Marta Morais da Costa
Tem algo mais gostoso quando, ultrapassado um período de distopia, voltamos, mesmo que de modo fugaz, a um estado de acomodação à rotina? Buscamos nesse reencontro as forças do passado para um salto à frente, ousado, se possível mais feliz.
O som que ouço imaginariamente nasce de Dominguinhos e Elba Ramalho, em gravação conjunta de “De volta pro meu aconchego”, em uma das demonstrações da força e poesia de nossa música popular:
É duro ficar sem você, vez em quando
Parece que falta um pedaço de mim
Me alegro na hora de regressar
Parece que eu vou mergulhar
Na felicidade sem fim.
Aquele viver intenso de pulmões, olhos e coração no reencontro da cidade natal, da casa em que se morou na infância, no encontro com aquele velho e querido amigo desgarrado pelos caminhos divergentes da vida, a visão daquela foto de quem invadiu nosso coração e nele gostosamente se instalou – mesmo que por um tempo efêmero. Afinal o amor pode ter dias contados ou décadas encadeadas: no fundo, lá no âmago, é o mesmo “fogo que arde sem se ver”.
O aconchego da roupa caseira, o toque, as marcas do uso constante, o desbotado de cores que se perderam no tempo.
O odor do tempero cotidiano da comidinha frugal, sem harmonizações amadeiradas ou de frutas vermelhas e tabaco, sem talheres de prata e porcelana chinesa: o prato de cada um, do seu jeito e gosto, que conhece até a quantidade necessária e a disposição dos alimentos em seu interior.
A geografia da casa, quase tão imutável quanto o Himalaia, os cantos onde sabemos que se aninham aranhas e os vãos mais escondidos onde o pó fez sua morada. A mancha no assoalho a lembrar do dia em que, por descuido ou intenção…
Os objetos em sua disposição costumeira, a esperar aquele dia especial, em que a vontade assume ares de amena loucura e desaba sua disposição de mudar o cenário, de desapegar, de trazer ao ambiente outras visualidades e enquadramentos. Mas pra que tudo mude, é preciso que tudo esteja no mesmo lugar.
É desse paradoxo que vive o aconchego: saber que pode ter sido quase duradouro, quase eterno. Ao nos receber, entretanto, o aconchego se apresta às boas vindas, mas ele mesmo se prepara para as boas idas, para as trocas, para o que terá uma encadernação nova.
O “pedaço de mim” reencontrado abalroa os demais pedaços que, ao regressarem, irão contaminar a expectativa de “felicidade sem fim”. Porque felicidade é assim: fugaz, finita, incompleta, desaconchegante. Uma utopia.
Mas o que é a vida senão visões utópicas em choque com fatos distópicos?
Tal qual a literatura, a superação sucede ao fracasso que sucedeu ao desejo utópico. Na gangorra de perdas e ganhos, ora me alteio, ora desabo.
Neste momento, especialíssimo, alegro-me em “estar contigo de novo”, porque, afinal, da vida noves fora, essa é “a paz que eu gosto de ter”.
