Fragmento de O longo adeus, de Raymond Chandler (1953)

Personagem rico Harlam Potter dialogando com o detetive  Philip Marlowe (p.252-253)

 “- Não sou uma figura pública e nem tenho a intenção de ser. Sempre tive muito trabalho evitando qualquer tipo de publicidade. Tenho influência, mas não abuso. (…) Nós vivemos no que se chama de democracia, regida pela maioria do povo. Uma ideia ótima se chegasse a funcionar. O povo elege, mas são as máquinas partidárias que nomeiam, e as máquinas partidárias, para serem eficientes, precisam de muito dinheiro. Alguém precisa dar esse dinheiro a eles e este alguém , seja um indivíduo, um grupo financeiro, um sindicato ou o que você quiser, espera alguma coisa em troca. O que eu e gente como eu esperamos é simplesmente viver nossa vida numa decente privacidade. Os gritos constantes em favor da liberdade de imprensa, com algumas honrosas exceções, significam liberdade para lidar com escândalos, crimes, sexo, sensacionalismo, ódio, alusões indiretas ou os usos políticos e financeiros da propaganda. Um jornal é um negócio feito para faturar através  das vendas de publicidade. Esta é uma pré-condição à sua circulação e você sabe do que a circulação depende.”

(…)

“Há uma coisa especial em relação a dinheiro – continuou. – Em grandes quantidades, tende a ter vida própria, até mesmo uma consciência própria. Fica muito difícil se controlar o poder do dinheiro. O homem sempre foi um animal venal. O crescimento das populações, os enormes custos das guerras, a incessante pressão confiscatória dos impostos – tudo isso faz o homem cada vez mais venal. O homem comum está cansado e assustado, e um homem cansado e assustado não pode ter ideais. Precisa comprar comida pra sua família. Na nossa época presenciamos um declínio chocante tanto na moral pública quanto na moral privada. Não se pode esperar qualidade de pessoas cujas vidas são uma sujeição à falta de qualidade. Não se pode ter qualidade com produção em massa. Não se deseja isso porque demoraria muito a chegar. Portanto, para substituir isso há o estilo, que é um logro comercial com a intenção de produzir coisas obsoletas e artificiais. A produção de massa não poderia vender seus produtos no ano que vem a não ser que faça o que vendeu este ano ficar fora de moda. Temos as cozinhas mais brancas e os banheiros mais brilhantes do mundo. Mas na adorável cozinha branca a dona-de-casa americana média não consegue cozinhar uma refeição boa de comer, e o adorável banheiro brilhante é sobretudo um receptáculo para desodorantes, laxativos, soníferos e produtos desta quadrilha de vigaristas que se chama indústria de cosméticos. Nós fazemos as embalagens mais bonitas do mundo, sr. Marlowe. O que está lá dentro é, na maior parte, lixo.”

A educação negada

Marta Morais da Costa

Foto por Stephen Paris em Pexels.com

O que é pior do que uma educação formal capenga? A ausência de educação.

A geração nem/nem apresenta crescimento constante . Não estudar e não trabalhar têm a ver com um país que desvaloriza o conhecimento (mesmo que aprove a fachada falsa de um diploma, muitas vezes adquirido ou conquistado sem empenho do estudante). Não estudar tem a ver com projetos de protagonismo: para que estudar se, mesmo sem escola, fulanos “se dão bem na vida”?

O não trabalhar tem várias causas. Uma delas, sem dúvida, se chama parasitismo. Machado de Assis bem o configurou na “teoria do medalhão” e em muitos personagens cínicos e desocupados.

O que é pior do que a pandemia para reduzir o aprendizado dos estudantes? A guerra.

Quando um milhão e quinhentas mil crianças são obrigadas a deixar seu país em vias de destruição, as escolas podem oferecer apenas um abrigo formal, já que o simbólico deixou de existir. Bombardear escolas não é matar exclusivamente os habitantes perseguidos por bombas e fuzis. É matar o que representam simbolicamente como futuro do país. Ali se realiza concretamente o que os estudantes de gerações passadas mais temiam: levar bomba em alguma disciplina.

Mas há outras formas de arrasar com a educação adquirida nas escolas. Ela pode começar com traques de São João, com bombinhas juninas e busca-pés, até chegar às armas biológicas dos desvios de verbas e leis retrógradas, além do caradurismo terraplanista e a anticiência.

A diáspora infantil espalha uma cultura riquíssima como a ucaraniana, divide-a e pulveriza. Lança as crianças em ambientes hospitaleiros, mas distantes do solo natal em geografia e ambiência cultural. Além de todas as dificuldades psicológicas e afetivas que toda guerra alimenta e faz crescer.

Mas guerras cruéis têm nuances e naturezas diversas. No Brasil, ela é silenciosa e matadora, como se promovida por assassinos de aluguel. Age nas sombras, nos detalhes, em busca do momento adequado para destruir.

O que é pior do que a guerra e a pandemia para destruir a educação? A omissão dos agentes políticos e pedagógicos.

Não é de hoje, não é do período pré-pandemia, não vem do início do século XXI, a destruição da educação brasileira. É projeto que se desenvolveu e desenvolve silenciosa e cruelmente há algumas décadas.

Gabriel Gabrowski, no jornal Extraclasse, editado no Rio Grande do Sul, faz uma análise bastante séria e apontando reais causas do que intitula “Apagão ou destruição da docência no Brasil”. Recomendo a leitura em https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2022/05/apagao-ou-destruicao-da-docencia-no-brasil/.

Do artigo, extraio um fragmento: “Registra-se ainda, o desprestígio e a desvalorização  social; a contestação e não pagamento do piso nacional por gestores públicos; o exercício da docência em áreas conhecimento sem habilitação acadêmica; a insegurança provocada por mudanças nos planos de carreira no efetivo exercício e na aposentadoria; a ausência de políticas de apoio financeiro na formação inicial e continuada; a responsabilização dos professores pela falta de condições de aprendizagem dos estudantes e, a desresponsabilização dos gestores públicos pela má gestão da educação.”

Cada um desses itens representa um grau a mais no terremoto que causa fissuras, desequilibra, desmonta e implode o edifício da educação brasileira.   E a quem isso efetivamente importa? Não aos que detêm o poder de corrigir e alterar a situação. Importa mais a quem só perde com ela. Os alunos que nem sabem que perdem, porque não ganham nunca. Os professores que sabem que perdem porque sonharam e trabalharam para obter aprendizados e profissão respeitada. Os pais – em especial os que acreditam na educação como fundamento para a melhoria de vida de seus filhos – porque sabem que as crianças e adolescentes não sabem e sabem que seu esforço pessoal e financeiro se esboroa no desencanto.

Quem ganha? Os discurseiros de boca de empáfia, os que cobiçam os tostões das verbas, os que rapam o fundo dos tachos em sua gulodice de notas e moedas.

Enquanto isso, os cursos de licenciatura minguam, os possíveis bons e dedicados professores abandonam as salas de aula para buscar sobrevivência alhures, os alunos ficam entregues a um ensino lacunar, precário, insuficiente para capacitá-los a profissões minimamente dignas, afastando-os de uma vida com esperança.

“Estudos e dados do INEP/MEC indicam que a maioria dos professores em efetivo exercício possuem 50 anos ou mais, enquanto os professores com até 24 anos correspondem a menos que um quinto. O censo do ensino superior 2020, publicado recentemente, confirma tendência de redução de matrículas nos cursos de licenciatura nos últimos anos. O último censo revela, também, que os Cursos de licenciaturas tiveram o menor ingresso (18%)”, escreve Gabriel Gabrowski.

Nada contra o envelhecimento dos professores nas salas de aulas, mas tudo contra a falta de renovação, da convivência com o novo, com o entusiasmo e com os vislumbres de futuro que um professor jovem traz ao coletivo.

Na geleia geral da cultura obtida por meio do conhecimento propiciado pela escola que desaba, não me causam espécie as manifestações de pouco apreço pelo estudo e a intensa revelação de espíritos obscuros e orgulhosos de sua ignorância.

De mansinho

Marta Morais da Costa

“Ele foi chegando de mansinho.”

A frase não me saía da cabeça. Lia textos, arrumava a casa, aguava as flores, passava a roupa. E ela continuava a martelar o cérebro e a memória.

Quem era “ele”? Chegava aonde? Por que de “mansinho”?

A frase foi ganhando boca e olhos, uma silhueta desenhou-se e ele veio andando para dentro de mim. Sem nome, sem perfil, somente andando.

Passei a emoldurar um rosto: cabelos negros, encaracolados. Abundantes. E uma fala tranquila e clara: “Cheguei.”

Ainda não consigo distinguir um nome e qual é nossa relação. Mas é de amor, sinto.

Aos poucos descubro que ele morou comigo por um tempo. Ocupou um espaço. E meu pensamento. Mais do que isso: conheceu meus desejos e meus desamores. Nutriu-se de um modo de olhar para o mundo e para as pessoas, que encontrava pontos de semelhança com o meu. Mas diferente em arestas e colorido. Como se o menino quisesse mostrar independência, sem provocar divergências.

Aos poucos desfiava-se um rosário de sons: ora falas, ora cantigas. E a gente brincava, se divertia e silenciava. Mas logo depois a conversa fazia uma curva e retornava mais lenta, com fendas e desvãos. A gente pensava que pensava em um e no outro. Até nem precisar falar, olhando, de mansinho. Rindo, de mansinho. Amando.

Agora sei quem ele é. Por ele, conheci outras frações de mim.

E talvez ele saiba que partes são essas.

Foto por Pixabay em Pexels.com

Em 9 de maio de 2022