Ex-pesos pesados ou A cultura vai aonde o povo está

Marta Morais da Costa

A professora Liana Leão postou uma mensagem no whatsapp no dia 24 de janeiro de 2024 reproduzindo a notícia saída no jornal com a seguinte manchete: “Busto de Nelson Rodrigues é levado do cemitério”. Seria irônico, se não fosse trágico.

Do mesmo Cemitério de S. João Batista em novembro de 2023 roubaram a estátua fúnebre de Cláudio de Sousa, outro dramaturgo, autor de “Flores de sombra”, fundador e um dos presidentes da Academia Brasileira de Letras.

O busto de Nelson Rodrigues pesava apenas 120 quilos e a imagem de Cláudio, mais de cem quilos. O teatro pesa muito.

Aliás, os ladrões devem ter, além de outras qualidades técnicas, uma boa capacidade de leitura: dramaturgo que escreva peças denominadas “A falecida”, “Viúva, porém honesta”, “Senhora dos Afogados” e um livro de contos “A coroa de orquídeas” deve estar pedindo para que os ladrões entrem no cemitério na ex-calada da noite (hoje todas as noites são do balacobaco) e satisfaçam a morbidez do escritor levando-lhe o busto de alto peso (o preço vai embutido) para aliviar seu – do Nelson Rodrigues – espírito mórbido.

Refiro-me aos títulos, porque, tenho absoluta certeza, os larápios não leram uma linha sequer da obra do autor. São os leitores que inferem dos títulos não apenas o enredo, mas a vida e a visão de mundo do escritor. Se tivessem lido algumas das obras do dramaturgo, conheceriam uma morbidez mais complexa, que ultrapassa a carne rota e poeirenta dos cemitérios e invade a alma de perversos e criminosos homens bárbaros. Mulheres inclusas.

Ao pó mais abjeto voltarão esses que desacreditam da arte, inútil em sua perquirição das almas, mas acreditam no vigor da alma bronzeada de míseros reais dos ferros-velhos, úteis para outros enlevos, estes, sim, mortais.

Cláudio de Sousa não teve melhor sorte. Começou sua carreira de dramaturgo escrevendo “Mata-a ou ela te matará” em 1896. E selou a sorte de sua imagem póstera mais de um século depois. Um título desses conduz mesmo ao cemitério! Escreveu um ensaio biográfico, “Os últimos dias de Stefan Zweig”, e agora, deveria voltar para escrever sua autobiografia póstera depois de mais uma morte simbólica na ladroagem da imagem de bronze de uma centena de quilos.

No entanto, diga-se a bem da verdade, Cláudio de Sousa fez e faz rir na maioria de suas dezenas de peças teatrais e em seus relatos e ensaios. E em “Flores de sombra” foi de uma delicadeza poética fascinante ao escrever sobre os infinitos enredos sutis do amor. Tivessem os ladrões lido suas obras entenderiam melhor o espírito galhofeiro dos cariocas e suas infinitas tristezas escondidas nas máscaras do carnaval e no exibicionismo carnal – futuro pó –  das praias.

O desaparecimento (e quem sabe, o derretimento) dessas esculturas de dois intelectuais brasileiros de destaque seja o retrato volátil e efêmero de uma desgraça brasileira da atualidade: o desprezo dos vivos pela história cultural e o menosprezo dos vivos com qualquer elemento, componente e/ou assunto que lembre de longe um palavrão dos mais reprováveis: cultura.

R.I.P.

155

Foto por Pixabay em Pexels.com

Marta Morais da Costa

 

155 gramas. Em dez dias! Já comecei uma das minhas eternas promessas de Ano Novo.

Cada subida na balança (equivalentes a um degrau médio) implica a perda de 0,0012 calorias. Passo o dia subindo, enraivecendo, me deprimindo e descendo da balança. Hoje, já perdi nela exatas 0,08 calorias.

Li recentemente no jornal (a leitura consumiu 0, 000002 calorias) que mais vale uma dieta com alimentos equilibrados e com qualidades nutritivas do que a contagem de calorias/dia. Sou fã número 1 da matemática – o que não me impediu de trabalhar a vida toda com literatura, só para contrariar os que dizem que preferem o curso de Letras porque detestam Matemática. Pobrezinhos! Ops, isto é preconceito? Se for, apaguem e substituam por “otários”. Dizia eu de minha preferência pelo conhecimento dos números e de seus raciocínios sofisticados. Portanto, vou continuar contando calorias, c.q.d.

Quando adolescente pensava que o mistério mais misterioso do mundo estava contido na sigla c.q.d. Naquele tempo heroico, c.q.d. significava “como queríamos demonstrar”. Nesses tempos  audazes,  eu me julgava uma matemática do porte de Descartes, Euclides e Poincaré quando usava esse verbo na primeira pessoa do plural. Totalmente incluída.

E olha que naquele tempo não entravam em sala de aula calculadoras nem o Google e muito menos a IA!!! Era tudo no célebro (sic), na ponta do lápis e no cuspe da borracha!

Meu professor de Matemática, fumante inveterado em sala de aula, vestido à moda de o-que- estiver-à-mão-eu-visto, meio desligado da vida real (depois dizem que isso acontece só com poetas), mas um bamba com equações de todos os graus, inclusive os da crise climática atual. Amável no trato docente e satúrnico na avaliação das provas. Temido e execrado por 98% das alunas. Um grande professor grande.

Aprendi com ele e carreguei pelo resto da vida: não sou capaz de ajudar a resolver a “Equação diofantina x³+y³+z³=k”, mas surpreendo comerciantes, balconistas e vendedores de seguros, e até gerentes de banco, porque uso a cabeça para resolver porcentagens, as quatro operações, frações e, se duvidar, até medidas de cortinas e terrenos. Só não consigo c.q.d. porque os professores ganham menos do que os juízes e os militares.

Meu médico endocrinologista estabeleceu, de forma descrente, o quanto eu preciso consumir de calorias diárias para perder 500 gramas ao mês. Dobrei a aposta e consegui, em longos 30 dias, perder 465 gramas! Calculo que no andar dessa carroça eu consiga celebrar meus cem anos pesando mais do que pesava no ano passado! Vou ficar devendo dietas e cálculos retumbantes para a próxima encarnação…

Por essa enrolação toda, quem me lê sabe que lá vem decisão existencial, daquelas que mudam o mundo e meu entorno. É isso mesmo: abdiquei de luxo e riqueza, abdiquei de joias e viagens, renunciei aos restaurantes estrelados Michelin, às churrascarias de rodízio pantagruélico, às confeitarias mais badaladas, aos menus de chefs cinco estrelas, às espigas de milho na praia e aos quilos de pinhão assado na chapa no fogão à lenha da minha avó (herança que minha irmã conserva e engrandece). Mas não renuncio à minha balança algoz: será a minha cota de contribuição com a purgação dos pecados do mundo.

Começando pelo maior de todos, a gula, que me adotou e tem me mimado ao longo de décadas. Afinal, ela me ama e me faz companhia. Na carência de bons sentimentos na crise humanitária atual, não dá pra desprezar um amor assim.

Neste novo ano, iremos as três – a gula, a balança e eu – carnavalizar 2024, enquanto as pernas e os pés aguentarem e o rebolado não acabar com os quadris.

Evoé, meu povo!