Contos em mim menor

A escrita do conto dialoga com a variedade dos gêneros literários. Pode conter a concisão e musicalidade dos poemas, o diálogo e a ação do teatro, as personagens complexas dos romances, a filosofia dos tratados, o humor da linguagem carnavalizada, os temas e contraditos da realidade, a veloz e cotidiana comunicação do jornalismo, as relações éticas e emocionais da psicanálise, e os mitos ancestrais em roupagens atualizadas. Enfim, um conto é a vida em movimento, acondicionada em embalagens econômicas.

Contos em mim menor é livro quese fez de leituras, observação, memória e imaginação. E pretende se inserir nas dobras da tradição milenar do escrever para narrar histórias de personagens comuns, de momentos especiais, de acontecimentos ímpares. É uma antologia pautada pela diversidade. Por vezes se aproxima do relato realista, em outras demanda parentesco com a poesia. As personagens aproximam-se dos leitores, mas por vezes se colocam distantes para serem observadas e analisadas. A linguagem narrativa é envolvida pelo coloquial, sem dispensar a presença do termo incomum, da frase tortuosa, da ironia ferina ou do humor revelador.

Esta coletânea metaforiza-se no vidro: os grãos minúsculos da areia formando uma liga poderosa e múltipla. O vidro que protege, torna transparente, reflete impiedosamente, envolve ou estilhaça-se em cacos: corta, fere, expõe entranhas.

Com defeitos e plenitude, Contos em mim menor realiza uma literatura de grãos de areia, de vidros e de espelhos.

Bonde

Marta Morais da Costa



trilhos são cicatrizes

no corpo da cidade

passos pesados de ontens

seguem as linhas mortas

a memória é trajeto

remexido e vivaz

acordando vozes e risos

na viagem que já não há

na rua estreita os trilhos

rebrilham interrompidos

no tempo esfumado

da perdida meninice

criança saltita

entre pedras e trilhos

borboleta fugaz

beijando a flor

que já não há

no casulo de aço e vidro

o  urbanista projeta sereno

o novo traçado da rua

sem ontem

sem trilhos

Mar remoto

Marta Morais da Costa

Foto por Mikhail Nilov em Pexels.com

Decidiu falar apenas o necessário. Abdicou das conversas animadas. O silêncio, companhia constante.

Gostou da sensação.

Surdez voluntária, mudez assumida.

Os olhos passam a construir cenários: personagens e paisagens avolumam-se em melhores cores e maior nitidez.

Ouve outras vozes, reais e imaginárias. Ressoam músicas recônditas.

Descobre no silêncio outras possibilidades. Histórias assomam ao desvelar o que a fala acobertava.

Decide deixar-se enlear. Carregara ao longo dos anos narrativas ouvidas e vividas, sufocadas, porém, por falas infindáveis. Mas no silêncio, elas se falam. Alegres e vivazes, trágicas ou ameaçadoras. São tantas e tão avassaladoras ocupando a cavidade da boca, enovelando-se nas pregas vocais, obstruindo as fossas nasais, perdendo-se nos labirintos dos ouvidos, invadindo os globos oculares e derramando-se pela face, descendo pelo peito e atingindo a extremidade das mãos que tentam conter a torrente.

Em vão.

As histórias encharcam os dedos e criam maremoto tão intenso que só amaina lançado sobre a areia do papel em ondas insofreáveis.

O silêncio conquista sua vastidão. Antes o desaparecimento no ar, agora o desenho das letras.

As histórias ascendem à sua casa.