Wolff, Fausto. A milésima segunda noite: história do mundo para sobreviventes. Rio de Janeiro, Bertrand do Brasil, 2005. p. 569-570.

“Como Paulo Rónai, amo histórias, principalmente as que me são contadas. Sócrates só acreditava em cultura oral, pois era explícita e contava com o talento do narrador. Achava que, uma vez escrita, ficaria à mercê de interpretações medíocres. Felizmente Platão, pelo que parece, estava lá para tomar nota das palavras do mestre.
Gosto de contar histórias e, geralmente, em aniversários de amigos, costumo fazer um discurso para marcar o acontecimento. Infelizmente, este salutar hábito de contar histórias perdeu-se no Brasil. O neoliberalismo fez com que as pessoas se afastassem umas das outras, elas não têm mais tempo para nada. Ou estão atrás de um emprego, ou têm medo de perdê-lo. Tornando-se proprietário, o homem tornou-se também escravo da sua propriedade e de tudo o que vem com ela. Graças a isto e aos meios de comunicação, a sociedade imbecilizou-se a tal ponto que é incapaz de construir uma frase com mais de quinze palavras. Até mesmo o nosso povo – de tão rica cultura – ficou bobo e suas discussões nos botequins que há alguns anos eu tanto apreciava e muito aprendia tornaram-se grosseiras, pobres, vulgares, grotesco reflexo da classe dominante.
Enquanto escrevia este livro, reli duas vezes As mil e uma noites, seus aforismos, pensamentos, preceitos, máximas, devaneios e desvarios. São mais de quatro mil anos dentro de um livro. São muitos os autores anônimos e cada um tem um estilo diverso, cada um nasceu num século diverso. São histórias que vêm da China para o Egito, onde são adaptadas antes de viajarem para a Índia para depois acabarem no Japão ou no Camboja. Todas louvam a vida que tanto maltratamos.
Hoje temos computadores, verdadeiros cinemas em casa, aparelhos de som com os quais Mozart não ousaria sonhar, aparelhos de TV, de rádio, aviões supersônicos, telefones celulares. Só não temos o que dizer uns para os outros. Só não sabemos mais fazer as pessoas sorrirem, chorarem, se comoverem com nosso talento. Antes da invenção do trem, as famílias de conhecidos marcavam encontros através de cartas que levavam semanas para chegar: ‘Em setembro de 1779 eu e minha família sairemos de Londres para visitá-los em Amsterdã. Esperamos chegar antes do Natal.’ No caminho, os viajantes descobriam novas flores, remédios, animais, enriqueciam o espírito. Hoje os homens de negócios viajam do Hilton de Montevidéu para o Hilton de Nova Delhi em poucas horas e da paisagem nada mais conhecem do que os hotéis decorados pelos mesmos decoradores sem alma.
‘Um povo jovem como o nosso que tem sua cultura interrompida, roubada, está condenado a tornar-se um país de zumbis. Onde estão nossa literatura, nosso teatro, nossa música, nosso esporte, nossa imprensa? Onde está a nossa cultura que muito tem a ver com o verbo tradire (passar de uma geração para outra)? Escravos do dinheiro, já nem sabemos nos divertir inteligentemente. Pensem nisto: as canções de roda vicentinas (da época de Gil Vicente, como Teresinha de Jesus, Atirei um pau no gato, O cravo brigou com a rosa e centenas de outras) atravessaram o Atlântico e aqui foram adaptadas aos nossos costumes. Essas histórias resistiram mais de quinhentos anos e foram destruídas por programas de televisão para pedófilos e crianças, como os da Xuxa e muitos outros. Quando estive na Dinamarca há alguns meses, meu neto mais moço perguntou a minha filha: ‘O que é que o vovô faz?’ E ela: ‘Ele é um contador de histórias.’ Para que o menino entendesse, teve de dizer que trabalho na TV, o que não é verdade. Desculpem a chateação, mas estou muito triste.”