Contribuição inestimável para a história do teatro no Brasil

Teatro e escravidão no Brasil, de João Roberto Faria. São Paulo: Perspectiva, 2022.

Quando, nos anos 70 do século passado, João Roberto, Cláudia Campos e eu fomos escolhidos pelo dr. Décio de Almeida Prado para ingressarmos, sob sua orientação, no Mestrado em Literatura Brasileira na USP, nem em sonho imaginávamos o tamanho de nossa contribuição para a pesquisa e os estudos de teatro no Brasil.

Um olhar retrospectivo e imodesto pode mensurar um pouco o quanto agregamos em conhecimento do teatro brasileiro no campo da análise crítica, da historiografia e da pesquisa documental. Dessa tríade, João Roberto Faria é, sem sombra de dúvida, o discípulo que seguiu com maior brilhantismo a esteira do grande mestre, historiador, pesquisador, analista e crítico Décio de Almeida Prado.

João Roberto Faria tornou-se o grande nome atual da pesquisa sobre teatro brasileiro. É professor titular de literatura brasileira na USP, pesquisador do CNPQ e coordenador da coleção ‘Dramaturgos do Brasil”, da editora Martins Fontes, para a qual preparou vários volumes. É autor, entre outros, dos seguintes livros: José de Alencar e o teatro (Perspectiva/Edusp, 1987); O teatro realista no Brasil: 1855-1865 (Perspectiva/ Edusp, 1993); O teatro na estante (Ateliê, 1998) e Ideias teatrais: o século XIX no Brasil (Perspectiva/ Fapesp, 2001). Em colaboração com Flávio Aguiar e Vilma Arêas, publicou Décio de Almeida Prado: um homem de teatro (Edusp/ Fapesp, 1997); com J. Guinsburg e Mariângela Alves de Lima, coordenou o Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos (Perspectiva/ Sesc, 2006). Organizou ainda o livro Do teatro: textos críticos e escritos diversos (Perspectiva, 2008), no qual reuniu a produção crítica de Machado de Assis sobre teatro.

Não entram nessa lista artigos e ensaios publicados esparsamente, nem a sua experiência docente, inclusive na Universidade Federal do Paraná, traduzida na ampla aprovação de seus alunos e orientandos.

Em linguagem precisa, estilo objetivo e claro, seus livros cativam os leitores. E qualquer pesquisador encontra neles a fidelidade dos documentos, o aprofundamento das pesquisas, o vasto campo de referências e a construção de um quadro histórico e social  a dar suporte às informações novas, uma leitura crítica impecável e a busca de reconhecimento da arte teatral apresentada e representada neste país.

Não poderia ser diferente com os estudo sobre mais de cem peças (algumas inacessíveis, outras desaparecidas e de que restaram apenas citações) no período de 1838 a 1888, 50 anos incandescentes de luta pela libertação das pessoas escravizadas (muitas vezes seviciadas e mortas) neste país, tão lerdo em reconhecer o regime desumano da escravização e estabelecer a liberdade irrestrita dos negros.

O teatro foi considerado omisso por muitos anos e muitos historiadores brasileiros até a publicação de Teatro e escravidão no Brasil em 2022. De forma inequívoca e comprovada, João Roberto Faria demonstra que, longe de omitir-se, o palco vibrou, agiu, discursou, debateu e defendeu o direito dos escravizados à cidadania plena. O índice onomástico e o índice remissivo, organizados e impressos ao final do livro, representam  o catálogo convincente do que, até este momento, era ignorado em relação a nomes  de atores e atrizes, de empresários, de títulos de peças, de pessoas que fizeram do teatro uma tribuna entre os anos 1838 e 1888. 

Os enredos, em sinopses elucidativas, ao longo das 396 páginas do livro, revelam a ideologia, os fatos históricos, a vocação tribunícia do teatro, a contribuição significativa dos dramaturgos e a força da interpretação dos atores. As qualidades humanas, boas e más, independentes de cor da pele, desenham-se sobre os palcos. Mas é, acima de tudo, na representação dos escravizados, que a maldade humana se apresenta com sua face mais hedionda nos personagens dos senhores e dos traficantes.

Notável é a relação entre os espetáculos como forma de argumentação e defesa da liberdade dos escravizados e as ações humanitárias realizadas na conversão de receitas de bilheteria em cartas de alforria. Não apenas como rima, mas como um propósito afirmativo de transformar os espetáculos em ações de cidadania.

É dispensável falar das reações de apoio e de repulsa que diferentes grupos de espectadores trouxeram para os edifícios teatrais e até para as ruas como resultado de suas posições políticas opositivas. As lágrimas, as ofensas e as trocas de agressões físicas estendiam para fora de cena o que o espetáculo teatral promovia e até estimulava.

A relação entre teatro e abolicionismo é uma constante no livro, mostrando que, em tempos de guerra e de lutas sociais, o teatro se agiganta na divulgação de fatos e no convencimento das plateias.

Um livro de leitura obrigatória para quem quer entender melhor o teatro, a história do país e as ações e a função de um grande pesquisador diante de um tema valioso para a compreensão do país em que vivemos e dos tempos tormentosos pelos quais ele passou. E passa.

Reproduzo um fragmento do parágrafo final desse volume precioso:

“Nesses dias, os teatros pelo Brasil afora transformavam-se em locais festivos, onde se reuniam todos que vinham batalhando pelo fim da escravidão: artistas profissionais e amadores, dramaturgos, empresários teatrais, jornalistas, políticos, membros das associações emancipadoras e o público heterogêneo, que congregava várias classes sociais. (…) O teatro entendido seja como realização cultural no terreno da dramaturgia e da encenação, seja como espaço físico onde ocorriam os espetáculos, as conferências emancipadoras e as reuniões políticas, esteve no centro dos acontecimentos, não à margem. O lugar que ocupa na história da escravidão e do movimento abolicionista merece ser redimensionado, levando-se em conta o volume das informações que este livro traz. Além disso, com o acréscimo de novos dados sobre autores e peças em grande parte esquecidos em nosso tempo, beneficia-se também a própria história do teatro brasileiro do século XIX: alarga-se o conhecimento que temos das nossas realizações dramáticas e cênicas entre 1838 e 1888.” (p.396)

Não quero me importar, dizem.

Marta Morais da Costa

Aproxima-se mais uma data comemorativa. A não ser pela ausência em sala de aula e alunos de diferentes idades soltos na vida na rua, no meio do redemunho, a data poderia passar despercebida sem prejuízo e sem comemoração.

Amanhã, dia 15 de outubro, é data brasileira dedicada aos professores.

Pra começo de conversa, a data mundial para festejar os professores é 5 de outubro. O Brasil segue outro calendário, que vem dos tempos Del Rei, ou melhor, do Imperador D. Pedro I. com um olho na hagiografia católica e com outro na Marquesa de Santos, ele estabeleceu em 1827 que a educadora Santa Teresa de Ávila merecia ser a patronesse dos professores. E assinou um decreto estabelecendo que o dia consagrado à santa seria o dia dos mestres e nele também criou o Ensino Elementar no Brasil, estabelecendo que “todas as cidades, vilas e lugarejos tivessem suas escolas de primeiras letras”.

Bacana, né? Dois assuntos interligados: homenagear quem vai pro batente educacional no primeiro estágio da educação e, para que a homenagem fizesse sentido, criar esse estágio com uma canetada.

No Brasil, as canetadas não significam amor à escrita, mas aposta no improvável. Até mesmo, aposta no que jamais será provável.

A História da Educação em nosso país tem lances de conquista de Alexandre Magno e lances de terra arrasada de Gaza. É a maior montanha-russa (digo, brasileira) do mundo.  Parece letra do samba de Paulinho da Viola:

“Em Mangueira a poesia
Num sobe e desce constante
Anda descalça ensinando
Um modo novo da gente viver
De sonhar, de pensar de sofrer”

Um sobe e desce constante, dos píncaros da poesia ao pedestrianismo da prosa, do sonhar e do sofrer, do conto de fadas à tragédia.

Não imaginem, caro leitor e cara leitora, que vou fazer uma longa diatribe sobre a educação de meu tempo como exemplo a ser seguido neste século pandêmico.

( Em à parte, como no teatro: diatribe tirei de leituras do século 18; meu tempo de ontem não era 1827, esclareço, mas quase; século pandêmico por duas longas, largas, amplas pandemias: o Covid malfadado e a ignorância persistente.)

Não defendo minha formação escolar in totum. Mas cá pra nós, mesmo tendo muita decoreba (o que horroriza os professores de hoje) consegui um bom cabedal de pensamento crítico que me causou muitos e vários problemas. Mas me sinto à vontade pra falar da educação que vivi de perto por quase infinitos 60 anos.

Vai senão quando estava me preparando para comemorar meu sexagésimo Dia do Professor em vivência profissional encontro no jornal “O Estado de São Paulo” de hoje (sempre penso em Euclides da Cunha escrevendo partes de  “Os Sertões” pra esse mesmo periódico) um editorial intitulado A tragédia silenciosa da educação básica.

Não resisto em citar fragmentos do texto para, em autoflagelação mental, participar de triste constatação. Tanto empenho, tanta luta pela escola pública para chegar aos “números radiografados pela edição mais recente do Anuário Brasileiro da Educação Básica”, publicado há alguns dias.

Para surpresa de ninguém que se interessa e se importa com a formação da infância e da juventude, em especial a formação de leitores, esses números já vinham sendo anunciados, quais nuvens de tempestade há anos. Aos poucos, aqui e ali, vinham as informações de maus resultados em testes e provas internacionais, de perda de leitores, de abandono social e financeiro de professores pelos órgãos competentes, de ambientes insalubres, de professores-missionários em estado de superação marvélica, de porcentagens assustadoras de fracassos e de ausências e todos os etecéteras que formam a lista de causas e consequências de uma educação à deriva.

Agora é oficial, está sacramentado no Anuário.

“(…) embora palco de uma sequência de boas políticas de base lideradas pelo Ministério da Educação desde o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) – exceção à gestão diversionista, errática e ausente durante os anos bolsonaristas (2019-2022) –, mesmo com a educação frequentemente listada no rol de prioridades nacionais, e apesar dos avanços nas redes estaduais e municipais de ensino e de um compromisso crescente de lideranças políticas com agenda educacional, resta reconhecer que estamos fracassando em oferecer o básico às crianças e adolescentes brasileiros.” A tal montanha-russa.

“Comecemos pela infraestrutura básica nas escolas públicas. Menos da metade delas tem acesso a esgoto, mais de 20% não contam com coleta de lixo e menos de 39% das salas de aula têm algum tipo de climatização, como ar-condicionado ou aquecedor. Só 20% das escolas têm laboratório de ciências no ensino fundamental II, enquanto no ensino médio o índice não chega à metade do total das escolas, um evidente desestímulo ao despertar do interesse dos jovens por profissões ligadas à ciência e um atalho certo para a dificuldade de entender conceitos científicos abstratos.

Itens básicos, como acesso à água potável, ligação de energia elétrica, banheiros e cozinha, estão presentes em 95% das escolas públicas, mas a situação é crítica em alguns Estados, como no Acre, em que água potável só existe em 62,9% das unidades, e em Roraima, onde apenas 72% contam com banheiros. A conectividade melhorou – mais de 95% das escolas públicas têm acesso à internet. Entretanto, só 44,5% seguem os parâmetros, como velocidade de conexão, considerados adequados para o uso pedagógico. Há ainda números ruins (e desiguais) na oferta de bibliotecas e salas de leitura, laboratórios de informática, bem como parquinhos e áreas verdes para as crianças na educação infantil.”  A tal aprendizagem que não chega nunca, malgrado discursos e discursê blá blá blá.

“O mistério brasileiro é que tais números não inspirem choque e indignação nacional compatíveis. O risco, ao contrário, é resultar em acomodação, como se a espiral descendente produzisse apenas resignação diante do fato de que boas práticas e infraestrutura adequada são ilhas de exceção e não a regra – uma incômoda calmaria, só compensada pelo avanço de algumas poucas redes de ensino. Vivemos numa sociedade do conhecimento sem dar a devida centralidade à escola pública, mantendo o erro de ter apenas uma ínfima parte da população preparada para o século 21.” Como chama essa doença: apatia, anomia, não-me-importismo, umbiguismo? Seja qual for: Brasil rumo ao século 19.

Talvez Santa Teresa de Ávila pudesse fazer um aceno, estender a mão, fazer um milagre coletivo: abrir cabeças e  lá dentro conectar a ação e a indignação e botar este país pra lutar pelo que é realmente importante: o futuro de conhecimento, reflexão e atitudes propositivas de crianças e jovens.