Sobre escrita e leitura #2

Marta Morais da Costa

“Um sábio disse um dia que o amor de uma mulher era como uma tabuleta envernizada de superfície virgem, na qual elas têm o hábito de depositar a memória. Apagando com um pouco de saliva o primeiro nome que escrevem, aquele que vem em seguida é escrito por cima. Semelhante a uma tabuleta branca é a alma das mulheres. Se hoje és tu que estás escrito, amanhã elas te apagarão. Não é preciso mais que um dia, meu senhor, pois o amor delas é feito de verniz, para que possam colocar Pedro lá onde estava escrito Juan.”

(Fala de Beltrão, personagem de “O Príncipe perfeito”, comédia de Lope de Vega (1562-1635)).

Em seus 73 anos de existência, Lope de Vega escreveu aproximadamente 2 000 peças de teatro, segundo seus biógrafos. Contemporâneo de Shakespeare (1564-1616) superou o dramaturgo inglês em idade, produção dramatúrgica e filhos. Lope de Vega era mulherengo , segundo os biógrafos, envolveu-se em alguns escândalos e procriou 15 filhos. Nessa matemática exagerada, o espanhol é um dos mais significativos autores teatrais da história ocidental. É dele uma as mais importantes peças de nossa cultura teatral: “La vida es sueño” (“A vida é sonho”), em que brilhantemente registrou para a posteridade uma das metáforas mais justas e belas a respeito da vida, ela é o sonho que o tempo alimenta e interrompe.

Deixando de lado esses dados biográficos, rápidos e lacunares, faço um pequeno comentário a respeito dessa fala de Beltrão, dirigida ao príncipe em tom de ensinamento: as mulheres são volúveis, tal qual a “piuma al vento”. Essa qualidade atravessou os séculos e continua a transitar por eles.

A relação é estabelecida pelo personagem no pentágono fechado e definitivo mulher-amor- tabuleta-escrita-memória. Definitivo ao menos para Beltrão. Escrever o nome do amado e apagar com a saliva tem um quê sensual e ao mesmo tempo mortal: da boca sai o esquecimento, o apagamento, na atualidade diz-se cancelamento. De onde saem a fala e os beijos, que dão vida ao amor, também é produzida a substância que o cancela. Do corpo de que partem as flechas de Eros também emanam as substâncias de Thanatos a matar o amor.

Mas a saliva é também curativa: permite que um novo amor possa nascer e ser registrado: Pedro substitui Juan na dança do afeto.

Mais grave, no entanto, é considerar que o escrito contém a memória da mulher, que se apaga voluvelmente. Uma mulher sem memória está fadada a perder sua história. Ou a permitir que quem a descreve a considere volúvel como “a pluma que o vento vai levando pelo ar”. Ai, os versos lindos da canção “Felicidade”, de Vinícius de Moraes, em “Orfeu negro”, um filme com Brasil e brasileiros, cantado e falado em português, ganhador do Oscar de filme estrangeiro em 1960, que foi contabilizado para o cinema francês, cujo diretor e cujos patrocinadores fizeram jus em levar para a França a estatueta dourada.

A mulher e a felicidade, plumas ao vento, talvez tenham adquirido novos contornos e outras qualidades ao longo da História. Mas a ideologia que representam não se mantém entre os limites dos séculos. E na interminável guerra dos sexos, não é raro encontrarmos beltrões a alertar outros homens sobre a facilidade com que as mulheres trocam pedros e joões.

Na dança das cadeiras amorosas, talvez hoje haja tabuletas, escritas e posteriormente apagadas com saliva, nas mãos de homens e mulheres de pouca fé e fidelidade.

Por isso, que o dia 8 de março bem próximo permita registros menos indeléveis nas tabuletas que constroem a história e a memória dos amores.

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