Chaves

Marta Morais da Costa

Foto por George Becker em Pexels.com

Depositou o chaveiro sobre a mesa. Não porque fosse deixá-lo à vista para não perder. Não porque fosse um peso a menos no bolso. Também não para demonstrar propriedades a que pudesse acessar diretamente. Talvez para demostrar a ela sua condição de proprietário, de posses garantidoras do futuro, de acesso a muitos lugares todos seus ou sob sua responsabilidade. Duas chaves podem abrir poucas portas: dezenas delas abrem portas de respeitabilidade e poder.

Distraidamente ela passeou os olhos sobre o molho de chaves. Fixou-se no chaveiro, uma gasta tira de couro com argolas, que reuniam diferentes tamanhos e formas de chaves. Os olhos deslizaram do molho para a mesa, em imbuia escura e aparentemente sólida. Viajaram até as paredes camufladas por um simples papel colorido lembrando flores impressionistas.

– Qual é sua resposta? –  indagou com aparente calma e disfarçada curiosidade.

– Preciso responder agora? – ela retornou com dissimulada ingenuidade.

– Sim, precisa. Dependo dela para decidir meu futuro.

– Se for positiva?

– Inicio os preparativos.

– Se for negativa?

– Sairei de sua vida.

– E um talvez?

– Certamente não se aplica à minha pergunta.

– Então, dois minutos mais. Por favor.

Num aparente gesto descuidado, ele bateu delicadamente com os dedos no molho de chaves e as deixou mais visíveis para ela. Sobressaíam as chaves novas, brilhantes, maiores. As pequenas e coloridas, montavam o cenário para as protagonistas. O tempo escorreu por entre os interstícios do chaveiro.

– E então?

– Bem, sabe… pensando bem… minha resposta é não.

– Tem certeza?

– Absoluta.

– Lamento. Muito.

Juntou o chaveiro, as chaves tilintaram em despedida, a escorrer lágrimas de metal. Sumiram no bolso e ele sumiu na esquina, apagando-se do cenário.

Ela continuou sentada à mesa, semblante decidido, olhos secos e fixos em uma das flores do papel de parede. Sem portas nem chaves. Apenas a luz filtrada pela janela aberta, que não precisa de chaves. Mas que não dispensa a luz e a lua.

No sítio do Picapau Amarelo, os vingadores perseguem o menino marrom por causa do avesso da pele

Marta Morais da Costa

A literatura é avassaladora. Em sua natureza e na produtividade. A força invasiva no pensamento do leitor – para a mudança e para a permanência – da natureza própria da literatura e a reprodução incontrolável de escritos, livros e formas de transmissão. São aspectos que recebem a atenção dos estudiosos e escritores, e, acima de tudo, se tornam objeto de discursos extremos e delirantes.

 

 

Freio de mão e pé no chão pode ser uma receita para dias de turbulência, como os recentes. Não se trata de jogar na vala geral da polarização: a causa é mais complexa.

A polarização é resultado e pode dispensar o conhecimento. Entra em ação a “ignorância artificial”, assunto tratado com inteligência e alta qualidade textual por Eugênio Bucci em sua recente coluna no jornal “O Estado de São Paulo” (https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/sobre-a-ignorancia-artificial/), essa rede de ideias pré-formatadas e empurradas goela abaixo de gentes crédulas, de boa e má-fé.

Faz parte do cardápio dessa ignorância artificial os recentes casos de censura de livros, acentuadamente os de literatura infantil. O perigo de atribuir a personagens (afinal, seres imaginados em um mundo de invenção) que não são o vizinho da direita, o irmão do dono da casa da esquerda, o pedestre que atravessa a rua, a mulher no banco de espera do ônibus ou a colega de trabalho.

As narrativas passaram a ser consideradas manuais de comportamento, menus de atitudes, publicidade de valores morais e por aí afora. Desenquadram-se de uma cronologia histórica, viram textos escritos neste momento e com personagens atuais.

 

Nunca objetos de compartilhamento de opiniões diferentes, ouvidas e respeitadas de hoje e do tempo de seu autor. A opinião já nasce vestida em armadura e armada até os dentes. Ninguém contextualiza na história da literatura. A narrativa ou o poema se transforma, na interpretação falsamente crítica e intencionalmente tendenciosa, em uma bula de remédio para as necessidades cotidianas dos leitores, como resolver conflitos familiares, exemplificar o que é bulling, disfarçar a depressão, consolar da morte do animal de estimação. Literatura é antes de tudo arte e invenção. Textos voltados à didática da vida escanteiam a literatura e privilegiam sua utilidade prática.

A violência da personagem, que, na narrativa infantil, via de regra, termina por ser condenada e penalizada, passa a ser entendida como uma lição comportamental, ou seja, uma ordem: faça assim ou imite a personagem, leitor ingênuo!

Quem faz uma reflexão sobre a sociedade violenta e de valores hipócritas? Pronto, está declarada guerra ao texto provocador. Melhor censurar a literatura (essa libertina que deseduca) do que trabalhar em prol da compreensão do problema em suas dimensões diversificadas e na adoção de atitudes que o solucionem.

Falta a esses censores deseducados um enfrentamento de seus medos que a literatura vem desvendar. Quanto do medo adulto se manifesta nos pedidos de retirada de livros de literatura das estantes (tão raras e pobres) das bibliotecas escolares? Quanto de má pedagogia existe que silencia sobre a censura ou esquece seu papel de favorecer a compreensão da história e da vida, latente no texto censurado? Quanto de jornalismo sensacionalista está nas manchetes que anunciam mais um livro censurado, sem que trate com a devida inteligência a natureza do texto literário e as questões de interpretação? Lembrar que a interpretação resulta sempre de um histórico de leitura e não de ideias/valores projetados desrespeitosamente sobre o texto.

 Reconheço como é meritória a preocupação dos pais com a formação psíquica e emocional de seus filhos. Reconheço como a escolha de livros é, por vezes, resultado de gentes que não têm formação adequada para realizá-la. Reconheço que existem equívocos na mediação da leitura literária (por presunção, prepotência ou desconhecimento dos mediadores: exceções à parte). Reconheço que há muito livro ruim circulando como se fosse literatura de qualidade humana e estética. Reconheço que existem erros no tratamento e na adequação de livros a seus leitores mirins. Mas me pergunto: o que fazem os atores/agentes desses equívocos? Dialogam, trocam argumentos, propõem soluções? Não. É mais fácil censurar. Propostas de cadeia para o livro e não de livros em cadeia para desenvolver o pensamento e a interlocução!

Mas não são apenas os leitores que desaparecem a cada pesquisa sobre o status da leitura no Brasil. Somem leitores qualificados e aparecem os profetas do caos. Saem a beleza e a força da literatura e passam a vigorar os estatutos dos medos e o obscurantismo.

Proibir atiça o desejo. Talvez seja uma boa propaganda para leitores curiosos.

Enfim, não é apenas a educação institucionalizada que vai mal…

Desapegos

Marta Morais da Costa

A palavra apego, embora de origem latina pela forma verbal adpegare, tem sido uma constante no léxico do idioma falado no Brasil. Não por sua versão positiva: apego como sentimento de afeição, de simpatia, de dedicação e estima. Mas especialmente por sua forma negativa, dita e escrita em forma afirmativa, quando não imperativa: desapego e desapegue.

Em sua versão recente é uma palavra tangencial de livre-se, livramento, fique mais leve, passe adiante. E aí os objetos diretos da frase ou do complemento nominal (desapego de…) podem estar contidos nos mais diversos campos semânticos: coisas, pessoas, sentimentos, ideias.

Desapegue de suas roupas sem uso, desapegue dos sentimentos frustrantes, desapegue de pessoas pessimistas ou fofoqueiras e até o extravagante e abusado desapegue dos livros que já leu, que ainda não leu, que jamais lerá.

É um tal de distribuir, dividir, compartilhar, livrar-se do que foi atado e que compõe a base sólida e segura de sua vida, para lançar-se a novas bases a serem, por sua vez e futuramente, desapegadas.

Para algumas pessoas desapegar-se é apenas trocar os móveis e tapetes, livrar-se dos eletrodomésticos antiquados (sem timer nem lâmpadas led), colocar em outras mãos tudo aquilo que um dia foi uma sinalização, uma identificação e a memória pessoal.

Desapegar é um ato heroico e um grito de liberdade. Em termos. Cortar laços, representados por objetos e pessoas, não é (ou não deveria ser) uma atitude inócua, irresponsável, desestruturante. Um lançar o passado na bacia das almas, apagar as provas do vivido, esquecer os exemplos de um tempo, talvez mais feliz.

Desapegue, dizem tantos: reconheça que eram coisas e pessoas efêmeras em sua vida, trocados que a atualidade da abastança despreza e destrói. Eram fúteis, vaidades tolas, pecados a serem escondidos. Desapegue rapidamente, antes que a hesitação habite seu desejo ou sua obediência. Lance longe, encaixote e envie sem remetente, cubra, embrulhe, despache. Sem remorsos, vire as costas ao que estava e não é mais, abra asas de liberdade e voe para o novo, o diferente, o que não era e passa a conviver com você.

Assim, tendo a alma leve e o passo rápido, entre em um novo mundo de consumo e povoe sua casa, sua vida e seus afetos como um renascer. Isso tudo não deixa de ser um apelo imantado, irrecusável, embriagador.

Algo como a água de uma fonte de juventude e um eldorado existencial.

Coragem: deixe os vinis rodarem ladeira abaixo, ponha no freezer do esquecimento os presentes de casamento, as lembranças de viagens, os desenhos dos filhos-crianças, os livros que guardam pó e peso nas estantes, as imagens dos amigos da escola, da formatura emocionante, do primeiro beijo, ah, e os documentos com mais de cinco anos de emissão!

Crie um marco zero em sua caminhada, alivie seu coração dos afetos do bem, do remorso e da culpa. Ponha tudo em uma caixa bem decorada, feche com fitas e enderece para uma rua ladrilhada onde sua vida passou.

E voe mais leve e mais vazio.

 

Foto por Mauro Torres V em Pexels.com