Estava eu posta em sossego aposentadorial quando li o anúncio do lançamento de um livro do historiador Peter Burke. O título veio ao encontro de uns pensamentos meus, meio mórbidos, sobre o assunto: Ignorância. Uma história global. Tornou-se imediatamente um sonho de consumo.
Traindo meu amor por livrarias, entrei no site proibido e catei esta maçã do Bem e do Mal, trazendo num voo de alcíone o livro pra perto de mim.
Não o devorei porque o prato é suculento, substancial, substantivo. Consumi aos poucos, até porque a quantidade de informações é para um banquete pantagruélico.
Cá esteve durante dias comigo o livro sobre a ignorância escrito por Peter Burke em edição de 2022 pela Yale University Press, traduzido por Rodrigo Seabra e pela editado Vestígio, com uma apresentação bacana de Renato Janine Ribeiro. Coisa fina, que só vem reforçar em mim o Sócrates de “Só sei que nada sei.”
Degustei, terminei, dei tempo para uma deglutição lenta – meu médico me ensinou que é como devo ler a vida. Hoje, desejo atendido, leitura assimilada, brotou a vontade de escrever sobre o livro.
O que posso dizer de um livro que tem a seguinte dedicatória? “Para os professores deste mundo, heróis e heroínas na tentativa diária de remediar a ignorância.” Não tenho razão de cair de amores por ele?
Ponho aqui o sumário do livro na esperança de fisgar outros leitores para darem vida a seus conteúdos.
Parte I: A ignorância na sociedade
O que é a ignorância?
Filósofos e a ignorância
Ignorância coletiva
Estudando a ignorância
Histórias da ignorância
A ignorância da religião
A ignorância da ciência
A ignorância da geografia
Parte II: Consequências da ignorância
9. A ignorância na guerra
10. A ignorância nos negócios
11 A ignorância na política
12 Surpresas e catástrofes
13 Segredos e mentiras
14 Futuros incertos
15 Ignorando o passado
Conclusão: o novo conhecimento e a nova ignorância
Peter Burke faz deste um livro daqueles que não nos deixa do mesmo tamanho intelectual ao seu término. Sua leitura conduz a verbos como aprender, ampliar, questionar. Os exemplos históricos são, ao mesmo tempo, informações, advertências e material para reflexão.
A primeira parte se responsabiliza por, didaticamente, conduzir o leitor pela mão para fazê-lo vislumbrar os campos vastos da ignorância e das intenções de mantê-la viva e acesa para disso tirar proveito. É um painel amplo e comprovado de que a ignorância não é somente desconhecer fatos e procedimentos em áreas do saber humano. Ela é, acima de tudo, um instrumento ideológico e um recurso de resultado quase seguro para reduzir o humano em nós.
A segunda parte, mais dolorida para a leitura e conhecimento, mostra, com minúcias, fotos e ampla bibliografia, o porquê de catástrofes que se abateram sobre povos e civilizações, bem como abre um amplo espectro de perguntas a respeito do que poderá ser o futuro à nossa frente. E até mesmo o quanto esse futuro pode ser retrógrado.
O Brasil está presente em vários momentos do livro e quase nunca com sua face “risonha e franca”. Nada de futebol, carnaval e praias deslumbrantes.
Também não estão no livro apenas fatos de um passado milenar. Até a pandemia de SARS Covid 19 estende seu manto maléfico na forma do negacionismo da ciência.
Evitando intencionalmente dar um spoiler da obra, estas poucas palavras são antes um convite para a leitura, um convite para refletir e lutar nas hostes daqueles que, com ou sem diploma, educam, combatem por vezes com poucos recursos e forças a ignorância.
Sugestão de leitura:
Peter Burke. Ignorância: uma história global. Tradução Rodrigo Seabra. São Paulo: Vestígio, 2023.
Assim como há temporada de pesca da tainha, do festival de cinema francês, das feiras de livro e dos eventos culturais e literários de Parati, existe a temporada dos resultados de pesquisas. Geralmente eles são divulgados ao final do ano, para que nós, não entrevistados e curiosos, tenhamos a oportunidade de ficar estarrecidos e desanimados, prontos a pensar no Ano Novo como um ano de redenção. “Nada será como antes, amanhã” vem lá do streaming a voz de Milton Nascimento, na parceria com Ronaldo Bastos.
A grita dos leitores interessados nos assuntos se junta à dos jornalistas em suas notícias diárias, efêmeras como as chuvas de verão. Amedrontam e passam. Enquanto durar a maciez do pãonosso do noticiário de tododia, nos horrorizamos e esquecemos senilmente em 48 horas.
Aproveitando que dois pães acabaram de sair do forno, vou montar um petisco com uma lâmina fina de cada um. Comida para o cérebro a ser digerida por estômagos fortes, daqueles de quem passa fome todos os dias e come pão com pedra, desde que em lascas translúcidas.
O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes – PISA divulgado há menos de três dias reafirma o que já se sabe desde o ano 2000: em leitura, ciências e matemática, os estudantes brasileiros de 15 anos colocam o Brasil e seu sistema de educação na zona de rebaixamento, pesquisa após pesquisa. As alterações de uma pesquisa para a outra são tão pequenas que é como o salário mínimo: sobram R$10 reais em um mês, no seguinte faltam R$30 reais e, noves fora, falta nota no final da formação escolar, assim como faltam recursos financeiros em cada balanço anual do trabalhador.
Não basta saber que em leitura, 66% dos alunos brasileiros mal conseguem entender um texto de 10 páginas – limite máximo. Este dado levado a sério poderia colaborar com o reflorestamento da Amazônia: um decreto poderia estabelecer que no Brasil somente fossem editados livros com no máximo 10 páginas para serem utilizados nas escolas. Reunindo com a pouca ou nenhuma escrita, os cadernos teriam minguadas 10 páginas também. Seria a contribuição brasileira para a crise climática.
Talvez nem esta diminuição proteja nossos alunos porque entre os alunos que leram textos de no máximo uma página, só 6% atingiram o patamar 3 na média geral do PISA, que é 6 no nível máximo.
Em matemática, bicho-papão da escola, segundo o jornal Folha de São Paulo, 73% dos alunos brasileiros de 15 anos não sabem entre outros conhecimentos:
“resolver problemas com porcentagem, frações e números decimais;
resolver tarefas que envolvam questões do cotidiano, sem que o cálculo necessário seja apresentado no enunciado do problema;
elaborar estratégias de solução, incluindo as que exigem tomada de decisão sequencial ou flexibilidade na compreensão de conceitos familiares; (…)
resolver tarefas que exigem a realização de vários cálculos diferentes, mas rotineiros, que não estão todos claramente definidos no enunciado do problema; (…)
interpretar e usar representações baseadas em diferentes fontes de informação e raciocinar diretamente a partir delas, incluindo tomada de decisão condicional usando uma tabela de duas vias.” (Folha de São Paulo, 6dez2023)
Se os referidos alunos foram entregues pelos pais às escolas desde a educação infantil, podem ter em sua biografia 15 anos de idas diárias à escola. Esse cálculo, transformado em tempos de aula, subjugou esses adolescentes a milhares de horas que não resultaram em aprendizado.
Mais lamentável é saber que quase nunca são os alunos os únicos responsáveis por sua desaprendizagem. A sociedade em sua configuração global, a família e os profissionais da educação se digladiam em acusações mútuas, enquanto o Titanic da educação submerge ao som da orquestra desafinada de uma ignorância generalizada.
Ler sem entender, ler sem se estender para além do mínimo dos mínimos, calcular sem saber usar o raciocínio fora de esquemas abstratos, matemática ilusória e de uso cerebral restrito não são assuntos extraordinários, mágicos, escalofobéticos e esotéricos. Fazem parte intrínseca de um país obsceno, que veste os trajes de discursos de palanque e não consegue esconder a nudez de um sistema que aleija e queima intelectualmente os cérebros que construiriam um país melhor. E elimina a esperança de que o gigante, adormecido a golpes de ignorância, acorde.
Eu falava em duas lâminas: uma a do PISA. A outra, mais fina, mais genérica, igualmente dolorosa é a pesquisa realizada pela Nielson Book Data, a pedido da Câmara Brasileira do Livro, que quantificou os números relativos à compra de livros no Brasil: 84% dos brasileiros não compram livros. Nem um. Nem unzinho.
E nem frequentam bibliotecas, fontes de livros em formato de empréstimo.
Sem livros e sem biblioteca. Um país anterior à chegada da família de D. Maria, a Rainha Louca em 1808. Mesmo que já circulassem alguns livros, importados da Europa, mas que ficavam em acervos individuais, tão restritos, que eram cobiçados até pelos inventários e herdeiros.
Hoje que estão disseminados, popularizados, acessíveis, inumeráveis, são desprezados. Melhor pensando: nem o período anterior a 1808 se compara ao deserto de livros de hoje. Algumas bibliotecas de fancaria, reveladas pelas lives da pandemia, são bem o retrato dos livros no Brasil. Servem para simular status intelectual. Não para serem lidos. Uma fantasia de carnaval, um pênalti simulado no futebol, a esquálida imagem da mulher romântica leitora em um pedaço de jornal que embrulha o peixe do almoço.
Talvez o gigante nem queira acordar em um cenário tão depressivo.