Marta Morais da Costa
A literatura é avassaladora. Em sua natureza e na produtividade. A força invasiva no pensamento do leitor – para a mudança e para a permanência – da natureza própria da literatura e a reprodução incontrolável de escritos, livros e formas de transmissão. São aspectos que recebem a atenção dos estudiosos e escritores, e, acima de tudo, se tornam objeto de discursos extremos e delirantes.

Freio de mão e pé no chão pode ser uma receita para dias de turbulência, como os recentes. Não se trata de jogar na vala geral da polarização: a causa é mais complexa.
A polarização é resultado e pode dispensar o conhecimento. Entra em ação a “ignorância artificial”, assunto tratado com inteligência e alta qualidade textual por Eugênio Bucci em sua recente coluna no jornal “O Estado de São Paulo” (https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/sobre-a-ignorancia-artificial/), essa rede de ideias pré-formatadas e empurradas goela abaixo de gentes crédulas, de boa e má-fé.
Faz parte do cardápio dessa ignorância artificial os recentes casos de censura de livros, acentuadamente os de literatura infantil. O perigo de atribuir a personagens (afinal, seres imaginados em um mundo de invenção) que não são o vizinho da direita, o irmão do dono da casa da esquerda, o pedestre que atravessa a rua, a mulher no banco de espera do ônibus ou a colega de trabalho.
As narrativas passaram a ser consideradas manuais de comportamento, menus de atitudes, publicidade de valores morais e por aí afora. Desenquadram-se de uma cronologia histórica, viram textos escritos neste momento e com personagens atuais.

Nunca objetos de compartilhamento de opiniões diferentes, ouvidas e respeitadas de hoje e do tempo de seu autor. A opinião já nasce vestida em armadura e armada até os dentes. Ninguém contextualiza na história da literatura. A narrativa ou o poema se transforma, na interpretação falsamente crítica e intencionalmente tendenciosa, em uma bula de remédio para as necessidades cotidianas dos leitores, como resolver conflitos familiares, exemplificar o que é bulling, disfarçar a depressão, consolar da morte do animal de estimação. Literatura é antes de tudo arte e invenção. Textos voltados à didática da vida escanteiam a literatura e privilegiam sua utilidade prática.
A violência da personagem, que, na narrativa infantil, via de regra, termina por ser condenada e penalizada, passa a ser entendida como uma lição comportamental, ou seja, uma ordem: faça assim ou imite a personagem, leitor ingênuo!
Quem faz uma reflexão sobre a sociedade violenta e de valores hipócritas? Pronto, está declarada guerra ao texto provocador. Melhor censurar a literatura (essa libertina que deseduca) do que trabalhar em prol da compreensão do problema em suas dimensões diversificadas e na adoção de atitudes que o solucionem.
Falta a esses censores deseducados um enfrentamento de seus medos que a literatura vem desvendar. Quanto do medo adulto se manifesta nos pedidos de retirada de livros de literatura das estantes (tão raras e pobres) das bibliotecas escolares? Quanto de má pedagogia existe que silencia sobre a censura ou esquece seu papel de favorecer a compreensão da história e da vida, latente no texto censurado? Quanto de jornalismo sensacionalista está nas manchetes que anunciam mais um livro censurado, sem que trate com a devida inteligência a natureza do texto literário e as questões de interpretação? Lembrar que a interpretação resulta sempre de um histórico de leitura e não de ideias/valores projetados desrespeitosamente sobre o texto.
Reconheço como é meritória a preocupação dos pais com a formação psíquica e emocional de seus filhos. Reconheço como a escolha de livros é, por vezes, resultado de gentes que não têm formação adequada para realizá-la. Reconheço que existem equívocos na mediação da leitura literária (por presunção, prepotência ou desconhecimento dos mediadores: exceções à parte). Reconheço que há muito livro ruim circulando como se fosse literatura de qualidade humana e estética. Reconheço que existem erros no tratamento e na adequação de livros a seus leitores mirins. Mas me pergunto: o que fazem os atores/agentes desses equívocos? Dialogam, trocam argumentos, propõem soluções? Não. É mais fácil censurar. Propostas de cadeia para o livro e não de livros em cadeia para desenvolver o pensamento e a interlocução!
Mas não são apenas os leitores que desaparecem a cada pesquisa sobre o status da leitura no Brasil. Somem leitores qualificados e aparecem os profetas do caos. Saem a beleza e a força da literatura e passam a vigorar os estatutos dos medos e o obscurantismo.
Proibir atiça o desejo. Talvez seja uma boa propaganda para leitores curiosos.
Enfim, não é apenas a educação institucionalizada que vai mal…