 do século passado. Em União da Vitória, cidade do interior do Paraná, uma professora, orientada por Sandra Konell, na época mestranda da Universidade Federal do Paraná, trabalhou com alunos de NOVE anos textos de Kafka (“A ponte”) e de Guimarães Rosa (“A menina de lá”) entre outros da literatura infantil e adulta. O resultado foi do choque e catatonia iniciais ao deslumbramento e aprendizagem finais. Onde esteve a varinha de condão desse sucesso? No trabalho professoral de mediação qualificada, na crença de que os alunos mesmo muito jovens não são estúpidos e incapazes, e, não menos importante, na certeza de que a literatura de qualidade (mesmo que não seja Machado de Assis, vítima contumaz de citações sem leitura) pode abrir horizontes de compreensão do mundo.
Uma perguntinha me atormenta: o cáustico, desvendador e elegante humor machadiano precisará ser transformado em deboche, em stand-up comedy, em cômico de séries televisivas para ser melhor compreendido?
Marta Morais da Costa
nas dobras, ainda mornas, dos lençóis,
imagino o corpo agora distante
o aconchego agora inexistente
a completude perdida.
estar juntos, lado a lado,
em falsa euforia a perder-se
nos prenúncios da morte
cada vez mais perto.
não poder viver a intensa
brevidade desses momentos
é vingança de deuses
irados e invejosos
a destruir em mim
as raras alegrias,
que submergem na rotina
vã, implacável, insossa.
O aconchego de raros instantes
torna-se parede de dias sem sol.
O tema é muito importante para as discussões a respeito de leitura e, em especial, de leitura da literatura. A indicação do vídeo selecionado levará o leitor para a entrevista feita pela professora Deisily de Quadros com a escritora, contadora de histórias e agitadora cultural Célia Cris Silva. O endereço é https://www.facebook.com/linguagensesociedadeunintergrad/videos/1107094956313703
Tive, enquanto professora da Universidade Federal do Paraná, a oportunidade de orientá-las em dissertação de Mestrado e tese de Doutorado e pude, nesse tempo, conviver com duas pesquisadoras entusiasmadas com a literatura para crianças. Deisily construiu seu doutoramento estudando a obra de Lygia Bojunga e Célia Cris concluiu seu Mestrado estudando os contos tradicionais, ditos de fadas.
A importância desses textos acadêmicos poderia restringir-se apenas aos assuntos tratados. Não para essas duas pesquisadoras: elas transformaram o aprendizado em carreiras sólidas dentro do magistério e dentro das atividades culturais destinadas à formação de leitores.
O vídeo com a entrevista mostra entre elas o que o tema da conversa preconiza: afetos originados e intensificados pela leitura e pela literatura. Há ao mesmo tempo uma franca corrente de familiaridade entre entrevistadora e entrevistada que confere um clima de conversa simples, à vontade e carregada de vivências pessoais. Circula no tempo da entrevista uma outra face: a transformação do prazer de ler em ações de intenso compartilhamento desse prazer. Seja na universidade – e em sua comunidade de professores e alunos, seja na sociedade em geral pela atuação com grupos de diferentes idades, recursos materiais e estágios de vida.
Para mim, tendo conhecido as duas pesquisadoras em fases de amadurecimento na área da literatura infantil, foi um enorme prazer de assistir a sua fala agora, senhoras do conhecimento, empolgadas com fazeres, à vontade com livros, leitores e literatura.
Por isso, recomendo fortemente este registro de um depoimento e de uma alegria por compartilhar a força da leitura da literatura.
Felisa Ortega chegou à cidade de Bilbao, subiu no alto do monte Artxanda e andou o caminho, que não havia esquecido, até a casa que havia sido a sua casa.
Tudo parecia pequeno, encolhido pelos anos; e lhe dava vergonha que os vizinhos escutassem os golpes de tambor que lhe sacudiam o peito.
Não encontrou seu triciclo, nem as poltronas de vime colorido, nem a mesa da cozinha onde sua mãe, que lia histórias para ela, havia cortado com uma tesourada o lobo que fazia Felisa chorar. Tampouco encontrou a sacada de onde havia visto os aviões alemães que iam bombardear Guernica.
Pouco depois, os vizinhos tiveram coragem de contar: não, aquela não era a sua casa. Sua casa tinha sido aniquilada. Aquela que ela estava vendo tinha sido construída sobre as ruínas.
Então, alguém apareceu, do fundo dos tempos. Alguém que disse:
– Eu sou a Elena.
As duas se gastaram de tanto se abraçar.
Muito haviam corrido, juntas, naqueles bosques e arvoredos da infância.
E Elena disse:
– Tenho uma coisa para você.
E trouxe uma travessa de porcelana branca, com desenhos azuis.
Felisa a reconheceu. Sua mãe oferecia, naquela travessa, os biscoitinhos de avelã que fazia para todos.
Elena a havia encontrado, intacta, entre os escombros, e tinha guardado durante cinquenta e oito anos.
Era sua vez de providenciar os alimentos para a família. Confinados há semanas, sabia que pai, mãe e irmã dependiam de sua ida ao supermercado. O revezamento com Cláudia lhe permitia reencontrar espaço e objetos familiares. Mas ia com o coração apertado.
Vai que por falta de cuidado levasse pra casa, com as compras, o tal vírus. Até que era bonitinho, ele, o danado: as antenas como um satélite viajando pelo espaço do sangue e dos órgãos, como vira na animação da tevê. Aliás, a tal epidemia criara nele uma vontade imensa de ser médico. Esses caras bacanas que falam umas palavras esquisitas, que se vestem de anjo (ou de fantasma), que usam uns aparelhos de robótica. Bem melhor que os heróis de quadrinhos. Só que menos poderosos, senão nos primeiros sopapos acabariam com a raça dos coronas.
Mas as recomendações de Cláudia e dos pais botaram um medinho em sua cabeça. Saiu protegido com máscara, luva e atenção redobrada. Sentia que estava ficando adulto: a responsabilidade era uma espécie de carta de maioridade. Aliás, depois que a epidemia passasse, poderia reivindicar algumas mudanças: poder chegar mais tarde em casa, passar as férias na casa dos amigos, aproveitar os feriados para ir com o Raul e os pais dele para a praia, ganhar um novo celular, um dinheirinho extra para um sorvete com a Aninha e algumas coisinhas mais. Ainda iria pensar bem na lista de reivindicações. Com direito a conversa adulta com o pai e a mãe.
O supermercado até que estava meio vazio quando chegou. As pessoas olhavam desconfiadas, desviavam de corredor quando o viam chegar. Acho que por ser adolescente, ele representava o inimigo cruel para aquelas pessoas grisalhas. Nunca havia se sentido assim tão atemorizador. O medo transforma comportamentos, não?
Lá nas prateleiras de frutas e legumes começou a perceber mudanças. Olhava para as batatas e elas pareciam uma montanha de vírus coroadinhos e empilhados. As alfaces tinham em suas folhas a imagem exata de dentes prontos para morder suas mãos. As bananas traziam desenhados os coronas em suas manchas escuras. Até os ovos pareciam vírus arrumados em suas casinhas e esperando transporte para a casa dos reclusos.
Na padaria não foi diferente. A balconista de máscara lembrava a enfermeira perguntando: E hoje, o que vai querer? Soro ou injeção? Pão de leite ou integral? Estenda o braço pra pegar o pacote (uma injeção na veia?). Mais alguma coisa? Pão de queijo ou antibiótico? Quantos francesinhos? Ou comprimidos?
Estava confundindo tudo: mexeu a cabeça de um lado para o outro, de cima para baixo, como se quisesse reorganizar os miolos. Um funcionário, que arrumava as mercadorias nas prateleiras, olhou para ele de forma estranha e rapidamente saiu daquele corredor.
O carrinho ia ficando cheio de mercadorias: azeite, vidros de conservas, café, a manteiga para o pai, o peixe para Cláudia, o chá para a mãe. Aos poucos, cada item da lista passava da prateleira para o carrinho. Nenhum deles, no entanto, era acomodado com facilidade: a mão estava insegura, a luva branca parecia um pequeno fantasma de braços e pernas abertos a querer tomar conta de seu coração aos pulos. Nas embalagens coloridas, ele via desenhos camuflados de vírus sorridentes, meio cínicos.
Agia com a pressa de quem estava sendo perseguido: era diferente de quando imaginava aventuras em selvas, na cidade abandonada, em perseguições no ar ou no mar. Agora era como se os inimigos, além de invisíveis, fossem infinitos e de uma maldade poderosa, sarcástica, tirânica.
Lembrou do pai dizendo que ler muito deixa alguém meio doido, com imaginação sem limites nem controle. Lembrou da mãe aconselhando a ter cuidado e não falar com pessoas estranhas e não tocar em lugares perigosos, além de respirar pouco e não tocar na máscara. Tão bom o tempo em que ela apenas aconselhava a levar um suéter porque podia esfriar!
– Acho que ando vendo e ouvindo muita coisa sobre esse vírus que ele, mesmo sem ter entrado no meu corpo, contaminou meu cérebro – pensou. Vou precisar desinfetar a cabeça, insistiu em pensar.
Pareceu-lhe que o caixa do supermercado se comportou como um vilão Coringa, seriamente demorando o dobro de tempo para terminar o registro da compras, cobrar o total e liberá-lo para o ar livre.
Quase em pânico, saiu porta afora. Respirou longamente, fechou e abriu os olhos muitas vezes, agarrado às sacolas como se fossem boias no meio do mar do medo.
Aos poucos, sentiu-se ele novamente. Melhor ainda, sentiu-se mais forte. Sentiu-se mais leve. Cumprira a tarefa. Era um menino responsável: também dele dependiam a Cláudia, o pai, a mãe.
Jurou que não trocaria mais seus livros e quadrinhos pelo noticiário da tevê.