
Marta Morais da Costa
Aproxima-se mais uma data comemorativa. A não ser pela ausência em sala de aula e alunos de diferentes idades soltos na vida na rua, no meio do redemunho, a data poderia passar despercebida sem prejuízo e sem comemoração.
Amanhã, dia 15 de outubro, é data brasileira dedicada aos professores.
Pra começo de conversa, a data mundial para festejar os professores é 5 de outubro. O Brasil segue outro calendário, que vem dos tempos Del Rei, ou melhor, do Imperador D. Pedro I. com um olho na hagiografia católica e com outro na Marquesa de Santos, ele estabeleceu em 1827 que a educadora Santa Teresa de Ávila merecia ser a patronesse dos professores. E assinou um decreto estabelecendo que o dia consagrado à santa seria o dia dos mestres e nele também criou o Ensino Elementar no Brasil, estabelecendo que “todas as cidades, vilas e lugarejos tivessem suas escolas de primeiras letras”.
Bacana, né? Dois assuntos interligados: homenagear quem vai pro batente educacional no primeiro estágio da educação e, para que a homenagem fizesse sentido, criar esse estágio com uma canetada.
No Brasil, as canetadas não significam amor à escrita, mas aposta no improvável. Até mesmo, aposta no que jamais será provável.
A História da Educação em nosso país tem lances de conquista de Alexandre Magno e lances de terra arrasada de Gaza. É a maior montanha-russa (digo, brasileira) do mundo. Parece letra do samba de Paulinho da Viola:
“Em Mangueira a poesia
Num sobe e desce constante
Anda descalça ensinando
Um modo novo da gente viver
De sonhar, de pensar de sofrer”
Um sobe e desce constante, dos píncaros da poesia ao pedestrianismo da prosa, do sonhar e do sofrer, do conto de fadas à tragédia.
Não imaginem, caro leitor e cara leitora, que vou fazer uma longa diatribe sobre a educação de meu tempo como exemplo a ser seguido neste século pandêmico.
( Em à parte, como no teatro: diatribe tirei de leituras do século 18; meu tempo de ontem não era 1827, esclareço, mas quase; século pandêmico por duas longas, largas, amplas pandemias: o Covid malfadado e a ignorância persistente.)
Não defendo minha formação escolar in totum. Mas cá pra nós, mesmo tendo muita decoreba (o que horroriza os professores de hoje) consegui um bom cabedal de pensamento crítico que me causou muitos e vários problemas. Mas me sinto à vontade pra falar da educação que vivi de perto por quase infinitos 60 anos.
Vai senão quando estava me preparando para comemorar meu sexagésimo Dia do Professor em vivência profissional encontro no jornal “O Estado de São Paulo” de hoje (sempre penso em Euclides da Cunha escrevendo partes de “Os Sertões” pra esse mesmo periódico) um editorial intitulado A tragédia silenciosa da educação básica.
Não resisto em citar fragmentos do texto para, em autoflagelação mental, participar de triste constatação. Tanto empenho, tanta luta pela escola pública para chegar aos “números radiografados pela edição mais recente do Anuário Brasileiro da Educação Básica”, publicado há alguns dias.
Para surpresa de ninguém que se interessa e se importa com a formação da infância e da juventude, em especial a formação de leitores, esses números já vinham sendo anunciados, quais nuvens de tempestade há anos. Aos poucos, aqui e ali, vinham as informações de maus resultados em testes e provas internacionais, de perda de leitores, de abandono social e financeiro de professores pelos órgãos competentes, de ambientes insalubres, de professores-missionários em estado de superação marvélica, de porcentagens assustadoras de fracassos e de ausências e todos os etecéteras que formam a lista de causas e consequências de uma educação à deriva.
Agora é oficial, está sacramentado no Anuário.
“(…) embora palco de uma sequência de boas políticas de base lideradas pelo Ministério da Educação desde o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) – exceção à gestão diversionista, errática e ausente durante os anos bolsonaristas (2019-2022) –, mesmo com a educação frequentemente listada no rol de prioridades nacionais, e apesar dos avanços nas redes estaduais e municipais de ensino e de um compromisso crescente de lideranças políticas com agenda educacional, resta reconhecer que estamos fracassando em oferecer o básico às crianças e adolescentes brasileiros.” A tal montanha-russa.
“Comecemos pela infraestrutura básica nas escolas públicas. Menos da metade delas tem acesso a esgoto, mais de 20% não contam com coleta de lixo e menos de 39% das salas de aula têm algum tipo de climatização, como ar-condicionado ou aquecedor. Só 20% das escolas têm laboratório de ciências no ensino fundamental II, enquanto no ensino médio o índice não chega à metade do total das escolas, um evidente desestímulo ao despertar do interesse dos jovens por profissões ligadas à ciência e um atalho certo para a dificuldade de entender conceitos científicos abstratos.
Itens básicos, como acesso à água potável, ligação de energia elétrica, banheiros e cozinha, estão presentes em 95% das escolas públicas, mas a situação é crítica em alguns Estados, como no Acre, em que água potável só existe em 62,9% das unidades, e em Roraima, onde apenas 72% contam com banheiros. A conectividade melhorou – mais de 95% das escolas públicas têm acesso à internet. Entretanto, só 44,5% seguem os parâmetros, como velocidade de conexão, considerados adequados para o uso pedagógico. Há ainda números ruins (e desiguais) na oferta de bibliotecas e salas de leitura, laboratórios de informática, bem como parquinhos e áreas verdes para as crianças na educação infantil.” A tal aprendizagem que não chega nunca, malgrado discursos e discursê blá blá blá.
“O mistério brasileiro é que tais números não inspirem choque e indignação nacional compatíveis. O risco, ao contrário, é resultar em acomodação, como se a espiral descendente produzisse apenas resignação diante do fato de que boas práticas e infraestrutura adequada são ilhas de exceção e não a regra – uma incômoda calmaria, só compensada pelo avanço de algumas poucas redes de ensino. Vivemos numa sociedade do conhecimento sem dar a devida centralidade à escola pública, mantendo o erro de ter apenas uma ínfima parte da população preparada para o século 21.” Como chama essa doença: apatia, anomia, não-me-importismo, umbiguismo? Seja qual for: Brasil rumo ao século 19.
Talvez Santa Teresa de Ávila pudesse fazer um aceno, estender a mão, fazer um milagre coletivo: abrir cabeças e lá dentro conectar a ação e a indignação e botar este país pra lutar pelo que é realmente importante: o futuro de conhecimento, reflexão e atitudes propositivas de crianças e jovens.


