Perséfone e o outono

Marta Morais da Costa

“A luz mudou:

a afinação do dó está mais escura.

E as canções da manhã parecem ensaiadas demais.

Essa é a luz do outono, não a luz da primavera.

A luz do outono: não serás poupada.

As canções mudaram; invadiu-as

o indizível.

Essa é a luz do outono, não a luz que declara

renasci.

Não a aurora da primavera: penei, sofri. fui libertada.

Este é o presente, uma alegoria do desperdício.

Tanta coisa mudou. E no entanto você tem sorte:

o ideal arde em você como uma febre.

Ou não como uma febre, como um segundo coração.”

Este é um fragmento da poesia “Outubro”, de Averno, livro de poemas de Louise Glück, publicado em 2006, na tradução de Heloísa Jahn.

A poeta norte-americana recebeu o reconhecimento pela qualidade de sua poesia, quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2020. Foi a segunda poeta a receber tal distinção, a primeira foi a polonesa Wislawa Symborska em 1996. Duas escritoras de alta voltagem literária, donas de estilos diferentes com a mesma alta qualidade técnica e conhecimento da alma humana.

Em Averno, os leitores ouvem a voz da jovem Perséfone, a mulher raptada e encerrada nas profundezas do reino de Hades, o senhor do mundo inferior, o deus dos mortos. É uma voz ancestral a expressar o sentimento vital de sobrevivência e de desejo de outra vida e de outros haveres existenciais. Perséfone, mito das estações do ano, está ligada à ideia de mudança e de afetividade: quando, depois da decisão ajuizada por Zeus, que lhe concedeu uma temporada na superfície da Terra e outra no submundo das trevas, Perséfone passava com sua mãe a primavera e a transição do verão para o outono. Era quando a natureza florescia e frutificava. Presa com Hades, a beleza e o sustento se escondiam, para renascer em outra primavera.

Esse mito da mulher dividida entre a possibilidade da criação e da fartura e a necessária permanência no escuro, no adormecimento e na espera, fazem de Perséfone a mulher ambivalente, em contínua romaria, vivendo a alternância de fazeres e deveres.

Na melancolia de um canto poético simples na estrutura das frases, na  escolha de palavras, na sequência fragmentada de estrofes curtas, na absoluta e total reivindicação de sobrevida, Louise Glück captura em mim atenção e liames (quase algemas) de sensibilidade incomuns.

A visão do outono que se aproxima no calendário e o estágio das estações da minha vida pessoal estabelecem posições que se entrelaçam nas encruzilhadas da leitura.

Mais do que a interminável viagem ascendente e descendente de Perséfone, impactam em mim as ressonâncias de um estado outonal.

Em decorrência, a pergunta incontrolada se manifesta: o quanto um leitor pode ser fisgado por um texto que chega na hora precisa quando a necessidade de compreensão é mais aguda?

Estar em sintonia psíquica com um texto – vindo de outras geografias e de outros tempos – casualmente conectado ao leitor, transborda o conhecimento e se derrama em vínculos indestrutíveis. Esta é uma das magias da leitura. 

O quanto impacta um verso como “a afinação do dó está mais escura” em um leitor primaveril ou em um leitor outonal – talvez já invernal? Em que grau de vivência é absorvida a expressão “a alegoria do desperdício”, quando o desperdício é a realidade. Ou quando ele é memória, lembrança, saudade?

Em que dimensão o termo desperdício atinge o leitor? Mais ou menos do que “waste”? Mais ou menos do que “esbanjamento”, “perda” ou “resto” , seus sentidos próximos?

Perséfone olha a luz, olha para cima, para a superfície que invariavelmente e duas vezes ao ano lhe inundarão as fases e os fazeres.

Para que luz, em qual direção e quando uma vida outonal poderá assim ter esperança? Os versos límpidos, despidos de grandiloquência e rebuscadas metáforas (permanecendo tão somente no terreno dos símiles), Louise Glück energiza a voz de seu Outro poético:

“o ideal arde em você como uma febre.

Ou não como uma febre, como um segundo coração.”

Pode ser. Uma febre, um segundo coração. Esse estado de anatomia similar – e isso a literatura faz belamente – justifica a concretude e a razão mais justificável da leitura.

Roland Barthes afirmou em O prazer do texto (1971):

“Às vezes, o prazer do Texto cumpre-se de forma mais profunda (e é nesse momento que se pode dizer realmente que há Texto): quando o texto “literário” (o livro) transmigra para nossa vida, quando uma outra escrita (a escrita do Outro) consegue escrever fragmentos de nossa própria cotidianeidade, enfim, quando se produz uma co-existência.”

Para brindar esse encontro de outonos e segundos corações é que escrevi este breve comentário.

Curitiba, a onze dias do começo de mais um outono.

Foto por Valiphotos em Pexels.com

No estilo Marley e eu…

Marta Morais da Costa

Gostava de dirigir e de sair por aí sem saber aonde ir e sem ter hora de chegar. Logo que a profissão lhe permitiu, entrou em uma concessionária e comprou um carro zero. Comprometeu por quatro anos o orçamento reduzido, mas pôde exibir um semblante pacífico e de meio sorriso, típico das pessoas contentes consigo e com o que veem ao redor.

É verdade que, rodando pela cidade, viu muitas cenas tristes de gente morando em calçadas, de casebres com placa em neon, oferecendo serviços como conserto de sapatos, pintura, tarô e flores artificiais.

Viu também o empilhamento de pessoas e casas com vinte, trinta andares e um jardim frontal de 5mx10m com calçadas ocupando o triplo de espaço. Viu transeuntes apressados, carregados, solidários, gritantes, cabisbaixos, atônitos, suplicantes e, acima de tudo, aguerridos sobreviventes das batalhas urbanas.

Viu quadras em ruínas, parques coloridos, pontes de vários tamanhos, árvores e tocos, bosques e areais, dejetos e placas de projetos, flores nas janelas e muros pichados.

Ouviu palavrões, buzinas, ameaças, assaltos, pedidos de dinheiro e oferta de balas. Admirou os artistas de esquina, os motoristas cuidadosos e os prestadores de serviços públicos em ação. Não parou em acidentes, foi parada em proximidade de incêndios e em manifestações em prol de bandeiras variadas.

Nada diferente do que qualquer motorista vê, ouve, contempla e vive quando se aventura nas ruas de uma cidade.

Mas tinha uma identidade peculiar: a cada quatro anos, entrava em uma concessionária, deixava ali o automóvel em uso e saía com a nota fiscal de um novo carro. Zero, é lógico.

Não o fazia por exibicionismo, superstição ou pelo mau estado do velho companheiro. Apenas cumpria o conselho que havia recebido do pai: troque de carro a cada quatro anos – ou menos- já que você não entende e nem quer aprender sobre mecânica; carro novo costuma não dar problema durante esse período.

Pontualmente fez isso durante toda a vida. E a cada nova aquisição batizava a máquina com um nome-síntese do que considerava ser a identidade do veículo, muita além e mais significativa do que a placa obrigatória.

Passou pelo Grama, verde, baixinho, macio; pelo Estácio, que um dia transportou uma caixa de vinis de samba, que ganhou de uma prima que foi morar em Salvador; pela Madame de Sévigné, uma perua amarela, que lembrava as cores dos Correios; pela Madá, também conhecida por Madalena, com quem viveu de modo que “nem tão pouco se admite/que do nosso amor duvide”; o Sabiá, um potente fusca que cantava os pneus e os pinos que era uma beleza, tanto nos lás como nos cás; um corcel preto, Batman, que subia a serra em voos noturnos e amanhecia apaziguado na caverna do subsolo do prédio.  

Mas o maior conflito, a dúvida entre espada e caldeirinha, a escolha de Sofia está sendo neste momento. Cumprem-se quatro anos de vida amigável com uma onda civilizada, a Frozen, prateada e com termostato desregulado, que se mantém invariável na temperatura ártica de 16 graus. Mais-dia-menos-dia, entrará na concessionária para trocar, talvez, pela derradeira máquina de sua vida útil de motorista amadora.

Tem que ser um carro coroação, um ser significativo de uma trajetória de medos e surpresas, de paisagens e rostos, de multas e prestações, de desapego e dependência, de conversas a vidros fechados e brigas entre pedais. Não sabe como será essa máquina: dependerá do contato elétrico, faísca de descoberta: é esse! Tem cara de the end!

Venha na cor que vier, no tamanho que tiver, na potência pequena ou maiúscula do motor, bebendo álcool ou descarregando bateria, será seu amor derradeiro. O nome, este, já escolheu.

Consulta o saldo bancário, veste seu melhor traje “vou comprar um carro zero”, entra na Frozen e se dirige à concessionária.

Vai se encontrar, certamente, pela vez primeira com o Adieu, mes enfants!

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Um dia mercurial

Marta Morais da Costa

Foto por Pavel Danilyuk em Pexels.com

Meu horóscopo vem avisando há dias que devo me precaver com a invasão do planeta Mercúrio na trajetória de meu signo, o que me obrigará a rever conceitos e a abrir mão  – e cabeça – em relação a meus valores morais e costais e a minhas posições pessoais em relação a crenças e falas.

Um aviso pra lá de sério; um alerta de respeito. Afinal, depois de tantas décadas pensando e discutindo e esquecendo e retomando e assumindo, chegar ao dia de hoje com a disposição de ainda mudar é projeto para mais de uma vida.

Nessa toada de precaução e cuidado fui ler os jornais do dia. Vício adquirido há décadas, do tempo do jornal impresso que saudade me dá. Não precisei de longas horas, nem de choques de realidade ou resistência a horrores. Encontrei em O Estado de São Paulo, fartamente acusado de ser um jornal de direita, uma pequena reportagem de Síbélia Zanon: “A mente aceita só aquilo em que acredita, dizem cientistas”.

 

Essas coisas da mente cada vez mais entram em meu cardápio diário de preocupações. É evidente que tem a ver com o desgaste dos anos e com o receio de perda das faculdades mentais. Nunca se sabe que qualidade de futuro terei. É bom, ao  menos, ter um pouco de informação pra não dizer, mais tarde, no auge da frustração “eu não sabia”.

 

Li a reportagem com zelo e sofreguidão. Lá está escrito que cientistas – logo pessoas de densa seriedade, em suas pesquisas descobriram, na Universidade de Stanford (USA) em testes “com estudantes universitários que tinham opiniões opostas sobre a pena de morte. Com base em dois artigos falsos – um que argumentava a favor e outro contra a pena de morte –, os estudantes apoiaram justamente aquele artigo que confirmava sua crença original”. Os cientistas concluíram “que ter as certezas contestadas serviu apenas como reforço para as próprias convicções.” E denominaram “viés de confirmação” essa característica mental.

Muito bem. Cientistas brasileiros da área da informação atestam que, mais do que confirmação, existe, por força das redes digitais e da circulação dos mesmos valores e crenças, o nascimento de uma “identidade prèt-à-porter”. Para quem não viveu essa moda e nem fala francês, a expressão significa algo como uma identidade que vem pronta para vestir, isto é, cujos padrões são pré-estabelecidos em grupos e bolhas de sócios das mesmas ideias e valores.

 

Foi o que bastou para que meu descanso de sábado se transformasse em desassossego de final de semana.

 

O que pretendemos na formação de leitores de literatura se não é a convivência com a diversidade, o descobrir que pensamentos antagônicos existem, que as pessoas são diferentes por natureza em seu físico e pela cultura em sua mentalidade?

 

Nesse desassossego caíram sobre mim todos os ssss de minhas pobres prédicas em favor da diversidade. Segundo a neurocientista Cláudia Feitosa-Santana,  “as conversas não ajudam a reduzir a polarização porque as pessoas acham que o diálogo está a serviço de desconstruir o argumento do outro.” Voaram pelas janelas e portas a importância que atribuí às rodas de conversa na formação de leitores.

Mais do que isso, a “eterna vigilância” das bolhas e do controle googlístico sobre o que nos interessa, restringe nosso pensamento àquilo que nos satisfaz e espelha.

Estamos, por consequência, fadados a conversarmos e vivermos segundo critérios e escolhas repetitivas? Poderemos, enfim, respondendo a alguns sites que nos perguntam se somos robôs, responder afirmativamente: sim, sou o robô FywXzV 5290941086!!

É verdade que não pretendo atravessar o planeta Terra só na planície, com algum planalto isolado e intrometido, rumo a um horizonte mais reto do que as linhas de meu monitor. Nem desobedecer a meu médico e fugir do posto de saúde com medo de virar jacaré ou ser ferido por uma agulha contendo um DNA invasor.

Mas reconheço que nem sempre conhecer a bolha opositora, quebrar barreiras e polarização é um estratagema recomendável para enfrentar o brandir de paus, pedras e balas ou para resolver, num ato de extrema arrogância, ignorância e covardia, abolir o tempo do rei de um relógio que nem digital era. Talvez porque, em sua ignorância e oclusão mental,  desconhecesse algarismos romanos e ponteiros e pensasse que todo dourado é ouro de tolo.

Enfim, sabendo de identidades prêt-à-porter, de vieses de confirmação, bolhas e reforços da própria opinião, cabe observar, analisar e, se for preciso, reformular metodologias para que o viver a beleza e diversidade da literatura, não seja uma atitude empática como a que descreve a reportagem, e que usar a palavra empatia não signifique cobrar empatia do outro, sem que nós mesmos sejamos empáticos.

Enfim, descobri que meu horóscopo estava certo: Mercúrio  bagunçou meu dia e minha mente.

 

Fonte; https://www.estadao.com.br/alias/a-mente-aceita-so-aquilo-em-que-acredita-dizem-cientistas/

 

Translação

Foto por Cole Keister em Pexels.com

Era o que se costuma dizer uma mulher simples. Não porque fosse desvestida de qualquer complexidade. Não porque fosse desprovida de herança e pecúlio. Não porque se vestisse ou comportasse com alguém que desconhece moda ou etiqueta social.

Ela era simples porque via o mundo e as pessoas de forma binária e de acordo com padrões tradicionais. Eram indivíduos do Bem ou do Mal, ateus ou religiosos, com família ou desajustados, criminosos de má catadura ou angélicos cidadãos confiáveis.

Era uma mulher simples.

 Não tomava partido em nenhuma disputa vá lá saber a história de vida do sujeito, eu também no lugar dela faria isso, não podemos julgar pois todos erram. Do perdão à omissão o caminho é curto.

Recusava-se a falar de política, sexo ou arte. Preferia conduzir a conversa para a criação dos filhos eu sempre ensinei os meus a respeitar os outros, em minha casa pornografia nunca entrou, fumar? nunca! beber? jamais! Os filhos perfeitos casaram-se com mulheres perfeitas, tiveram filhos perfeitos e um casamento durável.

Gostava mesmo era de conversar sobre culinária e trabalhos manuais. Ah, se gostava. Receitas sempre na ponta da língua e no núcleo da memória. Crochê, bordado, costura, papier maché, macramê, ikebana, nada representava dificuldade: uma vez que aprendi, jamais esqueço, só aperfeiçoo.

Não dirigia automóvel Deus me livre, tenho medo!, somente lia horóscopo, acreditava em OVNIs, desconfiava de artistas sempre estão mudando de sexo e de parceiros, benza Deus, que gente mais volúvel! O adjetivo não era bem esse: foi substituído porque este é um texto com finalidades morais…

 Participava de grupos de voluntárias para atender pessoas, animais, ajudar em catástrofes e visitar asilos e hospitais. Até fazia doações para instituições de caridade, próximas e longínquas. Era uma pessoa com qualidades humanísticas. E era uma mulher simples.

 Até seu aniversário de 60 anos. Bolo com velas, visitas de parentes e amigos, telefonemas, mensagens de whatsapp, facebook lotado de parabéns, abraços, corações e aplausos.

O marido a saudou de manhã com café na cama. Almoçaram em restaurante caro nossa, tudo isso? Até deram uma volta de carro por alguns bairros próximos e ela se assombrou com as mudanças. A noite, foram ao cinema do bairro ver aquela comédia familiar em que tudo dá certo no final. Um dia primoroso.

Na manhã seguinte, foi despertada pela voz de uma alma nada generosa a reprovar fatos e condutas de sua vida. Uma alma que deve ter fugido do purgatório e que a espicaçou com perguntas de difícil resposta por que você sempre toma partido de seu chefe? de seu marido? de seus filhos? Mesmo contra aquilo que você pensa? E foi o dia inteiro…cadê a viagem que você queria fazer? a comida que gostaria de comer de verdade? a roupa da moda que gostaria de vestir? o batom? o esmalte nas unhas? a vontade de ficar sem fazer nada? o curso de dança? e de inglês? a visita a Portugal? o banho de lama? rir com os amigos noite adentro?

O marido notou o olhar interrogador, as ausências, o trabalho não feito, as mãos sob o regaço, a postura fora de prumo. Está tudo bem? Está tudo bem? ei, mulher! Ensimesmada e muda, sentada e abstraída, imóvel e surda.

À noite, sem dormir, resolveu escrever a lista do que não fez em décadas. Assustou-se.

No dia seguinte, fez a lista do que queria fazer com o restante de sua vida. Assustou-se.

No dia seguinte do dia seguinte, assumiu a nova idade, outro olhar sobre a realidade e pôs-se a dizer não e pôs-se a fazer o sim.

Descobriu-se complexa.

 

 

Marta Morais da Costa

Quando o ano principia

(…)

Eu sei e você sabe
Que a distância não existe
Que todo grande amor
Só é bem grande se for triste

(…)

Assim como o oceano
Só é belo com luar
Assim como a canção
Só tem razão se se cantar

Assim como uma nuvem
Só acontece se chover
Assim como o poeta
Só é grande se sofrer

Assim como viver
Sem ter amor não é viver
Não há você sem mim
E eu não existo sem você

 (“Eu não existo sem você, música e letra de Tom Jobim)

Não sei o porquê, mas sei que ela veio. Não sei se eu assim o queria, mas sei que ela veio. Não sei se será útil, mas sei que veio.

A canção de Tom Jobim surgiu como sonoplastia do desejo de escrever a respeito da chegada de mais um ano em nossas vidas.

Quando pesquiso biografias, na infinita curiosidade de saber da vida dos outros e de trazer o que viveram como lição para minha existência, encontro invariavelmente ao lado do nome a informação sobre o ano de nascimento e o da metamorfose para algum estágio que não sei como é. Embora acredite que exista.

É porque são datas extremas e limites do conhecimento racional. Antes de nascer, uma promessa. Depois, ao final, um desejo, em especial de quem fica. Mas as datas anuais ali estão e ali permanecerão. É verdade que os calendários mudam, adaptados a culturas e a decretos do poder. É verdade que nossos mais que antepassados, vivendo em tempos de pouco registro e raros depoimentos, ficam por vezes em limites largos como IV a.C. e século XIV ou a datas cambiantes, como Gutenberg, Dante Alighieri e Shakespeare.

Seja como for, nem sempre se dão importância aos dias, mas os anos, ah, esses, reinam absolutos. Não é raro ao lembrar o passado, que seja ouvida a frase-quase-desculpa não lembro o dia – ou o mês – exato, mas sei que foi em 1954 (ou 1985, ou 2016).

Os anos são imensas unidades de bilionésimos de segundos que escorrem mais velozes do que as corredeiras do rio Iguaçu ou do Sena.

E pesam nos corpos humanos, fazendo com que a lei da gravidade se altere ao longo dos anos. É verdade: mais grávidos e mais graves ficamos à medida que acumulamos primeiros de janeiros. Além disso, morre-se mais jovem em 31 de dezembro do que no dia seguinte, assim o provam as biografias.

Por isso, votos de Feliz Ano Novo têm suma importância nas biografias. Não se trata apenas de etiqueta, afetividade ou carinho. A data tem a ver com saudar a possibilidade de transpor em vida um tempo de dias difíceis & venturosos, de vitórias sobre si mesmo & de derrotas para os fatos da vida. Além de ter podido ultrapassar os longos e tediosos dias de bruma e solidão amarga. (Lembro aqui que existe uma doce solidão que transcende tempos e perpassa os refolhos da alma.)

Aprendi a considerar o primeiro do ano um evento extraordinário porque revela alta carga emocional & exercício de memória & balanço de perdas e ganhos. E, acima de tudo, pela ocasião datada, prevista e necessária das faxinas mentais, espirituais, afetivas & materiais.

É Janus, o deus romano que olha para trás e para frente; e nessa bifrontalidade instaura uma terceira margem. A que compara & une & amalgama o que foi & o que será.

Vá chegando, Janeiro, coloque mais um ano em minha biografia, mais pontes em meu presente. Pontes a unir que marcou o passado & todos os desejos de melhoria para o futuro. Chegue, assente-se no pátio da memória e vá construindo novos fatos, destruindo preconceitos, dando vida e forma a expectativas, boas e más. Acima de tudo, Janeiro, confirme nesta cronista o conceito de que nem todo amor tem que ser triste e, menos ainda, que nem todo poeta tem que sofrer para ser bom poeta.

Confirme, Janeiro, que mesmo o sofrimento mais atroz pode ser filtrado pelo prazer da escrita e que a alegria é companheira inseparável (silenciosa e clandestina), à espreita em todos os momentos ruins que, por sermos humanos, vivemos.

Repita, Janeiro, que o passado ensina a quem é bom aluno; que o futuro em suas utopias sustenta o presente, colorindo, arejando, criando espaços para alguém ser alegre & ser triste.

Venha, Janeiro, mais uma vez, acrescentar vida aos caminhos da vida, criar mais canções de afirmação, repletas de amor & poesia, amantes & poetas. Porque todos os caminhos me encaminham o viver.

Marta Morais da Costa

Bem que eu quis escrever sobre o Natal

Marta Morais da Costa

Pensei em escrever um texto, de um formato qualquer, sobre o Natal.

Talvez um conto, desses que narram histórias emocionantes sobre possíveis milagres de papais e mamães ou do Noel ou de Jesus Menino.

Natal é uma data épica. Ou lírica, se pensamos nos solitários e nos memoriosos de infâncias.

Na falta de imaginar um “como se”, pensei em um poema de muitas estrofes, em que coubessem pessoas queridas e presentes, árvores verdejantes e multicoloridos enfeites, um montão de comida – para ser jogada, talvez, no lixo, por excesso de calorias: ai, os famintos, nem migalhas herdarão. Ah, mas haveria contenção métrica, metáforas deslumbrantes e um par de estrofes de tirar o fôlego dos leitores.

O poema, contudo, travou no oitavo corte de um verso decassílabo: o repertório léxico não se deu o humano prazer de solidarizar-se com a poeta buscadora e perdida e abandonou-a no dátilo incompleto.

Quem sabe uma crônica? Esse gênero tão incompreendido e que parece um “mafuá de malungo” (grata, Bandeira, pela generosa permissão do meu roubo titular!). Nessa feira de ofertas desencontradas, enfiam-se estilos, narrativas tortas, pretensiosos escritos que semeiam a discórdia teórica e colhem os ventos das liberdades sem eira nem beira.

Assim, fiz chover uma narrativa em primeira pessoa, amorosamente bordada de memórias infantis de natais felizes e infelizes, com o objetivo de emocionar os leitores adultos de hoje, que juntariam às minhas as suas lembranças de natais para rir, chorar copiosamente ou sorrir amarelo em razão da lembrança de uma agressiva vergonha pessoal.

Já a vergonha alheia me lembrou de escrever uma antologia de piadas natalinas para serem contadas à mesa do banquete substitutivo da Missa do Galo. Anedotas provocadoras de explosões de farofas e pernis e perus renascidos depois da combustão. Seriam piadas castas em respeito à data festiva de um nascimento de renovação e confirmação de contratos religiosos.

Também deixei de lado: há uma face moralizadora em todo piadista de plantão.

Quem sabe uma página em formato de diário, em que pessoas reais vivem momentos imaginários, coloridos pela pátina de uma falsa escrita antiga dos tempos do eu-criança. Um diário permitiria narrativas, as homenagens aos vivos e às novas estrelas em outros céus, as correções da realidade trágica de natais coloridos pelo vermelho dos sofrimentos censurados e até mesmo as mentiras contadas às crianças, crentes em falsos doadores dos presentes desejados. Uma página de um diário de boas intenções, de pessoas dadivosas, de manjares de mel e ambrosia, de noites em comunhão, de desejos formais de futuro abundante em prêmios e paz.

Nem para diário natalino as teclas do computador se mostram buliçosas e operárias. Os dedos supreendentemente ficam pousados inertes sobre letras incapazes de se combinarem em uma frase com um mínimo de coerência.

Escrever – por que não? – um cartão de Natal ao menos, que expresse a ansiada metamorfose de tempos duros e cruéis em uma época de alegrias e desejos de que tudo dê certo (mesmo o que sabidamente dará errado). Um cartão colorido, corações à beça, vermelhos e verdes vinhetando as palavras-chave, emoticões e gifes salpicando a página, substituindo as palavras que, sempre indiferentes e obstaculizadoras, teimam em não sair. Um cartão sonoro, à moda e com auxílio da Célia Cris, com uma música sugerida pela Rita, que possa substituir em sua volúpia sonora a falta de inspiração para um texto natalino.

Nem cartão, nem cartinha: nada se faz substancial e merecedor de estar em letras e palavras.

A única certeza é que continuarei, insistente, a busca por uma escrita que me diga, que diga em eco a quem gosto de boa e demais, que bendiga tempos vindouros, que consiga fazer acreditar que esta escriba ainda pode nascer, verdadeira e consistente, em um momento qualquer, de dia ou de noite.

Talvez até em uma noite de Natal.

 

Foto por Aleksandr Slobodianyk em Pexels.com

Canto contínuo

Marta Morais da Costa

Por isso uma força me leva a cantar
Por isso essa força estranha

(Caetano Veloso)

Nos guardados da memória, as canções da adolescência ocupavam muitas gavetas.

Sons e letras, nomes e fatos formavam um capital inesgotável. A sem-censura adolescente nada sabia de timbre ou qualidade de voz. Soprano ou barítono eram apenas estrangeirismos e esquisitices de quem pavoneava conhecimentos musicais.

Gostava mesmo era do rádio ligado o dia inteiro, fazendo companhia. Em volume alto nos programas de calouros e muito íntimo, quase sussurrante, nas radionovelas. Alguém a lhe contar em segredo histórias de amor e ambição, que criavam a vilania. A posse como jogo já se chamuscando de infernos antecipados.

Mas era a música a paixão mais verdadeira. Cantava interiormente ao saudar o dia, a cozer as refeições, ao chuveiro. Dançavam os sons em bailes silenciosos.

Assim, dia a dia, formavam-se alianças sonoras e letras em conúbio nos cartórios da memória.

Ela chorava amores incompreendidos sem compreender o que era amar um homem. Somente sabia de sua indesejada solidão. Pai e mãe há muito morando no cemitério nos limites da cidade. Parentes nenhuns: se os tinha, eram desconhecidos, ausentes. O trabalho nômade de casa em casa não criava liames nem companhia.

Mas topou na esquina, em um domingo, com a realidade da fantasia. era músico, violonista, cantor nos bares da vida. O amor foi chama devoradora em um inferno de ciúmes.

Ele cantou, ela mergulhou nos sons e os dois se fizeram uma canção nova.

Juntos fizeram serenatas e duetos, desafinaram e concertaram. Árias em atrito, fados em lamúrias, modinhas em consonância, sambas em epifania. Mas chegou o desacordo do rock, chegaram as queixas do soul, as controvérsias do pop.

Hoje, cada um em seu ritmo díspar, segue a vida cantando em palcos incompatíveis.

O músico se foi, mas a música permanece.

Agora, na casa durante o dia acalantos ressoam, secundados por vozes infantis. O pão é pouco e vem acompanhado de choros de fome e do planger de cordas. Choros que ela compreende, harmoniza e acarinha.

Filhos da música e da euforia vêm partilhar as gavetas da memória: a cada um o seu ritmo, a cada um o seu canto, a cada um o sol e o escuro. E ela canta.

Antigamente

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Bateu fundo o desejo nostálgico de escrever sobre um tempo passado e que dificilmente retornará. Um pouco de biografia, um tanto de memória, muito de imaginação, alimentados por relatos orais de outros e pelas páginas lidas em fontes diversas.

Nada como recordar o passado sem nunca poder recuperá-lo de verdade: ilusões de sermos testemunhas fiéis de qualquer fato observado. Nós, sempre nós, coletivos, a cultivar uma pretensa individualidade impossível.

Vamos, no entanto, em busca desses utópicos tempos memoriais.

Antigamente os sinos badalavam para marcar o inexorável escorrer do dia e da noite. A marcar missas e enterros, festas e quaresmas, centros da vida social e recatada em aparência.

Havia o ranger das rodas das carroças, algumas explosões de motores de automóveis, a atingir velocidades surpreendentes de 80 km horários!

Compravam-se alimentos a granel nos poucos armazéns de famílias a atender famílias, à vista ou no fio de bigode das cadernetas a fiado. A economia doméstica rigorosa mal permitia a matinê aos domingos. Mas a roupa era sempre asseada, engomada e impecável. Mães e tias estilistas e prendadas mantinham na máquina de costura a pedal a família em sua elegância interiorana.

A família crescia a cada dois anos, como cresciam os seios das meninas e as preocupações de soslaio de pais vigilantes.

A infância ainda não se havia ido de todo e a adolescência não era termo nem impedimento ainda. Era como se a passagem fosse direta da infância para a juventude adulta. Com dois marcos irrefutáveis: o baile dos 15 anos para as chamadas meninas-moças e o serviço militar para os rapagões.  Pórticos para a vida adulta com suas disponibilidades e responsabilidades. Esse duo de –ades não se exercia com igual intensidade nos dois sexos exclusivos (hoje, na multiplicidade de gêneros, palavra consiferada mais adequada e politicamente correta). Rapazes criavam asas e esporas facilmente. As moças ficavam sob as rédeas familiares. Avós, tios e irmãos decretavam costumes em igualdade com os atarefados pais, às voltas com todos os demais filhos e com a subsistência diária.

Nada impedia as brincadeiras de sempre: bola de gude, futebol, figurinhas, bonecas, pingue-pongue, pular corda, subir em árvores de quintais espaçosos e usar rodas de todos os diâmetros. Sem distinção de sexo. Uma infância de brincar com tudo e sem limites de território: em sua contiguidade o espaço mais socializado e socialista das crianças e dos adolescentes.

Um tempo em que a rua só era perigosa em momentos regulados pelo trabalho: a hora de ir para a fábrica ou a lavoura e a hora de voltar para casa, jantar e dormir. Sem televisão nem baladas ou raves: apenas as ondas do rádio e as conversas na cozinha, centro da sociabilidade familiar.

Quermesses da igreja, leilões, rifas, pescarias de bugigangas e músicas dedicadas aos namoricos e amigos, nessa ordem de preferência. Quando sobravam moedas, as matinês de domingo, animadas por filmes lançados há anos nos cinemas da capital.

No mais, a monotonia feliz dos dias regulados, das férias em casa, das viagens raras, dos amigos que só se disputavam por figurinhas e intrigas tolas.

O antigamente se espraia em ações e expectativas do hoje. De tal maneira amalgamou-se na vida interior e na memória, que dá sempre a impressão de ter sido apenas um documento histórico para dizer, entre rugas e cãs, “meninos, eu vi!”. Ou, em dias de mau humor e indignação com o presente, poder dizer-se em silêncio ou como uma acusação ao mundo mudado: “Era um tempo melhor: aquilo é que era vida!”

No entanto, no silêncio da solidão, em conversa com o espelho interior, sei que, verdade da verdade, o melhor mesmo era a idade: os olhos impregnados de jovens aprendizados e a alma aberta a acreditar no que viria.

Andando de banda…

“Do lado esquerdo carrego meus mortos.

Por isso caminho um pouco de banda.”

Carlos Drummond de Andrade

Amigos deveriam sempre estar de chegada. Jamais de partida.

Amigos deveriam sempre dizer alô. Adeus, jamais!

Amigos deveriam poder transformar retratos em cenas vivas; fotografias em revivescências.

Amigos não poderiam ter autorização para irem embora sem estar outras vezes conosco, em casa, na rua, em uma confeitaria, bebericando um café, ou até mesmo, num banco de praça contando lorotas, histórias e falando de amizade sem fim.

Amigos não poderiam partir de supetão: afinal, a amizade é longa porque os anos já pesam e se medem em décadas.

Amigo contador de histórias, não pode partir jamais. Porque não tem como recuperar a voz uma vez solta no ar. A voz não é uma pipa que retorna. Mesmo que o amigo crie pipas e faça de sua voz conto e canto. A voz não é como um livro, que reabro e refaço a conversa.

Amigo com voz mansa, voz de avô cuidadoso, de pessoa encantadora de pessoas, de cuidador de amizades, de cuidador de mentes, de cuidador de corações, ah, este não tem ordem nem licença para partir.

Mas partiu. E deixou amigos partidos. Uma história com fim. Um canto em silêncio. Uma leitura interrompida.

Francisco abriu voo para o além, aonde as pipas não chegam, aonde as histórias são outras.

Lá, juntou-se a outras bibliotecas andantes e irão banquetear-se com seus jeitos inesquecíveis de falar histórias de seus povos, agora mais órfãos.

Francisco Gregório Filho, sua presença na vida de seus amigos será perene, porque é impossível esquecer a generosidade, a fidalguia e a arte de um amigo como você.

Agradeço à vida que me permitiu aprender com você.

Marta Morais da Costa

Uma casa à sombra

Foto por Engin Akyurt em Pexels.com

Juro que só passei aqui para ver o estado de nossa casa. Há tanto tempo que a gente deixou de morar nela, não é? O jardim está meio abandonado. Lembra o cuidado que tínhamos em aparar a grama, limpar as ervas indesejadas, plantar e replantas as flores?

Não esqueço os momentos em que, juntos, cuidávamos de tudo, horas a fio, conversando, fazendo planos, adubando, comentando o cenário político, podando, repassando a programação do dia seguinte. O trabalho rendia e sentíamos a cooperação tomar forma.

A casa branca de janelas azuis era acolhedora e alegre. Não descuidávamos dos detalhes: a pintura, os consertos, as portas abertas e, lá dentro, o perfume da limpeza e a claridade do acolhimento.

O quintal era nosso lugar de criação. A horta, o viveiro de plantas, as frutas pendentes, as flores anunciadoras da produção que se gestava. A sombra, o silêncio, a cômoda espreguiçadeira ao lado da rede colorida. O ruído das folhas no chão, a umidade do solo e a vida verde pacífica.

Quando foi que perdemos tudo isso? Foi naquele Natal frustrado? No Dia dos Namorados em que o amor bateu cabeça no umbral da porta e desfaleceu? No dia de minha demissão em que palavras acres e duras tentaram compensar a frustração? No final de semana de ciúme violento em que minha mão encontrou sua pele com a força da vingança? Nas manhãs de noites sem amor nem carinhos? No silêncio de bocas fechadas à força pelo sentimento de aridez e solidão? Na indiferença cotidiana que aos poucos ocupou os minutos sem fim?

Perdemos, deixamos sumir, indiferentes vimos transformarem-se o afeto e a cumplicidade. Em seu lugar, a fria indiferença, palavras geladas em coração ainda quente. Sem tentações, sem frestas, sem fugas: só o progressivo abandono do que parecia ser a inamovível felicidade a dois.

De repente, a troca ácida de frases e de mágoas adormecidas. Fomos vítimas e algozes de nossa própria incúria e soberba. Nada ficou sólido o suficiente para contornos ou retornos. Seguimos em frente (em frente?) separados, isolados e desolados.

Do outro lado da rua, olho o jardim em desmazelo. Olho em mim em desalento. Olho o passado em imagem desmaiada. A casa reluz em branco e azul, portas fechadas, janelas abertas de onde jorram cascatas de trágico Chopin.

A música ambienta a certeza de que o quintal, inacessível aos olhos, resiste em alguns pontos de sombra e verde (resistente à total destruição). O aroma doce das frutas parece permanecer. Talvez seja o desejo de que nem tudo seja desaparecimento.

No canto mais à sombra no jardim, me parece distinguir teu vulto esbelto, as mãos camponesas e carinhosas, o riso fácil, o olhar afetuoso. Em vão.

Continuo o caminho. Sei agora que não retornarei a ver a casa. Seu coração deixou de bater neste exato momento. Ela permanece branca e azul, como um cadáver.

Agora a solidão engolfa a a tarde.