“O QUE É A ÁGUA? UMA ANEDOTA DE FOSTER WALLACE

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Eis porque gosto de ler aos meus alunos, no início de cada ano académico, uma passagem de um discurso apresentado por David Foster Wallace aos finalistas do Kenyon College, nos Estados Unidos. O escritor — morto tragicamente em 2008, aos quarenta e seis anos —, em 21 de Maio de 2005, conta aos seus alunos uma breve historieta em que são magnificamente ilustrados o papel e a função da cultura:

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”Dois jovens peixes vão nadando, e a certa altura encontram um peixe já velho que vai em sentido oposto, lhes faz um gesto de saudação, e diz: “Vivam, rapazes. Que tal está a água?”. Os dois peixes jovens nadam mais um pouco, e depois um vira-se para o outro e diz: “Que raio de coisa é a água?””

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O próprio autor nos dá a chave para interpretar a sua história: “a essência da historieta dos peixes é, simplesmente, que as realidades mais óbvias, omnipresentes e importantes são muitas vezes as mais difíceis de compreender e de debater”. Tal como os dois peixes jovens, nós não nos apercebemos daquilo que é realmente a “água” em que vivemos cada minuto da nossa existência. Efectivamente, não temos consciência de que a literatura e os saberes humanísticos, a cultura e a instrução, constituem o líquido amniótico ideal em que as ideias de democracia, de liberdade, de justiça, de laicidade, de igualdade, de direito à crítica, de tolerância, de solidariedade, de bem comum, podem conhecer um desenvolvimento vigoroso.”

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— NUCCIO ORDINE (Calábria, 18 de Julho de 1958 — 10 de Junho de 2023), professor, filósofo e crítico literário italiano, in “A Utilidade do Inútil”, Faktoria K de Livros, Kalandraka Editora Portugal, 2017 (reimpr.), p. 31-32.

Vem me contar…


Vem me contar,
gestos, sorriso e voz
as histórias de belos finais
de príncipes e camponesas
de campônios e suas princesas
enlaçados e felizes para sempre.

Vem me contar
entre o gemido e o espanto
no ricto do horror e da revolta
as histórias sangrentas de guerras urbanas
de desvalidos e até graduados
de presos e liberais, justos e marginais,
tombados nas ruas e lixeiras
de um país trucidado e trucidante.

Vem me contar
antes que o tempo acabe
e a alma em desalento apague
as histórias secretas repugnantes
de conluios, trapaças e saques,
(de quem sem arma mata,
com sorrisos de traição,
com verborreia falsificadora)
inoculados nas veias safenas
de um país de impunes gloriosos
e de operários sem construção.


Marta Morais da Costa