Marta Morais da Costa

Em 2000 ganhei de uma amiga especial uma agenda especial. Editada pela Biblioteca Nacional, tinha um título sedutor “Agenda da Literatura Brasileira”. Veio somar-se a muitas outras, que colecionei ao longo da vida docente. Assumindo uma filosofia de desapego, fui deixando entre os papeis descartáveis quase todas as outras agendas que me auxiliaram a guardar informações, pensamentos, compromissos, relacionamentos de amizade ou de interesse, projetos (feitos ou jamais realizados) e muitos, muitos endereços e contatos com pessoas que já não moram mais, que já trocaram de número de telefone ou que, até, nem mais estão precisando de casa ou de comunicação.

Mas da velha agenda, agora completando jovens 25 anos, não me desfiz. Não apenas me lembra aquele ano final do século 20, como ainda me retém a atenção pelos textos nela reproduzidos. Poemas, fragmentos de contos e de romances, cópias de manuscritos, fotos de capas de livros, aquela miscelânea de textos verbais e visuais que fizeram e fazem parte das coisas boas da vida de uma professora de literatura.
Os poemas são os mais numerosos, talvez porque, por apresentarem um texto completo, chegam com maior impacto à mente leitora. No seu primeiro mandamento, o de representar uma unidade textual, montam o cenário, a situação, as personagens e seus sentimentos em alguns poucos versos, tendo ainda espaço para a identificação do autor e do livro.
Gostosamente releio alguns desses textos, reconhecendo o grande número de escritores escolhidos dentre aqueles que participaram de dois movimentos especialmente importantes da literatura brasileira: a juventude do Romantismo e a jovialidade revolucionária do Modernismo de 22. Mas não apenas esses dois momentos: a literatura que se encadeou desde Anchieta no século 16 até Vinícius, Clarice e Guimarães Rosa, multiplicando os textos de Machado de Assis. Afinal, monumentos são pra serem exibidos. Manteve-se em autores clássicos e ignorou a juventude audaz do último quarto do século passado.
Depois de reproduzir a capa da “Arte da grammatica da lingoa mais falada na costa do Brasil” – que não era o português, mas o tupi!- a agenda reproduz na íntegra o poema “Saudade” do ex-popularíssimo Casemiro de Abreu, preterido hoje por Fernando Pessoa, como se o Tejo fosse o rio de nossas aldeias, ou pelas sensaborias de Bráulio Bessa.
Mas vamos ao poema, que citarei em fragmentos:
“Nas horas mortas da noite
Como é doce o meditar
Quando as estrelas cintilam
Nas ondas quietas do mar.
(…)
Nessas horas de silêncio
De tristezas e de amor
Eu gosto de ouvir ao longe
Cheio de mágoa e de dor,
O sino do campanário
(…)
Esses prantos de amargores
São prantos cheios de dores
– Saudades – dos meus amores
– Saudades – da minha terra!
Como faz bem aos ouvidos o ritmo desses versos, como faz bem à alma saber dessas dores fictícias, dessa mágoa permanente, desse chororô romântico! Hoje sem silêncio nem estrelas (obscurecidas pela poluição), sem sinos de campanário ( a não ser os fakes pré-gravados), a saudade da terra é a das terras alheias, asilo de numerosos brasileiros que fogem por diferentes causas e razões em buscam do que não “encontram por cá”.
O penúltimo texto reproduzido é o “Soneto de Natal” , de Machado de Assis, lembrado principalmente por seu último verso chave-de-ouro: ”Mudaria o Natal ou mudei eu?”. Dúvida que se chegou a ser antropo-psico-filosófica, é agora um clichê de sentido pé-no-chão.

Manuscrito de Machado de Assis
E o último texto, correspondendo à última semana do ano 2000 é “Desejo”, de Junqueira Freira, outro romântico.
“Eu – que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno,
Eu quero de uma vez morrer pra sempre,
Entrar por fim no inferno!
(…)
Que de arrostar as dores desta vida,
Quase pareço eterno!
Estou cansado de vencer o mundo,
Quero vencer o inferno!”
A primeira e a última estrofe aqui reproduzidas formatam o círculo dantesco de uma vida de dores e mágoas à moda da época, acrescido de um desejo oposto ao que hoje formulamos na última semana de todos esses anos felizes que vivemos. Nada de desejos generosos, utópicos, repetitivos. Em lugar de “vamos descer para BC”, o endereço é mais quente e mais duradouro…
Enfim, uma agenda com a cara do Brasil: seus chorões de amores verdadeiros e falsos; de saudades nostálgicas em tempo presente, em que não se abre mão dos confortos e do consumo; de saudades de uma terra que não mais existe e quando nos cerca, nos enterra em violência, corrupção e não-me-importismo.
Vinte e cinco anos depois, esta velha agenda, por meio de textos literários, ainda me interessa, me faz pensar, olhar a realidade e reafirmar minha crença no poder da literatura e das palavras para dizer:
“Eu – que tenho arrostado imensas mortes,
E que pareço eterno,”
Ainda tudo desejo, sem usura e sem cortes,
Céu azul, nunca inferno!