Armário

Marta Morais da Costa

Foto por Markus Spiske em Pexels.com
ARMÁRIO 
Dentro dele se escondem
os brinquedos esquecidos.

A porta do armário
parece a entrada 
da caverna de Ali Babá.

Lá dentro tesouros me esperam.

O carrinho de rolimã
vermelho brilhante 
e o Pinóquio de madeira
com braços articulados
companheiro de tantas horas
no tempo do eu menino.

Aquele laço de fita
da boneca Zazá
que tanta falta faz
na sua cabeça careca
faz minha irmã Rita
rir até inundar os olhos.

Meu pião de madeira
que mal aprendi a rodar,
mas que guarda na fieira
o suor da mão de meu pai.

Aquela casa de porcelana
pintada em arco-íris
trazida por tia Beatriz
da distante Alemanha.

Estavam no armário 
esquecidos
e voltaram para alegrar
este dia cinzento de chuva.

Se amanhã o sol sair,
voltam a repousar 
e a ser esquecidos.

Bom mesmo é poder retornar
a esses tesouros escondidos,
como um pirata bandido
assaltando armários-caverna
pela saudade movido.

Dá arrepios de dó*

Marta Morais da Costa

  • Olhar para a casa do joão-de-barro que, por falta de proteção, mudou-se para a periferia. Talvez seja obrigado a voltar.
  • Reencontrar o jardim da casa de infância transformado em pátio de estacionamento, todo revestido de concreto e sujo de manchas de óleo.
  • Descobrir que o tempo apagou aquela tímida mensagem escrita a lápis dizendo que eu era a razão de sua vida.
  • Vasculhar absolutamente todos os recantos e caixas e pacotes e gavetas e não recuperar aquela foto de debutante em que alguém escreveu: “pose de miss, corpo de miss”.
  • Descobrir naquela primeira edição rara do romance experimental de Valêncio Xavier que as traças- leitoras o devoraram.
  • Verificar que os apelos cenográficos e hipócritas levam mais pessoas a acreditar em ideias absurdas do que os sábios e sua ciência da vida conseguem persuadir.
  • Encontrar entre as pedras do quintal o corpo da sabiá-cantora, mutilado a pedras de um estilingue de um menino que considera a natureza sua posse exclusiva.
  • Ver na smart TV LED, 65 polegadas, sistema 8 K, Dolby Audio, a derrubada veloz e definitiva das árvores centenárias da Amazônia.
  • Ouvir dois dias e noites a fio o uivar do cão dos vizinhos, preso em casa enquanto eles se divertem na praia.
  • Saber que, no restaurante de luxo, a comida jogada no lixo alimentaria famílias famintas em casas, apartamentos e casebres da cidade que habito.
  • Conhecer a realidade da leitura neste país: onde ela inexiste, prolifera a ignorância, mãe dos crimes e das tragédias; onde ela existe, prolifera a preguiça, a linguagem pobre e a recusa do livro denso.
  • Constatar que, em meados do século passado, a remuneração de juízes de primeira instância e de professores se aproximava. Hoje há anos-luz de diferença entre eles.
  • Passear os olhos pelo Instagram, Tik tok e outras leseiras, denominadas por cabeças encartoladas de “redes sociais”, e descobrir que as pessoas se envergonham de serem fotografadas lendo: preferem biquínis, músculos e cenários.
* Dó, dor, doença, 
tormento sofrimento, 
pesadelo, desconforto, 
angústia, agonia.