Fragmento de “Herança”, conto inicial do meu livro mais recente, “Contos em mim menor”.
O que agora chamo de casa distancia ainda mais o casebre da infância. Nele, experimentei a precariedade de roupa, comida, conforto e afeto. Nele, vi o pai morrer numa na poça de vômito da última bebedeira. Nele, reparti a cama com três irmãos, dos quais eu sou a única sobrevivente. Nele, aprendi que solidariedade dura uma única doação e muitas cobranças de reconhecimento. Que falta é palavra mais frequente do que bom dia. Que a barriga tem mais buracos por onde a comida se esvai do que paredes para impedir a fome de entrar. Que o sono é sem sonhos, que a vida é de pouco sono, que a morte é um sono pesado sem despertar.
Teatro e escravidão no Brasil, de João Roberto Faria. São Paulo: Perspectiva, 2022.
Quando, nos anos 70 do século passado, João Roberto, Cláudia Campos e eu fomos escolhidos pelo dr. Décio de Almeida Prado para ingressarmos, sob sua orientação, no Mestrado em Literatura Brasileira na USP, nem em sonho imaginávamos o tamanho de nossa contribuição para a pesquisa e os estudos de teatro no Brasil.
Um olhar retrospectivo e imodesto pode mensurar um pouco o quanto agregamos em conhecimento do teatro brasileiro no campo da análise crítica, da historiografia e da pesquisa documental. Dessa tríade, João Roberto Faria é, sem sombra de dúvida, o discípulo que seguiu com maior brilhantismo a esteira do grande mestre, historiador, pesquisador, analista e crítico Décio de Almeida Prado.
João Roberto Faria tornou-se o grande nome atual da pesquisa sobre teatro brasileiro. É professor titular de literatura brasileira na USP, pesquisador do CNPQ e coordenador da coleção ‘Dramaturgos do Brasil”, da editora Martins Fontes, para a qual preparou vários volumes. É autor, entre outros, dos seguintes livros: José de Alencar e o teatro (Perspectiva/Edusp, 1987); O teatro realista no Brasil: 1855-1865 (Perspectiva/ Edusp, 1993); O teatro na estante (Ateliê, 1998) e Ideias teatrais: o século XIX no Brasil (Perspectiva/ Fapesp, 2001). Em colaboração com Flávio Aguiar e Vilma Arêas, publicou Décio de Almeida Prado: um homem de teatro (Edusp/ Fapesp, 1997); com J. Guinsburg e Mariângela Alves de Lima, coordenou o Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos (Perspectiva/ Sesc, 2006). Organizou ainda o livro Do teatro: textos críticos e escritos diversos (Perspectiva, 2008), no qual reuniu a produção crítica de Machado de Assis sobre teatro.
Não entram nessa lista artigos e ensaios publicados esparsamente, nem a sua experiência docente, inclusive na Universidade Federal do Paraná, traduzida na ampla aprovação de seus alunos e orientandos.
Em linguagem precisa, estilo objetivo e claro, seus livros cativam os leitores. E qualquer pesquisador encontra neles a fidelidade dos documentos, o aprofundamento das pesquisas, o vasto campo de referências e a construção de um quadro histórico e social a dar suporte às informações novas, uma leitura crítica impecável e a busca de reconhecimento da arte teatral apresentada e representada neste país.
Não poderia ser diferente com os estudo sobre mais de cem peças (algumas inacessíveis, outras desaparecidas e de que restaram apenas citações) no período de 1838 a 1888, 50 anos incandescentes de luta pela libertação das pessoas escravizadas (muitas vezes seviciadas e mortas) neste país, tão lerdo em reconhecer o regime desumano da escravização e estabelecer a liberdade irrestrita dos negros.
O teatro foi considerado omisso por muitos anos e muitos historiadores brasileiros até a publicação de Teatro e escravidão no Brasil em 2022. De forma inequívoca e comprovada, João Roberto Faria demonstra que, longe de omitir-se, o palco vibrou, agiu, discursou, debateu e defendeu o direito dos escravizados à cidadania plena. O índice onomástico e o índice remissivo, organizados e impressos ao final do livro, representam o catálogo convincente do que, até este momento, era ignorado em relação a nomes de atores e atrizes, de empresários, de títulos de peças, de pessoas que fizeram do teatro uma tribuna entre os anos 1838 e 1888.
Os enredos, em sinopses elucidativas, ao longo das 396 páginas do livro, revelam a ideologia, os fatos históricos, a vocação tribunícia do teatro, a contribuição significativa dos dramaturgos e a força da interpretação dos atores. As qualidades humanas, boas e más, independentes de cor da pele, desenham-se sobre os palcos. Mas é, acima de tudo, na representação dos escravizados, que a maldade humana se apresenta com sua face mais hedionda nos personagens dos senhores e dos traficantes.
Notável é a relação entre os espetáculos como forma de argumentação e defesa da liberdade dos escravizados e as ações humanitárias realizadas na conversão de receitas de bilheteria em cartas de alforria. Não apenas como rima, mas como um propósito afirmativo de transformar os espetáculos em ações de cidadania.
É dispensável falar das reações de apoio e de repulsa que diferentes grupos de espectadores trouxeram para os edifícios teatrais e até para as ruas como resultado de suas posições políticas opositivas. As lágrimas, as ofensas e as trocas de agressões físicas estendiam para fora de cena o que o espetáculo teatral promovia e até estimulava.
A relação entre teatro e abolicionismo é uma constante no livro, mostrando que, em tempos de guerra e de lutas sociais, o teatro se agiganta na divulgação de fatos e no convencimento das plateias.
Um livro de leitura obrigatória para quem quer entender melhor o teatro, a história do país e as ações e a função de um grande pesquisador diante de um tema valioso para a compreensão do país em que vivemos e dos tempos tormentosos pelos quais ele passou. E passa.
Reproduzo um fragmento do parágrafo final desse volume precioso:
“Nesses dias, os teatros pelo Brasil afora transformavam-se em locais festivos, onde se reuniam todos que vinham batalhando pelo fim da escravidão: artistas profissionais e amadores, dramaturgos, empresários teatrais, jornalistas, políticos, membros das associações emancipadoras e o público heterogêneo, que congregava várias classes sociais. (…) O teatro entendido seja como realização cultural no terreno da dramaturgia e da encenação, seja como espaço físico onde ocorriam os espetáculos, as conferências emancipadoras e as reuniões políticas, esteve no centro dos acontecimentos, não à margem. O lugar que ocupa na história da escravidão e do movimento abolicionista merece ser redimensionado, levando-se em conta o volume das informações que este livro traz. Além disso, com o acréscimo de novos dados sobre autores e peças em grande parte esquecidos em nosso tempo, beneficia-se também a própria história do teatro brasileiro do século XIX: alarga-se o conhecimento que temos das nossas realizações dramáticas e cênicas entre 1838 e 1888.” (p.396)
Decidiu falar apenas o necessário. Abdicou das conversas animadas. O silêncio, companhia constante.
Gostou da sensação.
Surdez voluntária, mudez assumida.
Os olhos passam a construir cenários: personagens e paisagens avolumam-se em melhores cores e maior nitidez.
Ouve outras vozes, reais e imaginárias. Ressoam músicas recônditas.
Descobre no silêncio outras possibilidades. Histórias assomam ao desvelar o que a fala acobertava.
Decide deixar-se enlear. Carregara ao longo dos anos narrativas ouvidas e vividas, sufocadas, porém, por falas infindáveis. Mas no silêncio, elas se falam. Alegres e vivazes, trágicas ou ameaçadoras. São tantas e tão avassaladoras ocupando a cavidade da boca, enovelando-se nas pregas vocais, obstruindo as fossas nasais, perdendo-se nos labirintos dos ouvidos, invadindo os globos oculares e derramando-se pela face, descendo pelo peito e atingindo a extremidade das mãos que tentam conter a torrente.
Em vão.
As histórias encharcam os dedos e criam maremoto tão intenso que só amaina lançado sobre a areia do papel em ondas insofreáveis.
O silêncio conquista sua vastidão. Antes o desaparecimento no ar, agora o desenho das letras.
Svetlana Aleksiévitch. A guerra não tem rosto de mulher. SP: Companhia das Letras, 2016. 390p.
Livro contundente escrito pela autora ucraniana, ganhadora do Nobel em 2015. Ela realizou mais de quinhentas entrevistas com mulheres sobreviventes da Segunda Grande Guerra, principalmente oriundas da Bielorrússia e que combateram no exército soviético em tempos do Stalin. Alistaram-se no exército, na aeronáutica e na marinha com a intenção exclusiva de lutar no front das batalhas. Estavam motivadas principalmente pela ideologia de pátria e esperançosas de uma guerra curta, almejando sempre o dia da Vitória e a entrada em Berlim. Encontraram obstáculos entre seus colegas de farda, lutaram bravamente, inúmeras delas morreram em combate. Foram aviadoras, enfermeiras, médicas, nas comunicações e como partisans, manejaram metralhadoras, dirigiram carros de combate, tornaram-se competentes no uso de metralhadoras e de artilharia aérea, comandaram equipes femininas e masculinas. Exerceram, enfim, papeis relevantes na guerra contra os alemães em terras da então União Soviética.
Seus relatos e depoimentos são reproduzidos no livro a partir de entrevistas gravadas sobre como se militarizaram, como era a vida no front, o amor, os filhos, o sofrimento, a família. Geralmente são jovens muito novas que entraram na guerra aos dezesseis ou dezessete anos. Muito sofrimento, muitas feridas internas e externas, um povo arrasado e faminto, cenas cruéis, a perda do feminino, o preconceito (inclusive das mulheres não-soldados que as acusavam de prostituição). Cada depoimento vem com o nome real e função que exerceu durante a guerra.
A escrita de Svetlana é quantitativa e intencionalmente limitada no livro. Mas o fato de ceder a palavra a mulheres extraordinárias não apenas acentua a realidade que viveram (e pela qual muitas morreram), mas acima de tudo torna o livro assustador, dilacerante, comovente e acentua a bestialidade das guerras e a capacidade humana de heroísmo e sobrevivência.
A narrativa está organizada em blocos temáticos e desvenda uma face oculta da guerra: a participação das mulheres. A diversidade de histórias e opiniões revelam o quão dilacerantes são as memórias da guerra, o quanto as feridas da alma são mais doloridas por vezes do que os ferimentos de guerra. O passado visto sob a ótica do presente e da velhice é uma história silenciada que, por força do trabalho de Svetlana Aleksiévitch chega aos leitores de hoje. Juntamente com as notícias atuais das guerras que acreditávamos jamais acontecerem.
São mulheres sem redes sociais fúteis. Suas redes eram de solidariedade e crença na liberdade. Humanas, marcadas pelas armas e pelas perdas, mulheres partidas, precocemente envelhecidas, vítimas de tempos sem paz.
Em artigo, Francis Manzoni comenta os dados da Pesquisa Retratos da Leitura e aponta para a conjuntura de tendências que têm influenciado no resultado do estudo
Como digerir a perda de 7 milhões de leitores brasileiros nos últimos 5 anos? De início, fui ao ChatGPT perguntar quais países têm esse número de população, por ser mais ágil que o Google, e me vi assessorado por um poderoso instrumento de informação. Sim, Líbano, Sérvia e Paraguai têm aproximadamente 7 milhões de habitantes. É como se o Paraguai inteiro não tivesse mais leitores.
A IA das redes sociais vem tragando, em poucos anos, jovens e tradicionais habitués da leitura para pontos de atenção com predominância de imagens e símbolos. Foram necessários 5 séculos para tornar a Europa um continente de leitores, e o Brasil, que nunca chegou a sê-lo, agora parece distanciar-se desse perfil. Aliás, é como perfis e não como leitores que nos ajustamos melhor, como consumidores mapeados por algoritmos na Web. Antes que a falta de intimidade com a ironia cause ruído, isso é uma crítica.
Como editor no setor livreiro, procuro elaborar alguma resposta útil ao triste cenário divulgado na Pesquisa Retratos da Leitura, realizada pelo Instituto Pró-Livro neste 19 de novembro de 2024.
Ocorreu-me que o resultado das eleições nos EUA foi relacionado por especialistas à censura de obras literárias na maior parte do país, que a extrema direita tem aumentado seus representantes nos governos da Alemanha, capital econômica da Europa, e da América Latina, em que o Brasil é um dos casos mais emblemáticos.
Essa conjuntura de tendência autoritária coloca em risco as democracias, os sistemas de proteção ambiental e contenção das mudanças climáticas, e os direitos humanos, especialmente entre populações menos favorecidas.
Mas o que a leitura tem a ver com isso? Em poucas palavras: cidadania, direitos civis, proteção social, liberdade, equidade. Não é exagero lembrar que todas as social media e seus sistemas de informação são controlados por grandes acionistas, um número reduzido de empresários com alta concentração de renda e pouco compromisso com o futuro do planeta.
No período da Revolução Industrial, entre os séculos XVIII e XIX, existiram pessoas que imaginaram sociedades mais justas e igualitárias diante das condições de trabalho difíceis da época. Foram chamados de “socialistas utópicos”: Henri de Saint-Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Gosto de pensar neles como pessoas altruístas.
Hoje em dia, os cursos de administração propagam a Sociedade 5.0. O conceito, apresentado em 2016 pelo governo japonês, promete uma sociedade em que as tecnologias digitais, como a IA, a robótica e a Internet das Coisas, devem melhorar a vida de todas as pessoas e resolver os problemas sociais. Acho esse projeto tão utópico quanto o dos socialistas. Na verdade, ao longo da História, sempre há modelos de organização e controle do mundo em disputa, mas parece que chegamos a um limiar perigoso, com as grandes potências nucleares dispostas a usar sua força, e poucos estadistas de peso voltados para a paz mundial, o combate à fome e ao equilíbrio socioeconômico entre as nações. Além disso, temos sido pautados e manipulados pelas grandes empresas que controlam as redes sociais de informação.
Voltando ao Brasil, apenas 26% dizem que gostam muito de ler e 43% gostam só um pouco. Estão todos conectados aos algoritmos, ao lado de 46% que dizem não ter tempo para livros. Perdemos um Líbano, e, em três ou cinco anos, podemos perder uma Sérvia, até nos perdermos de nós mesmos.
*Francis Manzoni é pós-graduado em edição de livros, mestre em história pela Unesp e doutor em história pela mesma área na PUC-SP, com passagem pela École des Hautes Études en Sciences Sociales, na França. Atualmente é aluno do MBA em Gestão Estratégica de Pessoas na FGV. Atuou como consultor da área de literatura do Sesc São Paulo e, neste momento, é gerente adjunto das Edições Sesc. É autor do livro ‘Mercados e feiras livres em São Paulo: 1867 – 1933’ (Sesc, 2019) e ‘A criação do Centro Cultural São Paulo’ (Alameda, 2022).
Minha mãe está fazendo 100 anos neste 31 de maio. Mesmo que não esteja em nenhum cômodo do apartamento, mesmo que não precise de agasalhos contra o frio (ela, que sentia muito frio nos pés e nas mãos), mesmo que dispense bolos e abraços, mesmo que não esteja sorrindo aos ver os filhos reunidos e os netos a chamar vovó. Mesmo que não atenda aos telefonemas para, com dificuldade de audição, ouvir a resposta a seu rápido alô.
Essa mãe, forte para parir e criar seis filhos, hoje tem uma força sobrenatural, em outro estágio, em outra dimensão. E continua presente na história que construiu em nós e conosco. Continua a sorrir, a aconselhar, a contar suas histórias, a lamentar a hora da despedida quando ultrapassávamos a porta de saída e a se queixar da vida presente, tão confusa, tão incompreensível, tão diferente.
Sabe, mãe, somente convivi com você 77 anos desse centenário que você comemora longe de nós. Não conheci você no tempo de sua infância, meninice e juventude, mas elas vieram com suas histórias do tempo passado fechar lacunas, dar a conhecer um pouco do que você viveu.
A gente é assim mesmo: o que não vivemos também se torna nossa história pela voz dos outros.
Por isso, mãe, aquela plaquinha de comemoração de seu centenário não existe, apenas ficou como palavras em seus ouvidos e na minha intenção. Faz mal não, mãe! Este bilhete não substitui a plaquinha e as homenagens. Mas igual a elas, fala de meu agradecimento por tudo que herdei, de corpo e de caráter. E de quanto sinto sua falta.
Parabéns, mãe! Você viverá muitos e muitos anos mais enquanto vivermos: meus irmãos, seus netos e bisnetos, genros e noras e todos os amigos que você fez na vida. Eles lembram com afeto da vó Pierina, da tia Pierina e da dona Pierina: as muitas mulheres que você foi.
Ah, aí ao lado do pai (esse centenário rapaz elegante e bonito), diz para ele que ele também faz falta e que ser órfão só é bom em romance que acaba bem. Pra valer, orfandade dói, dói.
Em tempo de redes sociais, a felicidade mora em todos os tempos e lugares da vida. Um historiador do futuro ao olhar para este começo atormentado do século 21 e ao estudar suas fontes documentais visuais estará fadado a um trabalho insano, destemperado e sem conclusão. Haja fotos inumeráveis e vidas com registros de costumes e modas e poses e caras e caretas!
Poderá estudar cenários (cenográficos muitas vezes), trilhas musicais, dancinhas, ambientes, objetos e um sem número de marcas e testemunhos dos tempos de hoje. Irá se deleitar com a cínica, narcísica e patológica busca da felicidade contínua e com fios desencapados.
Terá ainda vasto material de memórias pessoais e coletivas em publicações que tangenciam o infinito. Nesta festa de exibições, quero expor minha parte no partido dos leitores compulsivos.
Passeando pela internet, cheguei a uma citação que gostaria de tomar como ponto de partida para uma rápida reflexão:
“Não sou capaz de dizer que obra ou que autor inoculou em mim o vício da leitura, porque nasci entre livros, milhares deles. Meu pai tinha estantes espalhadas por várias partes da casa, inclusive na garagem.”
Isso é que é nascer em berço esplêndido! No paraíso dos eleitos leitores! Algo com que eu nunca sonhei, nem em minhas noites mais perfeitas e com iluminação onírica.
Não sei bem o que é uma iluminação onírica, mas gostei da combinação. Penso ser uma expressão que expande seus significados. Talvez algo contrário à escuridão dos pesadelos e suas dores implícitas. Talvez sonhos que de tão lindos vêm com iluminação de primeira, como se fosse um toque de Beto Bruel e sua genialidade com refletores, gelatinas e painéis de controle. Sonhos que podem parecer um cenário de Barbie, visitado pelo Ken dos livros e da leitura. Enfim, uma iluminação espiritual em que a claridade do paraíso vem acompanhada pela musicalidade dos cânticos angélicos.
Seja como e o que for, a declaração de Alberto Mussa sobre uma casa-estante (ou seriam estantes-casa?) desabou sobre minha história e abriu com cunhas de inveja e de descoberta uma percepção de felicidade tipo Instagram. É possível alguém nascer entre livros? A felicidade mora em milhares de livros? Então é possível ser inoculado pelo vício da leitura por meio da biosmose com as estantes?
Em minha profissão, tão livresca e livreira, como a dos escritores, encontrei não-leitores em famílias abastadas e de biblioteca doméstica razoável, além de um cartão de crédito generoso que aceitava também a compra de livros. Encontrei leitores famintos e desejosos, olhando com cobiça para as vitrinas de antigas livrarias (hoje, são telas digitais), com os bolsos vazios, a cabeça a inferir narrativas na impossibilidade de as ler concretamente. Encontrei leitores escarrapachados em bancos, poltronas, beirais de janelas, no assoalho das ditas livrarias antigas, absortos viajantes de livros que podiam ler mesmo sem poder adquirir. Encontrei leitores, e a mim mesma, nos espaços de bibliotecas públicas, buscando, encontrando, emprestando, devorando os livros que o bolso vazio não conseguia manter nas tábuas-estantes do domicílio carente de pão, mesmo sonhando com poesia.
É possível uma casa com milhares de livros? Minha infância, como a de muitos leitores, costumava olhar as paredes e encontrar nos cantos mais desprezados dos armários apenas alguma dezena de volumes de uma pobre bibliografia escolar.
Talvez em algum tempo não tão longínquo, eu tenha associado um acervo volumoso com um acervo incomensurável de leituras, atestando “aqui está um leitor” ou “só daqui pode sair um leitor compulsivo”. Acabei aprendendo que ter livros não é ler livros. É apenas um indício de leituras. E indício não é prova, também aprendi.
A pandemia do monstruoso COVID 19 nos ensinou que até o cenário de livros podia ser apenas um pano de fundo cênico a indicar que o protagonista da fala da live exibia somente uma imagem de felicidade contínua, atestada pela quantidade de livros fakes.
Mas, mesmo fakes, as estantes pareciam escorar as falas, decorar a figura humana, anunciar uma iluminação desejosa. Porque ser leitor tem alto grau de feitiçaria potteriana, um incômodo clariceano prestes a irromper em criação, um alumbramento roseano a expandir o sentido das palavras, uma clareza (ou claridade) ítalocalvínica a iluminar o mundo e seus passageiros.
Diversamente de Alberto Mussa, minha infância não teve estantes e milhares era uma conta que eu não sabia fazer. Mas o vício da leitura, ah, esse sim, encontrou casa acolhedora, mimos e consistência.
Não tenho dúvida nesta etapa em que os anos de vida diminuem: a infância que não tive, eu a criei para mim. E milhares passou a ser meu cotidiano.
Ilustração de Poty Lazarotto para Sagarana, de Guimarães Rosa.
Ao longo dos anos em que trabalhei com leitura e formação continuada de professores, não foram poucas as vezes em que eu surpreendia os olhares descrentes dos ouvintes diante de minha afirmação de que leitura não é prazer – assim, definitivo, moralista, fechado – e sim um trabalho, que requer operosidade de todos e de cada um dos leitores. Ou já cansados antes mesmo de iniciar o trabalho. Ou secos e áridos diante da necessidade de postergar as possíveis lágrimas de prazer. Ou demissionários antes da ação, dada a exigência de muito mais trabalho.
Era melhor promover na leitura do texto literário o imediato bem-estar da mesmice, o riso solto do trocadilho sediço, a inoperância da historieta desengonçada e sebosa do texto estereotipado. Nada do trabalho cuidadoso, exigente, minucioso, envolvendo corpo e Inteligência e repertório e reflexão e tempo estendido. Mais fácil a resposta primeira e já formatada. Mais fácil a emoção do arrepio do que a conquista do sentido pessoal e significativo.
Para não cansar leitores e mediadores, sobrevivem uma escola que patina em seus índices há mais de vinte anos e uma população à mercê de qualquer notícia falsa, mas espetacular; reféns de nem-nens e de espertalhões, submissas ao atraso e minimizando (ou pior, desdenhando) o conhecimento.
Um país que, mesmo mudando os parâmetros, perde leitores continuadamente, não pode crer nas palavras citadas a seguir, porque seria reconhecer a própria falência.
“Ler um texto não é tarefa simples, requer competência. Requer atenção, memória, concentração, capacidade de relação e associação, visão espacial, certo domínio léxico e sintático da língua, conhecimento dos códigos narrativos, paciência, imaginação, pensamento lógico, capacidade para formular hipóteses e construir expectativas, tempo e trabalho. Um texto é um constructo que é preciso desconstruir e reconstruir e isso exige esforço, embora não signifique que seja isento de prazer. Ler não é resolver uma palavra cruzada, mas é sim encontrar um sentido. O sentido não é a famosa mensagem da qual tanto se falou (ou mal falou) em outros tempos, ou melhor, não é uma mensagem que se desate do texto, mas a mensagem que é [o texto]. O sentido do texto não é algo que se acrescente ao texto, é, repito, o próprio texto. O texto é parte invariável da leitura, o seu pilar, e o espaço comum de todas as leituras, e o fato de que estas sejam variáveis e diferentes não procede de nenhuma qualidade imanente, mas sim dos diversos fatores que se cruzam e entrecruzam durante o processo de leitura.”
(Constantino Bértolo. O banquete dos notáveis: sobre leitura e crítica. Livros da Matriz, 2014)