Alá-lá-ô

Marta Morais da Costa

“Alá-lá-ô, ô-ô-ô, ô-ô-ô / Mas que calor, ô-ô-ô, ô-ô-ô “

(marchinha de Haroldo Lobo e Nássara – 1941)

Dirão alguns: esta é de meu tempo!

Outros retrucarão: cara, não sabia que era tão antiga!

Outros, melancólicos: baile de Carnaval ou na rua sem essa marchinha não tem valor!

Alguns, surpresos: mas essa letra é muito atual!

Esclareço: não sei se pensavam na importância dos estados árabes ou na crise climática.

Só sei que cantei e pulei, animadíssima, em salões de velhos carnavais. Sem pensar em religião, petróleo ou desmatamento. Valia apenas o ritmo e o saracoteio. De vez em quando um siricotico: pisão no pé, confete nos olhos e na boca, cabelos entremeados de serpentinas, abuso alcoólico trazendo odores, gestos e olhares de alguns bebuns que, surpreendentemente, sumiam do salão, acompanhados por diretores e, ao lado, a turma do deixa-disso apaziguando pais, maridos e namorados.

De longe,  pais e tias a cuidar dos seus (principalmente das suas); afinal, Carnaval é para espíritos fortes e dispostos. Cansaço, nem pensar. Afinal havia o tempo de descanso dos músicos e a corrida para a toalete mais próxima. Na volta, goles de guaraná ou coca-cola: álcool nem pensar. Afinal, a alegria tinha um espaço natural e o esquecimento de problemas era do código comportamental aceito sem reclamação. Melhor ainda: festejar era parte das férias em estágio de conclusão.

O ano letivo começava em março. As férias eram de três meses corridos (com mais dias ou menos dias, dependendo do cidadão: estudou e passou: férias a partir de novembro.; vadiou ou se perdeu nos conhecimentos, novas provas, segunda época, férias a partir de janeiro). Mas passar de ano ou reprovar e ter que repetir a série escola não impedia o Alá-lá-ô.

E no salão democrático, bons e maus estudantes formavam o cordão carnavalesco que arregimentava pessoas, trazia as tias, insistia com os pais, esvaziava as mesas, cooptava os presentes e fazia serpentear os movimentos ao som das marchinhas pelos poucos espaços vazios de uma festa quase-familiar, onde Baco era amordaçado por uma liberação controlada e bem-posta.

Os pecados do lado de baixo do Equador eram tão comportados que o padre na confissão de quarta-feira de cinzas não passava penitências com mais de cinco Ave-Marias: quase todos os supostos bacantes pareciam fantasiados de anjos, meio decaídos, mas revitalizados pelos Alá-lá-ôs, “Saca-rolha”, “Ó Abre Alas”, “A canoa virou”, “Mamãe eu quero”, “Aurora”, “Jardineira”, “Pierrô apaixonado”, “Chiquita Bacana”. Letras que, cantadas, pareciam ser só ritmo e folia, sem sentido, nem correspondência com a realidade. Discurso politicamente correto? Censura moral? Que nada! Toca pular, fazer guerra de confetes, puxar cordão, gastar energias!

Afinal, na quarta-feira “sempre desce o pano” e as cinzas, marcando a testa em cruzes improvisadas, ajudavam a enterrar o Carnaval daquele ano, para que ressuscitasse em velhas e novas marchinhas no ano seguinte.

Só vim a conhecer o outro lado do Carnaval quando li Manuel Bandeira: “Epílogo”.

Eu quis um dia, como Schumann, compor
Um carnaval todo subjetivo:
Um carnaval em que o só motivo
Fosse o meu próprio ser interior…

Quando o acabei — a diferença que havia!
O de Schumann é um poema cheio de amor,
E de frescura, e de mocidade…
E o meu tinha a morta mortacor
Da senilidade e da amargura…
— O meu carnaval sem nenhuma alegria!…

Ah, mas esta é outra história!

Neste sábado de Carnaval, quero mais é cair em uma alegria efêmera, virar rainha de copas, sair de porta-estandarte, cantar as antigas modinhas e acreditar que, em algum tempo, o Carnaval foi apenas a passagem das férias para os estudos, da vida despreocupada da infância e da adolescência para um tempo de trabalho e de criação  que até hoje vive em mim.

Alá-lá-ô-ôôôôô.

2 comentários sobre “Alá-lá-ô

  1. Avatar de helomam helomam

    Alá-lá-ô, ô-ô-ô, ô-ô-ô não é do meu tempo… Porém o carnaval não tem época, está sempre vivo, apenas muda os olhos, ele ainda é efêmero, mas as lembranças podem durar para sempre. Mas agora tudo que se vê são corações pulsando como bateria, no bloco da eterna esperança. Que venha mais um carnaval escondendo a tristeza atrás de máscaras coloridas, que num passe de magia transforma muita gente comum em reis e rainhas…

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    1. Belo comentário, Heloman! Acertou em cheio : não é de seu tempo, já cruzou as fronteiras dos calendários, está vivo até hoje. E as máscaras em sua alegria fixa escondem, e com frequência, rostos sérios e preocupados. A festa está só começando. As fantasias ainda esperam os toques finais. Grata por escrever. Apareça sempre!

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