Atenção, urgência: alerta!

Perdemos um Líbano de leitores

PublishNews, Francis Manzoni*, 27/11/2024

Em artigo, Francis Manzoni comenta os dados da Pesquisa Retratos da Leitura e aponta para a conjuntura de tendências que têm influenciado no resultado do estudo

Como digerir a perda de 7 milhões de leitores brasileiros nos últimos 5 anos? De início, fui ao ChatGPT perguntar quais países têm esse número de população, por ser mais ágil que o Google, e me vi assessorado por um poderoso instrumento de informação. Sim, Líbano, Sérvia e Paraguai têm aproximadamente 7 milhões de habitantes. É como se o Paraguai inteiro não tivesse mais leitores.

A IA das redes sociais vem tragando, em poucos anos, jovens e tradicionais habitués da leitura para pontos de atenção com predominância de imagens e símbolos. Foram necessários 5 séculos para tornar a Europa um continente de leitores, e o Brasil, que nunca chegou a sê-lo, agora parece distanciar-se desse perfil. Aliás, é como perfis e não como leitores que nos ajustamos melhor, como consumidores mapeados por algoritmos na Web. Antes que a falta de intimidade com a ironia cause ruído, isso é uma crítica.

Como editor no setor livreiro, procuro elaborar alguma resposta útil ao triste cenário divulgado na Pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto Pró-Livro neste 19 de novembro de 2024.

Ocorreu-me que o resultado das eleições nos EUA foi relacionado por especialistas à censura de obras literárias na maior parte do país, que a extrema direita tem aumentado seus representantes nos governos da Alemanha, capital econômica da Europa, e da América Latina, em que o Brasil é um dos casos mais emblemáticos.

Essa conjuntura de tendência autoritária coloca em risco as democracias, os sistemas de proteção ambiental e contenção das mudanças climáticas, e os direitos humanos, especialmente entre populações menos favorecidas.

Mas o que a leitura tem a ver com isso? Em poucas palavras: cidadania, direitos civis, proteção social, liberdade, equidade. Não é exagero lembrar que todas as social media e seus sistemas de informação são controlados por grandes acionistas, um número reduzido de empresários com alta concentração de renda e pouco compromisso com o futuro do planeta.

No período da Revolução Industrial, entre os séculos XVIII e XIX, existiram pessoas que imaginaram sociedades mais justas e igualitárias diante das condições de trabalho difíceis da época. Foram chamados de “socialistas utópicos”: Henri de Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Gosto de pensar neles como pessoas altruístas.

Hoje em dia, os cursos de administração propagam a Sociedade 5.0. O conceito, apresentado em 2016 pelo governo japonês, promete uma sociedade em que as tecnologias digitais, como a IA, a robótica e a Internet das Coisas, devem melhorar a vida de todas as pessoas e resolver os problemas sociais. Acho esse projeto tão utópico quanto o dos socialistas. Na verdade, ao longo da História, sempre há modelos de organização e controle do mundo em disputa, mas parece que chegamos a um limiar perigoso, com as grandes potências nucleares dispostas a usar sua força, e poucos estadistas de peso voltados para a paz mundial, o combate à fome e ao equilíbrio socioeconômico entre as nações. Além disso, temos sido pautados e manipulados pelas grandes empresas que controlam as redes sociais de informação.

Voltando ao Brasil, apenas 26% dizem que gostam muito de ler e 43% gostam só um pouco. Estão todos conectados aos algoritmos, ao lado de 46% que dizem não ter tempo para livros. Perdemos um Líbano, e, em três ou cinco anos, podemos perder uma Sérvia, até nos perdermos de nós mesmos.


*Francis Manzoni é pós-graduado em edição de livros, mestre em história pela Unesp e doutor em história pela mesma área na PUC-SP, com passagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. Atualmente é aluno do MBA em Gestão Estratégica de Pessoas na FGV. Atuou como consultor da área de literatura do Sesc São Paulo e, neste momento, é gerente adjunto das Edições Sesc. É autor do livro ‘Mercados e feiras livres em São Paulo: 1867 – 1933’ (Sesc, 2019) e ‘A criação do Centro Cultural São Paulo’ (Alameda, 2022).

Literatura oral e cultura

Wolff, Fausto. A milésima segunda noite: história do mundo para sobreviventes. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 2005. p. 569-570.

“Como Paulo Rónai, amo histórias, principalmente as que me são contadas.  Sócrates só acreditava em cultura oral, pois era explícita e contava com o talento do narrador.  Achava que, uma vez escrita, ficaria à mercê de interpretações medíocres.  Felizmente Platão, pelo que parece, estava lá para tomar nota das palavras do mestre. 
Gosto de contar histórias e, geralmente, em aniversários de amigos, costumo fazer um discurso para marcar o acontecimento.  Infelizmente, este salutar hábito de contar histórias perdeu-se no Brasil.  O neoliberalismo fez com que as pessoas se afastassem umas das outras, elas não têm mais tempo para nada.  Ou estão atrás de um emprego, ou têm medo de perdê-lo.  Tornando-se proprietário, o homem tornou-se também escravo da sua propriedade e de tudo o que vem com ela.  Graças a isto e aos meios de comunicação, a sociedade imbecilizou-se a tal ponto que é incapaz de construir uma frase com mais de quinze palavras.  Até mesmo o nosso povo – de tão rica cultura – ficou bobo e suas discussões nos botequins que há alguns anos eu tanto apreciava e muito aprendia tornaram-se grosseiras, pobres, vulgares, grotesco reflexo da classe dominante.
Enquanto escrevia este livro, reli duas vezes As mil e uma noites, seus aforismos, pensamentos, preceitos, máximas, devaneios e desvarios.  São mais de quatro mil anos dentro de um livro.  São muitos os autores anônimos e cada um tem um estilo diverso, cada um nasceu num século diverso.  São histórias que vêm da China para o Egito, onde são adaptadas antes de viajarem para a Índia para depois acabarem no Japão ou no Camboja.  Todas louvam a vida que tanto maltratamos.
Hoje temos computadores, verdadeiros cinemas em casa, aparelhos de som com os quais Mozart não ousaria sonhar, aparelhos de TV, de rádio, aviões supersônicos, telefones celulares.  Só não temos o que dizer uns para os outros.  Só não sabemos mais fazer as pessoas sorrirem, chorarem, se comoverem com nosso talento.  Antes da invenção do trem, as famílias de conhecidos marcavam encontros através de cartas que levavam semanas para chegar: ‘Em setembro de 1779 eu e minha família sairemos de Londres para visitá-los em Amsterdã.  Esperamos chegar antes do Natal.’  No caminho, os viajantes descobriam novas flores, remédios, animais, enriqueciam o espírito.  Hoje os homens de negócios viajam do Hilton de Montevidéu para o Hilton de Nova Delhi em poucas horas e da paisagem nada mais conhecem do que os hotéis decorados pelos mesmos decoradores sem alma.
‘Um povo jovem como o nosso que tem sua cultura interrompida, roubada, está condenado a tornar-se um país de zumbis.  Onde estão nossa literatura, nosso teatro, nossa música, nosso esporte, nossa imprensa?  Onde está a nossa cultura que muito tem a ver com o verbo tradire (passar de uma geração para outra)?  Escravos do dinheiro, já nem sabemos nos divertir inteligentemente.  Pensem nisto: as canções de roda vicentinas (da época de Gil Vicente, como Teresinha de Jesus, Atirei um pau no gato, O cravo brigou com a rosa e centenas de outras) atravessaram o Atlântico e aqui foram adaptadas aos nossos costumes.  Essas histórias resistiram mais de quinhentos anos e foram destruídas por programas de televisão para pedófilos e crianças, como os da Xuxa e muitos outros.  Quando estive na Dinamarca há alguns meses, meu neto mais moço perguntou a minha filha: ‘O que é que o vovô faz?’  E ela: ‘Ele é um contador de histórias.’  Para que o menino entendesse, teve de dizer que trabalho na TV, o que não é verdade.  Desculpem a chateação, mas estou muito triste.”