George Orwell: Por que escrevo.

George Orwell. Porque escrevo e outros ensaios.  Tradução Cláudio Marcondes. Companhia das Letras, Penguin, 2021     126p.

“Por que escrevo”: Orwell dá como justificativa da escrita o “puro egoísmo”, o “entusiasmo estético”, o “impulso histórico” e o “propósito político”.

“Todos os escritores são vaidosos, egoístas e preguiçosos, e bem no fundo de seus motivos há sempre um mistério. Escrever um livro é uma luta terrível e exaustiva, como o longo acesso de uma enfermidade dolorosa. Ninguém empreenderia nada do tipo se não fosse impelido por algum demônio, ao qual não se pode resistir nem tampouco compreender. Até onde se sabe, esse demônio é simplesmente o mesmo instinto que leva um bebê a berrar por atenção. E, no entanto, também é verdade que não se pode escrever nada legível a não ser que se lute constantemente para apagar a nossa própria personalidade. A boa prosa é como a vidraça numa janela. Não posso afirmar ao certo quais dos meus motivos são os mais fortes, mas sei qual deles merece ser seguido.” (p.19)

No escurinho da gaveta do tempo

Marta Morais da Costa

O avanço do tempo de vida traz amarguras e algum consolo. Não me abandone, caro leitor, pensando que vou falar das tristezas e dores da velhice! Vou não.

Já deixei essa baba de tristeza em tantos textos… E voltarei a deixar, não tenho dúvida. Mas hoje eu quero falar de outras marcas do tempo.

Descobri que cada vez mais gosto de esquecer. Principalmente esquecer onde guardo coisas. Aliás, coisas-objetos é o que mais acumulamos ao longo do tempo. Só perde em quantidade para os amores.

Onde deixei aquele colar de contas marinhas que ganhei da Anita? Minha cabeça anda avoada: esqueci onde deixei a chave que abre a porta do armário com os presentes das bodas de prata! Em que caixa guardei aquelas fotos da viagem ao México? Meu filho pediu emprestado o cabo HDMI para que ele possa ter acesso ao streaming de filmes: sei que coloquei em algum lugar da casa, mas onde?

Não pense, leitora crítica, que se trata de desorganização mental ou doméstica. Tenho lugares e caixas e baús e gavetas e armários etiquetados para facilitar a identificação dos conteúdos e me poupar o tempo absurdo de sair procurando pelos cantos da casa. Que nem são tantos assim, dada que a casa é um pouco mais do que abrigo para duas pessoas. Trata-se, antes de tudo o mais, de lapsos de organização. Foi naquele segundo antes de pegar o carro e sair meio atrasada para o compromisso: larguei na primeira gaveta que encontrei. Mas em qual delas? 

O telefone chamou justo na hora em que estava com o rolo de barbante na mão: deixei em algum lugar para depois colocar no armário dos utensílios de uso imediato. Mas onde foi esse lugar?

O recibo do pagamento do imposto que trouxe do banco ficou dentro de qual livro? Coloquei na pasta de documentos adequada? Deixei na gaveta do armário junto com as compras e as notas de caixa, para depois dar um destino correto?

Mas mesmo nessa mixórdia cerebral, há dias em que resolvo dar um basta na bagunça. Para que servem as etiquetas senão para organizar o caos? Levanto da cama, ponho primeiro o pé direito no chão, lavo o rosto com o melhor dos sabonetes e enxugo om a mais macia das toalhas. Um trato caprichado no cabelo – rebelde, como sempre – e macacão de operário para dar conta do que sei, será um trabalho braçomemorial dos bons!

Caderneta para registrar achados e destiná-los à etiqueta correta. Luvas para abrir gavetas sem temer picadas ou beliscões. Chaveiro de mordoma de mansão de 400 quartos. Óculos de proteção contra pó de guardados, mas com lentes de aumento para ler até as letras minúsculas de antigos impressos perdidos em arcas de tesouro. Uma garrafa de água Perrier para enfrentar a sede de organização com um pouco de classe. E um enorme cesto com compartimentos simétricos (olha a virginiana aí, gente!) para ir acomodando os achados-ex-perdidos. Ah, e um belo capacete colonial, daqueles de explorador inglês na Índia; afinal, caçar perdidos merece ser feito com aplomb.

Foto por Francisco Jacquier em Pexels.com

Aí é que vem a consolação, anunciada lá em cima.

Já na primeira gaveta reencontro aquele convite para aquela festa naquele clube onde começou aquela doce amizade. Embaixo dele, a chave do baú de bijuterias que era pra ser de minha neta, mas sem chave, nada feito. Agora já tenho um presente de aniversário completo! Que consolo!

No armário, lá no fundo, fundinho, amassado feito pele de mulher centenária (quase eu), o mil vezes execrado recibo de pagamento da última prestação da bicicleta (hoje parada  e enferrujando no porão) que tive de pagar duas vezes, porque não consegui comprovar. Estava lá, dormindo, aconchegado debaixo do cachecol tri-invernal que deveria ter ido para doação no tempo em que Curitiba tinha inverno.

No pacotinho de celofane guardado com cuidado dentro da caixinha de madrepérola, que abrigou um dia o anel de casamento, a mecha de cabelos de meu filho primogênito, que eu havia prometido dar a ele no dia em que completasse 40 anos, isto é, há uma década e meia atrás!

Mas a descoberta que mais mexeu com meus brios, com a memória falha, com a passagem voraz do tempo, foi a do presente em papel de seda e fita de cetim de um par de brincos comprados em Helsinki para aquela prima apaixonada pela Finlândia, lugar que não teve tempo de conhecer. Brincos guardados para quem não teve tempo também para receber e usar. Escondidos para não alimentar a dor da ausência.

Eu escrevi lá em cima algo sobre consolo. Não lembro mais em que parte deste texto. Não faz mal. Você, leitora atenta, deve saber melhor do que eu onde deixei essa palavra.

Como dizia minha mãe, se está perdido dentro de casa, um dia aparece. O consolo é que esse passado que retorna, sem cobertura, às claras, na levada do tempo, vem embebido de histórias e afetos. Reavê-los é como voltar atrás, viver novamente, querer outra vez.

Hieróglifos da vida.

Uma noite, uma fala: poesia só se cala é dentro do peito

Marta Morais da Costa

 “O verso é um doido cantando sozinho/ seu assunto é o caminho. E nada mais!/ O caminho que ele próprio inventa.”

(Mário Quintana)

Noite de maio, noite de outono, noite de lua crescente.

Estamos em ambiente universitário. Como em outras noites e outonos, me posiciono para uma conversa com público adulto de possíveis formadores de leitores.

Não para formar no sentido de colocar em fôrma, mas de pessoas que venham a tomar forma, como diferencia Eliana Yunes. E nessa diferença cabe a diversidade da Pedagogia. E da leitura, evidentemente.

Bem que eu sabia que escrever poesia tem um quê de encantamento.

Mas descobri mais uma vez que, em certa noite de outono, sem varinha e sem poção, a poesia “se fez carne e habitou entre nós”.

Porque a poesia envolvente se torna semente e, bem adubada e cuidada, floresce.

Assim, pegando um verso ali, uma estrofe aqui, a imagem em fuga e a sonoridade pródiga, a leitura em voz alta do poema desenhou em graves e agudos a música das esferas da beleza literária. O público veio comigo, sem deixar de ser ele mesmo.

Houve quem resistisse: não gosto de ler poesia é coisa de mulher e criança acho difícil tô nem aí pra poesia coisa chata…

Meia hora depois, olhos em brasa, ouvidos de quero mais: por que parou? parou porquê?

A mágica humana da escrita em versos que conversa com cérebro e coração aproxima, aquece, estimula, acolhe, desfaz muros, convida pra dança, faz do adulto criança.

Assim, em cumplicidade, a fala sobre poesia a um público atento deu razão e afirmou em mim a história de uma escrita em versos, a nova aventura, a viagem em águas desconhecidas.

Lembro fases e faces dessa escrita.

Botei beca pra escolher o título. Batizei com a prática e fiz crescer com a poética: No que der e vier a poesia põe a colher.

Cravei o ritmo, remexi o provérbio, convidei o leitor.

“Toda poesia é sutil ou não é poesia. Existem sempre muitas janelas fechadas no caminho de um poeta, mas ele, em vez de se espantar, escreve.” (José Castello)

Escrevi, coletei, botei ordem, trouxe ilustração. Vieram Márcia e Naotake. Veio a Insight.

Nasceu o livro: suas janelas, gavetas, quintais e caminho.

Vieram os amigos, abraços flores conversas de saudade risos de bom encontro: e  o livro ganhou asas, encantado nos olhos de seus leitores.

Agora ele está por aí, no mundo, crescendo criança-adulta. Deixando a casa natal para viver no meio de todos.

Que meu livro em seu caminho se espante, encante e seja reescrito.

Ficarei aqui, tomando os cuidados amorosos para que cresça e se fortaleça.

Fora de ordem

Marta Morais da Costa

Foto por Pixabay em Pexels.com

Ô, Helena, tu vai ao mercado? Leva o Chico com tu que preciso resolver problema de boleto no banco.

E onde a gente se encontra depois, Cecília?

No ponto de ônibus, Helena. Calculo que em meia hora tô lá…

Tudo bem. Tchau então.

Helena pegou a mão de Chico e se foram porta adentro do mercado. Pão, cenoura, leite, arroz que estava em oferta, um pacotinho de farinha. Ah, e ovos! Tudo rapidinho pra poder cumprir o tempo aprazado. Chico quieto ao lado, ajudando a colocar no carrinho as comprinhas apressadas.

Mas quem resiste a uma prateleira de doces e chocolates? Helena se debruça sobre o balcão pra escolher as batatas. Chico, pacotinho de farinha na mão, aproveita para escapar para o corredor ao lado. Quer um pirulito vermelho como aquele que o Reca tinha na boca no recreio da escola. Sai de fininho, mexe e remexe e desalinha as mercadorias na prateleira. Nada do pirulito. Talvez no próximo corredor.

Sem Chico, em direção contrária, Helena aflita entrava em corredores cada vez menos próximos do desejo do menino: detergentes, compotas, álcool álcool álcool em formatos e cores diversas – do vinho ao caramelo, do verde ao incolor – e nada do Chico… Começou a temer.

O rapaz viu o menino, sozinho e atrapalhado, perguntou o nome, quem o havia trazido, onde estava a pessoa. Respostas confusas, a voz de criança usando uma língua parecida com o português. E o choro imediato a molhar os sons e expressar seu temor.

O mercado em polvorosa: a mulher procurando o menino, o menino procurando o pirulito, o rapaz procurando compreender, todos querendo reunir novamente a mulher e o menino. E todos a quererem trazer de volta a rotina de um mercado com pessoas que escolhem e compram e se vão.

Aos poucos uns falam com outros, de corredor a corredor o caso corre, as informações correm e corre o boato de que a criança tinha sido abandonada. Já se falava em polícia, boletim, aplicação das sanções de “abandono de incapaz”. Helena sem carrinho e sem compras andando em círculos pelos locais já devassados, gentes tomando a mão de qualquer criança que parecesse estar abandonada – e muitas crianças pareciam zumbis, mesmo com adultos por perto.

Não durou muito a procura: o suficiente para eletrizar o ambiente, parar as caixas registradoras, tirar do trabalho os repositores, provocar o engarrafamento de carrinhos e compras deixados ao léu, vozes altercando-se é esse o menino? essa a criança? e aquele ali? será que o menino não saiu e foi pra rua?

A palavra rua explodiu no ambiente: mães agarravam os filhos, prendiam nos braços, gritavam sua maternidade é meu! é meu! esse é meu! Vários clientes correram para fora do mercado, a vistoriar a rua que, por sorte, estava quase vazia e não tinha crianças à vista. Voltavam e em voz alta – até exagerada – tentavam acalmar quem estava nos corredores não saiu, não saiu, tem que estar aqui dentro! Clientes mais perspicazes juram que viram nuvens de alívio azuizinhas baixando sobre mercadorias secas e molhadas, pairando belas e leves sobre a panificadora e até o açougue.

Em cena cinematográfica, eis que Helena entra em um corredor, que ela jura ser o dos doces e chocolates, e o rapaz que trazia Chico pela mão jura que era o dos talcos e sabonetes, não importa, Helena vê Chico que vê Helena. Correm um para o outro, abraçam-se e os clientes, todos sorrindo mazzaropimente, aplaudiram a cena final daquele suspense capitalista.

Ah, Chico trazia na boca um pirulito vermelho…

Tudo bem, Helena? Comprou o que tu precisava? Chico se comportou? Os três reunidos no ponto de ônibus, sem atrasos de parte a parte.

Chico é um menino obediente, Cecília. Até me ajudou a colocar as coisas no carrinho. Deu tudo certo e Helena baixou os olhos. Vai que eles ainda guardassem restos de medo…

Um lugar de beleza para os livros

Marta Morais da Costa

Espaços são fundamentais para a construção e entendimento de nossos afetos: a casa natal, a cidade de que gostamos, a serra que nos perturba, o rio que nos transporta  e ensina, o pedaço de terra que abriga e alimenta as plantas que nos encantam, a árvore bordada pelo céu azul e que acalenta um ninho de pássaros, o céu – com ou sem estrelas – aonde voa nossa imaginação para terras distantes e sonhos de verão. Até o banco de jardim na praça que testemunhou conversas e afetos é fundamental.

Os falantes de latim nos legaram o termo “situs”, uma palavra que apontava trilhas de sentido em três direções: “posição, local, situação”. E cá estamos nós hoje a aplicar o vocábulo herdado também em diferentes construções e produzindo significados diversos. Antes da invasão do inglês site, já convivíamoscom sítios múltiplos.

Sítios da infância, onde testemunhei a semeadura transformada no milagre da colheita, onde aprendi a ligação umbilical com a terra, útero inegociável dos camponeses. Onde o gado, que demoradamente se apraz em gastar seu dia, recolhe a seiva que encherá úberes e canecas em refeições compartilhadas e abençoadas. Sítios em que colhi, sem ter plantado nem cuidado, as uvas que até hoje perfumam minha lembrança. Sítios de roças simples e gente corajosa. Sítios de animais em comunhão com homens e mulheres atentos, mas também atenciosos. Sítios da infância livre em comunidades que se esforçavam em esconder mazelas e praticavam a convivência utilitária e solidária.

Sítios arqueológicos que a vida foi multiplicando em mapas, viagens e olhares. Lugares de arte, de meditação, de leis e reis, de oração e de outras convivências, transformados em passagem de turistas apressados em busca de emoções passageiras e ohs e ahs rapidamente esquecidos, principalmente quando não foram registrados em telas e papel glossy.

Existe um sítio, porém, amálgama de todos esses aí acima, que me perturba, atravessa, comove e desentranha. É o espaço, o lugar, o ambiente, a posição, a situação: o sítio pleno. Espaço, cenário, alimento, anseio e dúvida: é a biblioteca. Local em que o turismo é exceção, em que o pensamento é alicerce, em que a leitura é o cultivo e a cultura. Ambiente de convivência igualitária entre vivos e já desaparecidos. Pessoas que abandonaram na Terra carne e ossos, mas legaram livros que são a presença pensante delas à espera de ressurreição pelos leitores.

Quando uma biblioteca manifesta em pedra, cores e formas a beleza e a maravilha que é um sítio que abriga livros, não tem como fixar os olhos até lacrimejarem, desejar voluptuosamente tocar os livros, os armários, as escadas para que o tato absorva, também ele, essas presenças pensantes.

Na história viciante de um leitor assíduo e amoroso, não há sítio mais lindo do que uma biblioteca. Não há.

Rossana Uba, a Mensageira, acaba de visitar uma delas. a Biblioteca do Mosteiro dos Monges Beneditinos de Admont, na Áustria e tornou meu dia mais belo, mais reconfortante, mais esperançoso. Espero que o mesmo aconteça com meus leitores, pois vou repassar uma das fotos que recebi em mensagem de amizade.

Que a semana tenha para nós a beleza deste sítio de livros: arte, sol e uma história pulsante.

Foto Rossana Uba

Perséfone e o outono

Marta Morais da Costa

“A luz mudou:

a afinação do dó está mais escura.

E as canções da manhã parecem ensaiadas demais.

Essa é a luz do outono, não a luz da primavera.

A luz do outono: não serás poupada.

As canções mudaram; invadiu-as

o indizível.

Essa é a luz do outono, não a luz que declara

renasci.

Não a aurora da primavera: penei, sofri. fui libertada.

Este é o presente, uma alegoria do desperdício.

Tanta coisa mudou. E no entanto você tem sorte:

o ideal arde em você como uma febre.

Ou não como uma febre, como um segundo coração.”

Este é um fragmento da poesia “Outubro”, de Averno, livro de poemas de Louise Glück, publicado em 2006, na tradução de Heloísa Jahn.

A poeta norte-americana recebeu o reconhecimento pela qualidade de sua poesia, quando ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 2020. Foi a segunda poeta a receber tal distinção, a primeira foi a polonesa Wislawa Symborska em 1996. Duas escritoras de alta voltagem literária, donas de estilos diferentes com a mesma alta qualidade técnica e conhecimento da alma humana.

Em Averno, os leitores ouvem a voz da jovem Perséfone, a mulher raptada e encerrada nas profundezas do reino de Hades, o senhor do mundo inferior, o deus dos mortos. É uma voz ancestral a expressar o sentimento vital de sobrevivência e de desejo de outra vida e de outros haveres existenciais. Perséfone, mito das estações do ano, está ligada à ideia de mudança e de afetividade: quando, depois da decisão ajuizada por Zeus, que lhe concedeu uma temporada na superfície da Terra e outra no submundo das trevas, Perséfone passava com sua mãe a primavera e a transição do verão para o outono. Era quando a natureza florescia e frutificava. Presa com Hades, a beleza e o sustento se escondiam, para renascer em outra primavera.

Esse mito da mulher dividida entre a possibilidade da criação e da fartura e a necessária permanência no escuro, no adormecimento e na espera, fazem de Perséfone a mulher ambivalente, em contínua romaria, vivendo a alternância de fazeres e deveres.

Na melancolia de um canto poético simples na estrutura das frases, na  escolha de palavras, na sequência fragmentada de estrofes curtas, na absoluta e total reivindicação de sobrevida, Louise Glück captura em mim atenção e liames (quase algemas) de sensibilidade incomuns.

A visão do outono que se aproxima no calendário e o estágio das estações da minha vida pessoal estabelecem posições que se entrelaçam nas encruzilhadas da leitura.

Mais do que a interminável viagem ascendente e descendente de Perséfone, impactam em mim as ressonâncias de um estado outonal.

Em decorrência, a pergunta incontrolada se manifesta: o quanto um leitor pode ser fisgado por um texto que chega na hora precisa quando a necessidade de compreensão é mais aguda?

Estar em sintonia psíquica com um texto – vindo de outras geografias e de outros tempos – casualmente conectado ao leitor, transborda o conhecimento e se derrama em vínculos indestrutíveis. Esta é uma das magias da leitura. 

O quanto impacta um verso como “a afinação do dó está mais escura” em um leitor primaveril ou em um leitor outonal – talvez já invernal? Em que grau de vivência é absorvida a expressão “a alegoria do desperdício”, quando o desperdício é a realidade. Ou quando ele é memória, lembrança, saudade?

Em que dimensão o termo desperdício atinge o leitor? Mais ou menos do que “waste”? Mais ou menos do que “esbanjamento”, “perda” ou “resto” , seus sentidos próximos?

Perséfone olha a luz, olha para cima, para a superfície que invariavelmente e duas vezes ao ano lhe inundarão as fases e os fazeres.

Para que luz, em qual direção e quando uma vida outonal poderá assim ter esperança? Os versos límpidos, despidos de grandiloquência e rebuscadas metáforas (permanecendo tão somente no terreno dos símiles), Louise Glück energiza a voz de seu Outro poético:

“o ideal arde em você como uma febre.

Ou não como uma febre, como um segundo coração.”

Pode ser. Uma febre, um segundo coração. Esse estado de anatomia similar – e isso a literatura faz belamente – justifica a concretude e a razão mais justificável da leitura.

Roland Barthes afirmou em O prazer do texto (1971):

“Às vezes, o prazer do Texto cumpre-se de forma mais profunda (e é nesse momento que se pode dizer realmente que há Texto): quando o texto “literário” (o livro) transmigra para nossa vida, quando uma outra escrita (a escrita do Outro) consegue escrever fragmentos de nossa própria cotidianeidade, enfim, quando se produz uma co-existência.”

Para brindar esse encontro de outonos e segundos corações é que escrevi este breve comentário.

Curitiba, a onze dias do começo de mais um outono.

Foto por Valiphotos em Pexels.com

No estilo Marley e eu…

Marta Morais da Costa

Gostava de dirigir e de sair por aí sem saber aonde ir e sem ter hora de chegar. Logo que a profissão lhe permitiu, entrou em uma concessionária e comprou um carro zero. Comprometeu por quatro anos o orçamento reduzido, mas pôde exibir um semblante pacífico e de meio sorriso, típico das pessoas contentes consigo e com o que veem ao redor.

É verdade que, rodando pela cidade, viu muitas cenas tristes de gente morando em calçadas, de casebres com placa em neon, oferecendo serviços como conserto de sapatos, pintura, tarô e flores artificiais.

Viu também o empilhamento de pessoas e casas com vinte, trinta andares e um jardim frontal de 5mx10m com calçadas ocupando o triplo de espaço. Viu transeuntes apressados, carregados, solidários, gritantes, cabisbaixos, atônitos, suplicantes e, acima de tudo, aguerridos sobreviventes das batalhas urbanas.

Viu quadras em ruínas, parques coloridos, pontes de vários tamanhos, árvores e tocos, bosques e areais, dejetos e placas de projetos, flores nas janelas e muros pichados.

Ouviu palavrões, buzinas, ameaças, assaltos, pedidos de dinheiro e oferta de balas. Admirou os artistas de esquina, os motoristas cuidadosos e os prestadores de serviços públicos em ação. Não parou em acidentes, foi parada em proximidade de incêndios e em manifestações em prol de bandeiras variadas.

Nada diferente do que qualquer motorista vê, ouve, contempla e vive quando se aventura nas ruas de uma cidade.

Mas tinha uma identidade peculiar: a cada quatro anos, entrava em uma concessionária, deixava ali o automóvel em uso e saía com a nota fiscal de um novo carro. Zero, é lógico.

Não o fazia por exibicionismo, superstição ou pelo mau estado do velho companheiro. Apenas cumpria o conselho que havia recebido do pai: troque de carro a cada quatro anos – ou menos- já que você não entende e nem quer aprender sobre mecânica; carro novo costuma não dar problema durante esse período.

Pontualmente fez isso durante toda a vida. E a cada nova aquisição batizava a máquina com um nome-síntese do que considerava ser a identidade do veículo, muita além e mais significativa do que a placa obrigatória.

Passou pelo Grama, verde, baixinho, macio; pelo Estácio, que um dia transportou uma caixa de vinis de samba, que ganhou de uma prima que foi morar em Salvador; pela Madame de Sévigné, uma perua amarela, que lembrava as cores dos Correios; pela Madá, também conhecida por Madalena, com quem viveu de modo que “nem tão pouco se admite/que do nosso amor duvide”; o Sabiá, um potente fusca que cantava os pneus e os pinos que era uma beleza, tanto nos lás como nos cás; um corcel preto, Batman, que subia a serra em voos noturnos e amanhecia apaziguado na caverna do subsolo do prédio.  

Mas o maior conflito, a dúvida entre espada e caldeirinha, a escolha de Sofia está sendo neste momento. Cumprem-se quatro anos de vida amigável com uma onda civilizada, a Frozen, prateada e com termostato desregulado, que se mantém invariável na temperatura ártica de 16 graus. Mais-dia-menos-dia, entrará na concessionária para trocar, talvez, pela derradeira máquina de sua vida útil de motorista amadora.

Tem que ser um carro coroação, um ser significativo de uma trajetória de medos e surpresas, de paisagens e rostos, de multas e prestações, de desapego e dependência, de conversas a vidros fechados e brigas entre pedais. Não sabe como será essa máquina: dependerá do contato elétrico, faísca de descoberta: é esse! Tem cara de the end!

Venha na cor que vier, no tamanho que tiver, na potência pequena ou maiúscula do motor, bebendo álcool ou descarregando bateria, será seu amor derradeiro. O nome, este, já escolheu.

Consulta o saldo bancário, veste seu melhor traje “vou comprar um carro zero”, entra na Frozen e se dirige à concessionária.

Vai se encontrar, certamente, pela vez primeira com o Adieu, mes enfants!

Foto por Caio em Pexels.com

Um dia mercurial

Marta Morais da Costa

Foto por Pavel Danilyuk em Pexels.com

Meu horóscopo vem avisando há dias que devo me precaver com a invasão do planeta Mercúrio na trajetória de meu signo, o que me obrigará a rever conceitos e a abrir mão  – e cabeça – em relação a meus valores morais e costais e a minhas posições pessoais em relação a crenças e falas.

Um aviso pra lá de sério; um alerta de respeito. Afinal, depois de tantas décadas pensando e discutindo e esquecendo e retomando e assumindo, chegar ao dia de hoje com a disposição de ainda mudar é projeto para mais de uma vida.

Nessa toada de precaução e cuidado fui ler os jornais do dia. Vício adquirido há décadas, do tempo do jornal impresso que saudade me dá. Não precisei de longas horas, nem de choques de realidade ou resistência a horrores. Encontrei em O Estado de São Paulo, fartamente acusado de ser um jornal de direita, uma pequena reportagem de Síbélia Zanon: “A mente aceita só aquilo em que acredita, dizem cientistas”.

 

Essas coisas da mente cada vez mais entram em meu cardápio diário de preocupações. É evidente que tem a ver com o desgaste dos anos e com o receio de perda das faculdades mentais. Nunca se sabe que qualidade de futuro terei. É bom, ao  menos, ter um pouco de informação pra não dizer, mais tarde, no auge da frustração “eu não sabia”.

 

Li a reportagem com zelo e sofreguidão. Lá está escrito que cientistas – logo pessoas de densa seriedade, em suas pesquisas descobriram, na Universidade de Stanford (USA) em testes “com estudantes universitários que tinham opiniões opostas sobre a pena de morte. Com base em dois artigos falsos – um que argumentava a favor e outro contra a pena de morte –, os estudantes apoiaram justamente aquele artigo que confirmava sua crença original”. Os cientistas concluíram “que ter as certezas contestadas serviu apenas como reforço para as próprias convicções.” E denominaram “viés de confirmação” essa característica mental.

Muito bem. Cientistas brasileiros da área da informação atestam que, mais do que confirmação, existe, por força das redes digitais e da circulação dos mesmos valores e crenças, o nascimento de uma “identidade prèt-à-porter”. Para quem não viveu essa moda e nem fala francês, a expressão significa algo como uma identidade que vem pronta para vestir, isto é, cujos padrões são pré-estabelecidos em grupos e bolhas de sócios das mesmas ideias e valores.

 

Foi o que bastou para que meu descanso de sábado se transformasse em desassossego de final de semana.

 

O que pretendemos na formação de leitores de literatura se não é a convivência com a diversidade, o descobrir que pensamentos antagônicos existem, que as pessoas são diferentes por natureza em seu físico e pela cultura em sua mentalidade?

 

Nesse desassossego caíram sobre mim todos os ssss de minhas pobres prédicas em favor da diversidade. Segundo a neurocientista Cláudia Feitosa-Santana,  “as conversas não ajudam a reduzir a polarização porque as pessoas acham que o diálogo está a serviço de desconstruir o argumento do outro.” Voaram pelas janelas e portas a importância que atribuí às rodas de conversa na formação de leitores.

Mais do que isso, a “eterna vigilância” das bolhas e do controle googlístico sobre o que nos interessa, restringe nosso pensamento àquilo que nos satisfaz e espelha.

Estamos, por consequência, fadados a conversarmos e vivermos segundo critérios e escolhas repetitivas? Poderemos, enfim, respondendo a alguns sites que nos perguntam se somos robôs, responder afirmativamente: sim, sou o robô FywXzV 5290941086!!

É verdade que não pretendo atravessar o planeta Terra só na planície, com algum planalto isolado e intrometido, rumo a um horizonte mais reto do que as linhas de meu monitor. Nem desobedecer a meu médico e fugir do posto de saúde com medo de virar jacaré ou ser ferido por uma agulha contendo um DNA invasor.

Mas reconheço que nem sempre conhecer a bolha opositora, quebrar barreiras e polarização é um estratagema recomendável para enfrentar o brandir de paus, pedras e balas ou para resolver, num ato de extrema arrogância, ignorância e covardia, abolir o tempo do rei de um relógio que nem digital era. Talvez porque, em sua ignorância e oclusão mental,  desconhecesse algarismos romanos e ponteiros e pensasse que todo dourado é ouro de tolo.

Enfim, sabendo de identidades prêt-à-porter, de vieses de confirmação, bolhas e reforços da própria opinião, cabe observar, analisar e, se for preciso, reformular metodologias para que o viver a beleza e diversidade da literatura, não seja uma atitude empática como a que descreve a reportagem, e que usar a palavra empatia não signifique cobrar empatia do outro, sem que nós mesmos sejamos empáticos.

Enfim, descobri que meu horóscopo estava certo: Mercúrio  bagunçou meu dia e minha mente.

 

Fonte; https://www.estadao.com.br/alias/a-mente-aceita-so-aquilo-em-que-acredita-dizem-cientistas/