Diálogos I

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Entrevista de Paulo Freire a Elias Fajardo em 1985.


EF- Fale um pouco de sua infância, do Recife em que nasceu.

PF – Há algum tempo, com profunda emoção, visitei a casa onde nasci. Pisei o chão em que me pus de pé, andei, corri, falei e aprendi a ler. O mesmo mundo que foi o meu primeiro mundo que se deu à minha compreensão pela leitura que dele fui fazendo. Lá, reencontrei algumas árvores da minha infância. Reconheci-as sem dificuldade. Quase abracei os grossos troncos, que eram os mesmos jovens troncos da minha infância. , Então uma saudade que costumo chamar de mansa ou de bem comportada, saindo do chão, das árvores, da casa, me envolveu cuidadosamente.

Na casa mediana em que nasci, no Recife, à sombra das árvores eu brincava e, em seus galhos mais dóceis à minha altura, eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores. A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço, o sítio de avencas de minha mãe, o quintal amplo, tudo isso foi meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei.

Os textos, as palavras, as letras daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; nas águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os textos, as palavras e as letras daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas nuvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos, na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas e jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos, na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada, o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura, na relação entre estas cores, no desenvolvimento e no seu gosto. Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolengar.

Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia arte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu não podia sequer suspeitar.

Até os meus sete anos, talvez, o bairro do Recife onde nasci era iluminado por lampiões que se perfilavam, com certa dignidade, pelas ruas. Eram lampiões elegantes que, aos cair da tarde, se “davam” à vara mágica de seus acendedores. Eu costumava acompanhar do portão de minha casa, de longe, a figura magra do acendedor de lampiões de minha rua, que vinha vindo, andar ritmado, vara iluminadora no ombro, de lampião a lampião, dando luz à rua. Uma luz precária, mais precária do que a que tínhamos dentro de casa. Uma luz muito mais tomada pelas sombras do que iluminadora delas. (p.18-19)

Me lembro das notes em que, envolvido no meu próprio medo, esperava que o tempo passasse, que a noite se fosse, que a madrugada semiclareada viesse chegando, trazendo com ela o canto dos passarinhos “amanhecedores”.

EF- O senhor é tão poético. Que ligação tem com a poesia?

PF- Adoro a poesia, gostaria de ser poeta, enquanto capaz de fazer o tratamento poético das palavras. Mas eu me acho poeta enquanto sou capaz apenas de sentir o pingo da neve, a flor abrindo; mas não sou possivelmente poeta enquanto capaz de dar forma ao sentido e ao sentimento do mundo.

EF- Eu discordo um pouco, porque uma pessoa que diz coisas como “no conhecer não se pode desprezar o adivinhar” é também um poeta.

PF – Inclusive, a poesia adivinha, não é?

FAJARDO, Elias. Paulo Freire: “Conhecer não é adivinhar, mas tem a ver com adivinhação.”

Revista do Brasil, RJ, ano2, nº 4, 1985, p.12-19.

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INFÂNCIA

          Carlos Drummond de Andrade

Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusóe,
Comprida história que não acaba mais.

No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
A ninar nos longes da senzala -- e nunca se esqueceu
Chamava para o café.
Café preto que nem a preta velha
Café gostoso
Café bom.

Minha mãe ficava sentada cosendo
Olhando pra mim:
-- Psiu... Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro... que fundo!

Lá longe meu pai campeava
No mato sem fim da fazenda.

E eu não sabia que minha história
Era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

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MUNDO PEQUENO I

                            Manoel de Barros

O mundo meu é pequeno, Senhor.
Tem um rio e um pouco de árvores.
Nossa casa foi feita de costas para o rio.
Formigas recortam roseiras da avó.
Nos fundos do quintal há um menino e suas latas maravilhosas.
Todas as coisas deste lugar já estão comprometidas com aves.
Aqui, se o horizonte enrubesce um pouco,
os besouros pensam que estão no incêndio.
Quando o rio está começando um peixe,
Ele me coisa.
Ele me rã.
Ele me árvore.
De tarde um velho tocará sua flauta para inverter os ocasos.

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MESTRES

              Marta Morais da Costa

Minhas árvores da infância em outros verdes
mais enverdecem nos versos dos mestres.

Minhas águas da infância, em ouro e peixes,
mais clareiam nos versos dos mestres.

Meus pássaros da infância em cores e voos
nos versos dos mestres melhor entoam.

A sequestrada casa da minha infância
libera-se nas imagens dessa poesia.



			
					

Sobre escrita e leitura #2

Marta Morais da Costa

“Um sábio disse um dia que o amor de uma mulher era como uma tabuleta envernizada de superfície virgem, na qual elas têm o hábito de depositar a memória. Apagando com um pouco de saliva o primeiro nome que escrevem, aquele que vem em seguida é escrito por cima. Semelhante a uma tabuleta branca é a alma das mulheres. Se hoje és tu que estás escrito, amanhã elas te apagarão. Não é preciso mais que um dia, meu senhor, pois o amor delas é feito de verniz, para que possam colocar Pedro lá onde estava escrito Juan.”

(Fala de Beltrão, personagem de “O Príncipe perfeito”, comédia de Lope de Vega (1562-1635)).

Em seus 73 anos de existência, Lope de Vega escreveu aproximadamente 2 000 peças de teatro, segundo seus biógrafos. Contemporâneo de Shakespeare (1564-1616) superou o dramaturgo inglês em idade, produção dramatúrgica e filhos. Lope de Vega era mulherengo , segundo os biógrafos, envolveu-se em alguns escândalos e procriou 15 filhos. Nessa matemática exagerada, o espanhol é um dos mais significativos autores teatrais da história ocidental. É dele uma as mais importantes peças de nossa cultura teatral: “La vida es sueño” (“A vida é sonho”), em que brilhantemente registrou para a posteridade uma das metáforas mais justas e belas a respeito da vida, ela é o sonho que o tempo alimenta e interrompe.

Deixando de lado esses dados biográficos, rápidos e lacunares, faço um pequeno comentário a respeito dessa fala de Beltrão, dirigida ao príncipe em tom de ensinamento: as mulheres são volúveis, tal qual a “piuma al vento”. Essa qualidade atravessou os séculos e continua a transitar por eles.

A relação é estabelecida pelo personagem no pentágono fechado e definitivo mulher-amor- tabuleta-escrita-memória. Definitivo ao menos para Beltrão. Escrever o nome do amado e apagar com a saliva tem um quê sensual e ao mesmo tempo mortal: da boca sai o esquecimento, o apagamento, na atualidade diz-se cancelamento. De onde saem a fala e os beijos, que dão vida ao amor, também é produzida a substância que o cancela. Do corpo de que partem as flechas de Eros também emanam as substâncias de Thanatos a matar o amor.

Mas a saliva é também curativa: permite que um novo amor possa nascer e ser registrado: Pedro substitui Juan na dança do afeto.

Mais grave, no entanto, é considerar que o escrito contém a memória da mulher, que se apaga voluvelmente. Uma mulher sem memória está fadada a perder sua história. Ou a permitir que quem a descreve a considere volúvel como “a pluma que o vento vai levando pelo ar”. Ai, os versos lindos da canção “Felicidade”, de Vinícius de Moraes, em “Orfeu negro”, um filme com Brasil e brasileiros, cantado e falado em português, ganhador do Oscar de filme estrangeiro em 1960, que foi contabilizado para o cinema francês, cujo diretor e cujos patrocinadores fizeram jus em levar para a França a estatueta dourada.

A mulher e a felicidade, plumas ao vento, talvez tenham adquirido novos contornos e outras qualidades ao longo da História. Mas a ideologia que representam não se mantém entre os limites dos séculos. E na interminável guerra dos sexos, não é raro encontrarmos beltrões a alertar outros homens sobre a facilidade com que as mulheres trocam pedros e joões.

Na dança das cadeiras amorosas, talvez hoje haja tabuletas, escritas e posteriormente apagadas com saliva, nas mãos de homens e mulheres de pouca fé e fidelidade.

Por isso, que o dia 8 de março bem próximo permita registros menos indeléveis nas tabuletas que constroem a história e a memória dos amores.

Alá-lá-ô

Marta Morais da Costa

“Alá-lá-ô, ô-ô-ô, ô-ô-ô / Mas que calor, ô-ô-ô, ô-ô-ô “

(marchinha de Haroldo Lobo e Nássara – 1941)

Dirão alguns: esta é de meu tempo!

Outros retrucarão: cara, não sabia que era tão antiga!

Outros, melancólicos: baile de Carnaval ou na rua sem essa marchinha não tem valor!

Alguns, surpresos: mas essa letra é muito atual!

Esclareço: não sei se pensavam na importância dos estados árabes ou na crise climática.

Só sei que cantei e pulei, animadíssima, em salões de velhos carnavais. Sem pensar em religião, petróleo ou desmatamento. Valia apenas o ritmo e o saracoteio. De vez em quando um siricotico: pisão no pé, confete nos olhos e na boca, cabelos entremeados de serpentinas, abuso alcoólico trazendo odores, gestos e olhares de alguns bebuns que, surpreendentemente, sumiam do salão, acompanhados por diretores e, ao lado, a turma do deixa-disso apaziguando pais, maridos e namorados.

De longe,  pais e tias a cuidar dos seus (principalmente das suas); afinal, Carnaval é para espíritos fortes e dispostos. Cansaço, nem pensar. Afinal havia o tempo de descanso dos músicos e a corrida para a toalete mais próxima. Na volta, goles de guaraná ou coca-cola: álcool nem pensar. Afinal, a alegria tinha um espaço natural e o esquecimento de problemas era do código comportamental aceito sem reclamação. Melhor ainda: festejar era parte das férias em estágio de conclusão.

O ano letivo começava em março. As férias eram de três meses corridos (com mais dias ou menos dias, dependendo do cidadão: estudou e passou: férias a partir de novembro.; vadiou ou se perdeu nos conhecimentos, novas provas, segunda época, férias a partir de janeiro). Mas passar de ano ou reprovar e ter que repetir a série escola não impedia o Alá-lá-ô.

E no salão democrático, bons e maus estudantes formavam o cordão carnavalesco que arregimentava pessoas, trazia as tias, insistia com os pais, esvaziava as mesas, cooptava os presentes e fazia serpentear os movimentos ao som das marchinhas pelos poucos espaços vazios de uma festa quase-familiar, onde Baco era amordaçado por uma liberação controlada e bem-posta.

Os pecados do lado de baixo do Equador eram tão comportados que o padre na confissão de quarta-feira de cinzas não passava penitências com mais de cinco Ave-Marias: quase todos os supostos bacantes pareciam fantasiados de anjos, meio decaídos, mas revitalizados pelos Alá-lá-ôs, “Saca-rolha”, “Ó Abre Alas”, “A canoa virou”, “Mamãe eu quero”, “Aurora”, “Jardineira”, “Pierrô apaixonado”, “Chiquita Bacana”. Letras que, cantadas, pareciam ser só ritmo e folia, sem sentido, nem correspondência com a realidade. Discurso politicamente correto? Censura moral? Que nada! Toca pular, fazer guerra de confetes, puxar cordão, gastar energias!

Afinal, na quarta-feira “sempre desce o pano” e as cinzas, marcando a testa em cruzes improvisadas, ajudavam a enterrar o Carnaval daquele ano, para que ressuscitasse em velhas e novas marchinhas no ano seguinte.

Só vim a conhecer o outro lado do Carnaval quando li Manuel Bandeira: “Epílogo”.

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando o acabei — a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade…
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura…
— O meu carnaval sem nenhuma alegria!…

Ah, mas esta é outra história!

Neste sábado de Carnaval, quero mais é cair em uma alegria efêmera, virar rainha de copas, sair de porta-estandarte, cantar as antigas modinhas e acreditar que, em algum tempo, o Carnaval foi apenas a passagem das férias para os estudos, da vida despreocupada da infância e da adolescência para um tempo de trabalho e de criação  que até hoje vive em mim.

Alá-lá-ô-ôôôôô.