Féretro



a via férrea
a vila férrea
a veia férrea
a vida férrea

o apito do trem
o aperto do trem
o preto do trem
o peito de outrem

o chiar do trem
o chefe do trem
a chave do trem
o choque do trem

ferrugem sanguínea
fuligem curvilínea
falida frenagem
ferida viagem


na via férrea,
o preto da roda
corta e ceifa
vidas sem dó.

Marta Morais da Costa

Sem ponto final

Marta Morais da Costa

Em meu dia de leituras cabem tantos textos de tantos gêneros de tantos autores e muitos assuntos. Passo do exótico ao erótico, do econômico ao espacial, do gastronômico ao policial, do esportivo ao musical, do horóscopo à política. Tropeço nas linhas retas e nos assuntos tortos. Leio os colunistas que odeio e aplaudo os que amo.

Dizem línguas venenosas que jornal de aposentado tem apenas três seções: obituário, horóscopo e palavras cruzadas. Ao considerar minha leitura, posso afirmar que estou desaposentada. Quer dizer, quase, pois há dias em que caio na armadilha dos horóscopos e dias em que o temor me precipita para as palavras cruzadas, em busca de oxigenação cerebral.  Finalidade que, por exemplo, as notícias políticas não produzem em mim.

Abrindo o linque enviado por uma amiga, que deveria dar acesso à sua crônica semanal, caí, desavisada, nas notas de falecimento referentes aos três últimos dias.

Bafejada pela vontade dos deuses, mergulhei texto adentro: nomes, idades, hospitais, endereços e velórios. Encontrei registros de falecidos sem a identificação do nome do pai. (Ah, esses homens cuja responsabilidade some num jato!). Confirmei que a morte não respeita idades, nem considera profissões e, muito menos, dá bola para sobrenomes ilustres ou embaçados.

Mas, ficcionista fiel, construí histórias singulares e redes coletivas. Reuni em espaços comuns idosos, jovens e bebês em narrativas enredadas e recheadas de simultaneidade e coincidências.

Dois idosos, com o mesmo sobrenome e em registros separados, a sugerir uma trajetória conjunta e a morte idem, quem sabe na impossibilidade de sobreviverem um ao outro depois de uma longa união. A mãe, estuprada, que morre ao dar à luz um bebê enfermiço que a acompanha na viagem ao desconhecido. Um jovem a desafiar a sucessão normal das gerações, tendo gozado loucamente seus poucos anos de vida. O pai que, acidentado, leva consigo o filho querido para uma jornada sem rumo definido. O avô, deixado na casa de repouso com a promessa de visitas periódicas, encontra quem poderia ser uma companheira derradeira, mas as debilidades comuns e as desiguais levaram os dois, em dias subsequentes, para o descanso final. A mãe amorosa, o pai provedor, a mãe autoritária, o pai omisso, o filho responsável, a filha desorientada, a vítima de bala encontrada, mortes voluntárias e mortes rejeitadas: a vasta galeria literária de personagens e biografias que povoam a mente do leitor quando o gatilho da ficção é acionado. Estavam lá a literatura e a vida em espelho multiplicador.

Não li a crônica, retornei da visita ao reino de Plutão envolvida por uma atmosfera de histórias e a imaginar segredos que cada um daqueles nomes levou consigo.

Fechei o jornal com um clique lento e a convicção de que um dia meu nome estará em uma página de um jornal que algum leitor desavisado lerá antes de, ele também, ter a certeza que seu nome estará lá um dia e que outro leitor desavisado lerá e terá confirmado que em um futuro qualquer seu nome…

Foto em fim de tarde

O dia ainda esbanjava dourados quando ele apareceu e buscou apoio na pedra do jardim, cercada por amores perfeitos. Parecia intranquilo, a cabeça em rotação da esquerda para a direita. Da direita para a esquerda. Os olhos curiosos buscavam uma paisagem familiar, som de vozes, cheiros e talvez um horizonte próximo.

Havia guardado na memória luzes, cores e movimentos interrompidos por fios regulares e pela impossibilidade de contato. Até que, de repente, inexplicavelmente, rasgou-se uma brecha no horizonte e as asas o levaram através de aberturas e brisas para uma altitude desconhecida, superando paredes e telhados.

Ao sol, seu corpo estranhou a quentura, buscou sombras, todas longínquas. Fumaça, ruídos, movimentos ininterruptos, figuras. Um mundo todo novo, sem limites, sem clausura. Atravessava o espaço com alguma dificuldade no começo, logo ganhando flexibilidade e amplitude.

Não demorou, veio o tempo da sede, o cansaço das asas, o peso dos pés. Buscou uma árvore. Nenhum verde, nenhum galho. Buscou água, nem um rio, nenhuma fonte. Buscou apoio e encontrou a pedra.

A pedra que povoava o jardim. Lisa, quase branca, redonda, fresca, protegida pela sombra do edifício. Alto, de vidros semelhantes a águas retidas em aquários. Atrás de um deles, uma pessoa em clausura, como havia sido a sua.

Movia-se à vontade sobre a pedra e pôde admirar vagarosamente o amarelo vibrante das penas, esvoaçando na brisa, experimentando a liberdade. Renascia.

Sobressaltou-se quando sentiu próximas duas crianças, fotografando com olhos espantados os movimentos de seu bico, dos pés mantendo o apoio, do corpo hesitando entre o voo e o cansaço.

Logo materializou-se o adulto, com olhos escondidos atrás da câmera, a registrar espantos e indecisões.

Subiu. Sumiu. Refez rotas e rodeios. Deixou lá embaixo a imagem fixada numa câmera que roda de mão em mão e que espalha no ar a poesia da passagem do pássaro amarelo e fremente, lépido e livre, em direção ao horizonte.