A mais recôndita memória dos homens

Se vocês forem ao site da Amazon irão encontrar o seguinte resumo:

“Neste romance magistral, vencedor do prêmio Goncourt e traduzido para mais de trinta idiomas, Mohamed Mbougar Sarr se inspira numa história verídica para construir um romance de formação e de aventura que celebra a literatura e revive o melhor da tradição deixada por Roberto Bolaño em Os detetives selvagens. Em 2018, Diégane Latyr Faye, um jovem escritor senegalês, descobre em Paris um livro mítico publicado em 1938: O labirinto do inumano. Seu autor, o misterioso T.C. Elimane, desapareceu sem deixar vestígios depois que uma escandalosa acusação de plágio mobilizou a comunidade literária francesa dos anos 1940. Fascinado, Diégane inicia então seu percurso atrás do “Rimbaud negro”, enfrentando as grandes tragédias do colonialismo e do holocausto. De Dakar a Paris, passando por Amsterdam e pela Buenos Aires dos salões literários das irmãs Ocampo, que verdade o espera no centro deste labirinto? Sem nunca perder o fio dessa busca que se apodera de sua vida, Diégane frequenta um grupo de jovens autores africanos radicados em Paris: entre noitadas de discussões, bebedeiras e sexo, eles se interrogam sobre a necessidade da criação a partir do exílio. Com a sua perpétua inventividade, A mais recôndita memória dos homens é um romance inesquecível, marcado pela exigência de uma escolha entre a escrita e a vida, ou pelo desejo de ir além da questão do confronto entre a África e o Ocidente. Nas palavras do escritor angolano Kalaf Epalanga, autor do texto de orelha desta edição, Sarr “consegue a proeza de construir um romance que celebra a beleza da literatura e a importância da criação artística”.

O resumo e os elogios são econômicos, mas apontam para um caminho de interpretação possível. Como disse Luci Collin, há um “espanto em cada capítulo”. Não apenas pela diversidade de vozes narrativas e pelo emaranhado do enredo do romance. É muito mais. A linguagem narrativa se desdobra, multiplica-se em diferentes gêneros literários (a epopeia, o mito, a carta, a poesia, o enigma policial, o romance de formação e muito mais).

A tradução de Diogo Cardoso faz o leitor experimentar a força da língua portuguesa em seu uso literário chamejante, com arestas, descobertas verbais, descrições poéticas e força política.

As conversas sobre literatura neste romance conferem ao registro metaliterário um tom de crença no poder da literatura ao mesmo tempo em que não economiza os detalhes do sofrimento criador do poeta e do romancista.

Um livro que exige novas leituras, parciais ou total. A riqueza ali-babesca de sua caverna platônica de simulação da realidade é um presente da Aranha-mãe, figura mitológica ímpar e suprema da mitologia dos povos da África.

Um livro que alimenta a fome de beleza do leitor, ao mesmo tempo em que o obriga a usar o cérebro, a sensibilidade, a memória e o gosto literário em graus superiores.

Em tempo de fraudes, fakes, IA e superficialidades, A mais recôndita memória dos homens é uma afirmação do poder da beleza literária e de sua permanência na cultura e nas mentes leitoras.

Contos em mim menor

Fragmento de “Herança”, conto inicial do meu livro mais recente, “Contos em mim menor”.

O que agora chamo de casa distancia ainda mais o casebre da infância. Nele, experimentei a precariedade de roupa, comida, conforto e afeto. Nele, vi o pai morrer numa na poça de vômito da última bebedeira. Nele, reparti a cama com três irmãos, dos quais eu sou a única sobrevivente. Nele, aprendi que solidariedade dura uma única doação e muitas cobranças de reconhecimento. Que falta é palavra mais frequente do que bom dia. Que a barriga tem mais buracos por onde a comida se esvai do que paredes para impedir a fome de entrar. Que o sono é sem sonhos, que a vida é de pouco sono, que a morte é um sono pesado sem despertar.

Marta Morais da Costa

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ZUMBIDO

Marta Morais da Costa

O zumbido havia se transformado em pesadelo. Começara mansinho, como um chuvisco seco, muito distante. Aos poucos havia ganho corpo, peso e estridência. Em momentos imprevisíveis emitia silvos ensurdecedores.

Médicos, havia consultado seguindo, um a um, toda a lista do catálogo do plano de saúde. Alguns consultórios modernos e bem equipados e outros, a maioria, nem tanto. Diagnóstico? Mudava mais do que o tempo no outono, Estresse, surdez chegando no horizonte, uso excessivo de fones de ouvido, problemas nos rins, no esôfago, no labirinto. Talvez um câncer.

De consultórios a laboratórios, o tempo passando, o trabalho no escritório beirando o caos, a conta bancário minguando, o patrão reclamando e a mulher, já desamorosa, tu tá é com manha, querendo nem trabalhá.

Em 45 dias, estava no olho da rua, sem mulher, sentindo pegajosas as caras de consternação e compaixão de parentes e vizinhos.

O zumbido agora orquestrava. Graves e agudos, colcheias e semi, uma disputa acirrada com o canto dos pássaros e a grita da criançada. Ouvir música parecia um dueto desafinado e em ritmo descompassado.

Certa noite, vozes indistintas travavam conversas intermináveis que começavam no vestíbulo do ouvido e só silenciavam nos escaninhos do cérebro. Alguns dias mais e as vozes altercavam com risos e assobios.

Evitava sair à rua: confundiam-se os sons dos automóveis com o roncar de algumas vozes sonolentas. Temia ser atropelado e, se sobrevivesse, saber que havia incorporado sons de freadas e ranger de rodas.

Surpreendeu-se um dia prestando atenção no diálogo entre as vozes interiores e saber que trocavam informações e prognósticos sobre sua pessoa. Ah, o Alfredo está achando que não existimos, que somos ruídos em seus ouvidos. Deixa o bobo pensar assim; de todo modo ele não vem nos perturbar. O tonto pensa que é doença: sabe nada. E as vozes altercavam-se e criavam novas avaliações sobre ele.

Em cada dia riscado na folhinha, debates e acusações, risos de escárnio e prognósticos de aniquilamento. Ele ouvia tudo e nem duvidava. Estava mesmo vivendo mais os outros dentro de si do que a vida pulsante fora de sua cabeça.

A batida na porta tirou sua atenção da interioridade. A bela mulher que o mirava do outro lado da porta aberta só queria algumas respostas ao questionário sobre a relevância de se construir um shopping nas imediações.

Os olhos negros, no entanto, lhe pareceram familiares. Talvez uma amiga da ex, talvez uma passageira do metrô do tempo em que trabalhava, talvez alguém da televisão.

– Senhor Alfredo, como vai o zumbido? Melhorou com as vozes? Nós somos mesmo muito tagarelas, não?

Lá dentro, no fundo do cérebro, uma voz se fez ouvir:

– Irene, volte para casa! Deixe de brincar de pesquisadora!

Foi então que descobriu: o zumbido jamais partiria. Era agora sua anulação.

Ele se perdera nos outros.

Foto por Suzy Hazelwood em Pexels.com