Marcos de uma Estrada Real

Marta Morais da Costa

Ler e escrever. Lire et écrire. Leggere e scrivere. To write and to read. Lesen und Schreiben

Essas palavras que, irmanadas, ecoam uma na outra a sonoridade final ou inicial, não constituem apenas verbos e rimas, mas propõem uma aliança  que seus praticantes recusam a desfazer. Leio para bem escrever. Escrevo para melhor ler. Qual dos dois, tal o enigma infantil – e transcendental – da galinha e do ovo, está na origem, é o momento inaugural de uma trajetória em códigos, textos e suportes?

Em décadas recentes, vozes que procuram atestar a importância dessa dupla ação física e intelectual povoam páginas impressas ou digitais. As opiniões, as definições, os depoimentos e as tentativas de descrição invadem a cultura em seus mais diferentes ambientes: a oralidade, o público massivo, a erudição mais refinada. 

Escritores no Brasil espalham-se pelos mais diferentes canais, códigos, plataformas e suportes. A cultura vê-se invadida por uma produção que parece fazer submergir os leitores e emergir escritores em cada canto, fresta e desvão deste país. Talvez seja um auspicioso sinal de um povo em necessidade premente de expressão pessoal. Talvez seja um sinal de um povo em desvio inconsciente da aprendizagem provocada pela leitura: escreve-se mesmo sem amadurecer leituras. Ou talvez a enxurrada de novos textos e nos mais variados suportes comprove que o nível intelectual de um povo talvez possa ser medido não pelo que se lê, mas pelo que se escreve. O que jogaria ao mar todas as pesquisas que achatam nosso orgulho nacional quando os brasileiros participam de concursos ou competições de leitura, compreensão e reflexão a partir do que leem, como o PISA, o Enem, o ENADE.

Sônia Rodrigues dedica um livro à descrição e à análise do RPG – ou seja, do Roleplaying game – um jogo alicerçado em personagens e enredo, arquitetado pelos jogadores ao jogar. O título é “Roleplaying games e a pedagogia da imaginação no Brasil”. Duas afirmações da autora chamaram-me a atenção. Eu as reproduzo para poder comentá-las.

A primeira delas afirma categoricamente que “Uma criança ou adolescente narrando histórias só com o auxílio de sua imaginação, sem repertório ou iniciação, está fadada a propor enredos pobres.”  (RODRIGUES, 2004, p.137). Não posso fugir a uma associação com a escola. Professores almejam que seus alunos sejam capazes de produzir textos denominados pela pedagogia do engano de “criativos” sem a devida preocupação com “repertório e iniciação”. Temas livres, redações de supetão, textos de baixa paródia, chavões, lugares-comuns, banalidades e trivialidades colocadas no alto do pódio da avaliação, como se fossem o suprassumo da capacidade expressiva dos pobres redatores iludidos.

E sabemos que não apenas a escola valoriza este campeonato de trivialidades narrativas ou poéticas. As estantes e os e-readers acumulam textos que não passam de um amontoado de clichês, de desabafos, de falsa espontaneidade em forma de narrativas (como as biografias de anônimos em busca da celebridade, de narcisos desejando que a água se transforme em espelho, de preferência com gambiarras de LED).

É verdade que aprendemos muito ao reconhecer e aplicar modelos, padrões, exemplos. Mais rapidamente aprende a ler quem tem em sua vida exemplos de leitores. A família, os professores, os amigos, um vizinho, um ídolo do cinema ou da música, alguém que leia e divulgue a leitura será sempre um indutor de leitores, um formador de leitores. São círculos concêntricos dentro das águas da cultura.  Mas “sem repertório, sem iniciação…os enredos serão pobres.” Seria como se o mundo começasse repetidamente da fase zero. Seria como se, em termos de leitura e escrita, o aprendiz estivesse sempre retornando ao período anterior à criação dos sumérios. O repertório criado pela história dos textos, o leitor-escritor que tem conhecimento ao menos de parte desse percurso, está melhor equipado para ler e escrever. Mesmo que posteriormente venha a se insurgir contra padrões e exemplaridades. Os pioneiros serão marcos inamovíveis da Estrada Real da leitura e da escrita.  

A segunda afirmação adota outra perspectiva: “Escreve o leitor que se arrisca à exposição. O leitor que não teme (em excesso, pelo menos) a rejeição ou aquele que precisa da companhia, do aplauso, da apreciação de alguém que o leia.” (RODRIGUES, 2004, p.185). Quando me deparei com esta frase, entrei em grave crise identitária. Escrevo há muito tempo com a ingênua intenção de expor ideias, preferencialmente. A forma reflexiva do verbo (expor-se) passava ao largo de minhas modestas pretensões. Mas aprendi que a linguagem é um confessionário ou um divã inescapável. Ao expor me exponho.  Nem Pablo Neruda com sua definição objetiva e professoral de texto  (“Escrever é fácil. Você começa com uma letra maiúscula e termina com um ponto final. No meio, você coloca ideias.”) me propiciou alívio à crise.

Talvez uma visão cética como a de Carlos Drummond de Andrade pudesse aquietar-me: “Há livros escritos para evitar espaços vazios na estante”. Materializar dessa forma a escrita, pensar apenas como um preenchimento de lacunas espaciais, como um quantitativo de linhas e volumes talvez pudesse retirar da escrita o peso da exposição da identidade.

Argumento enganoso! A escrita, mesmo de uma crônica desengonçada e despretensiosa sobre ler e escrever como esta, pode corroborar a visão de Elvira Vigna: “Quando escreve, você não fica igual ao que era antes. Você se modifica. Tem que pagar esse preço, de saber que você vai ficar diferente.”

 

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Neste período de epidemia – que se faz longo, além de qualquer expectativa – em que fomos encerrados por força de um vírus em nossas casas e em nós mesmos, quantos não deram início à leitura ou à escrita? São tantas as demonstrações livrescas (jogos, gincanas, declarações de amor, bibliotecas como pano de fundo de lives, crescentes vendas eletrônicas de livros, ebooks e audiolivros) que formam um lastro de euforia em educadores e promotores de leitura. Talvez seja apenas um fenômeno pandêmico que cessará com a chegada de vacinas anti-leitura.

Também a escrita se derrama em páginas, sites, blogs, mensagens, diários. Não necessariamente uma escrita literária ou estética. Mas algo como uma via de expressão a mais na sociedade tão afogada por palavras escritas. Mas a escrita, seja destampatória ou exercício, traz novidade para uma cultura avessa a textões e a qualquer papel que lembre, ou exija, o trabalho de ler.

À espera da vacina, à espera das transformações, à espera de outro olhar da sociedade para a escrita e a leitura, continuarei nesta cidadela, acreditando na resistência de seus muros feitos de livros e de suas janelas feitas de escritas. Talvez nada do anunciado “novo normal” se cumpra. Faz mal, não. Perder batalhas, perder a guerra, perder o juízo e até a própria história são fatos da vida. Nem sempre é possível nesta jornada sobre a Terra exclamar “veni, vidi, vici”.

Mas será sempre possível dizer, em latim ou em português, ego vivo, eu vivo, continuo viva.

Obs.: Esta é uma nova versão de um texto que publiquei em novembro de 2017. São dois anos, oito meses, milhares de páginas e uma epidemia de diferença entre aquela data e esta publicação. Algumas ideias e citações permanecem. Outras foram acrescentadas ou intensificadas. O propósito central permaneceu: tratar da relação entre leitura e escrita, porque continuo acreditando que essas duas ações fazem a diferença no mundo e na vida. Salvacionismo? Talvez. Eu diria antes que é um manifesto, um protesto e uma constatação.

Minha primeira live em tempo de epidemia ou A primeira live a gente nunca esquece

Marta Morais da Costa

Na placidez atemorizada dos dias de quarentena, o tempo escorre lentamente e os dias parecem mais longos. Nos vazios criados pelo estar constantemente em casa, surgem oportunidades e ânsia de experiências diferentes. Na tecnologia capaz de aproximar pessoas isoladas em casas diferentes, surgem recursos que sustentam ideias e ações de aproximação. Esses ingredientes combinados justificam o novo espetáculo chamado “live”, o já conhecido “ao vivo”.

O termo e o fato se tornaram corriqueiros e as pessoas abrem bocas desmesuradas para anunciar a novidade: a laaaaive.

Como tudo na vida da comunicação nasce, tem sucesso, redunda-se, satura e morre, viveremos o ciclo da novidade com bastante rapidez. Tão logo voltem os dias supostamente felizes, nada superará o encontro real de olhares. Ficarão resquícios do que vimos e ouvimos nas telas, pois a solidão e a distância são humanamente esporádicas.

O vivo abstrato e mediado por recursos tecnológicos é frio, tem apenas duas dimensões, de vez em quando apaga, trava, não me responde no tempo adequado do diálogo presencial. A oralidade transmitida tem atrasos, descompasso de movimentos labial e de som, são seres esquartejados, colados em álbum de figurinhas moventes, parecem marionetes humanas (realizando com a diferença de século e meio o sonho de Meyerhold!)

Mas quem não tem vida normal na clausura, caça com laives: abundantes, diversificadas em temas e semelhantes no formato. Como presas fáceis, capturadas pela impossibilidade de deslocar-se a lugares de convivência coletiva, podemos passar o dia todo a assistir as laives no compasso estranho de real conversação ou em formato histórico do já acontecido no Youtube. Umas funcionam como desfastio, outras como aprendizagem. Outras…bem…não funcionam simplesmente.

Participar de uma, no entanto, tem o encanto da novidade, o desafio do nunca feito, a exposição aos inesperados (sejam de fala ou de tecnologia). Uma vivência com todas as qualidades e defeitos da vida: a busca de saídas, a procura de contatos humanos, o compartilhamento, a exposição de ideias e valores, os encontros e desencontros.

Em parceria com Etel Frota e Vera Mussi, enfrentamos o tema “A literatura como remédio para uma epidemia”, uma fala a três, patrocinada pelo Departamento Cultural do Clube Curitibano. A discussão trouxe aos participantes uma reflexão sobre os modos como são recebidos os textos pelos leitores e o uso que dele fazem durante um período de quarentena. Também foi explorada a questão relativa aos estágios de enfrentamento mental durante esse período quase (às vezes totalmente) solitário e tenso, que põe à prova disposições diferentes de enfrentamento. Na conclusão, a literatura apareceu como uma forma múltipla, tanto em personagens, culturas, temas e narrativas. Pela diversidade própria do gênero, ela tem condições de atingir de modo diferente, leitores diversificados. Mais do que isso, o isolamento permitiu a exploração de outros suportes para o texto literário, seja o digital ou o audiolivro.

Não se pode também esquecer a importância das narrações orais que ocuparam muitos espaços das lives de diferentes leitores e narradores orais, amenizando a tesão, trazendo a público histórias e autores, provocando olhares diferentes sobre a realidade e a própria literatura.

No meu percurso profissional estive sempre disposta a aventuras. Fazer uma live nas condições atuais representou mais um desafio e me lembrou uma pequena crônica que escrevi sobre outra experiência que impactou o modo com que passei a mediar saberes e textos literários enquanto professora. A crônica é de 2006 e o passar do tempo apenas mudou a tecnologia. O assombro e a vontade de experimentar continuam os mesmos. Para quem tiver a paciência de ler, segue a transcrição do texto, tal como foi publicado pelo jornal “O Estado do Paraná”, que apoiava e divulgava uma crônica semanal sobre leitura e cultura (esta, sim, uma atitude que assombra pela ausência na atualidade).

A PRIMEIRA MULTIMÍDIA A GENTE NUNCA ESQUECE         

As aventuras de um professor em sala de aula só podem ser bem compreendidas à distância. Enquanto se dá a travessia pelas águas conturbadas dos deveres do magistério – preparação de aulas, reuniões, projetos, relatórios, infinitas leituras e correções e reescritas, além das prioritárias atividades na tarefa de transmitir/discutir o conhecimento – pouco tempo sobra para uma reflexão sobre o fazer docente e seus instrumentos.

            À medida que o tempo se esvai na sucessão vertiginosa dos números de horas, meses e anos, tomamos consciência das mudanças pelas quais passaram nossos dias em sala de aula, bem como da maneira como assimilamos, ou não, as teorias e os paradigmas, também estes em sucessão vertiginosa. A imersão no tempo presente costuma distorcer a proporcionalidade e mérito de fatos, pessoas, atitudes e pensamentos. Não seria diferente com a escola e seus agentes.

            Não faz tanto tempo assim, a tecnologia mais avançada em sala de aula era representada pelo flanelógrafo e pelo projetor de slides. Não faz tanto tempo assim, um sinal de modernidade era a projeção de transparências (lâminas, em algumas regiões do país) em preto e branco e, suprassumo dos encantos e despesas, a colorida! A era digital rapidamente jogou para o canto escuro das antiguidades esses materiais. Hoje, é com certa sensação de vergonha – e encontrando um ar de mal disfarçada comiseração de nosso interlocutor – que pedimos um retroprojetor para ilustrar, definir melhor, economizar nosso trabalho docente.

            As universidades fizeram do instrumental mulmidiático um fator de sedução para atrair novos alunos.  Quem organiza eventos se prepara com muitas unidades do já popular datashow, escolhendo salas especiais, porque sabe que palestrantes e conferencistas não abrem mão dessa tecnologia. As escolas, no entanto, ainda amargam essa deficiência a mais.

            O computador, já sabemos, não veio apenas para facilitar o trabalho docente e a aprendizagem discente. Trouxe consigo um novo modo de ler e nova textualidade. Provocou uma enxurrada de estudos e desencadeou uma reflexão intensa sobre a possibilidade de desaparecimento do livro. Passado o período terrorista, lidamos na atualidade com novas realidades em sala de aula. A tecnologia permitiu aos docentes revelar não o domínio sobre a máquina e a inventividade de formas visuais: demonstrou com grande clareza as deficiências cognitivas e didáticas dos utilizadores de multimídia.

            Tenho em minhas retinas da memória a imagem da primeira apresentação em datashow a que assisti. Para iniciar a apresentação, foram necessários um complexo trabalho técnico de montagem e, durante a palestra, a permanente assistência de um especialista em informática. Mas a revelação das imagens e a descoberta das possibilidades comunicativas e sedutoras daquela apresentação marcaram profundamente os neófitos como eu. O novo brinquedo, ou melhor, a nova tecnologia permitia transformar em imagens idéias e, sobretudo, relações inumeráveis. Além de trazer um certo clima cinematográfico ou televisivo para o ambiente radiofônico da sala de aula.

            Muitos e muitos slides depois, já me é possível utilizar e conviver com o instrumental (hoje mais simplificado e banal), além de produzir alguma análise sobre seu uso docente.

            Em ensaio de 1996, José Dieguez atribuía às imagens três funções básicas: a funções informativa, persuasiva e de catalisação de experiências. Na primeira, abria para quatro subgrupos: o primeiro realiza a substituição de uma realidade concreta, o segundo trata de categorizar os objetos, o terceiro explica e organiza as relações entre objetos, e o quarto facilita a amostragem de informação, porque apenas traduz a linguagem verbal em imagem.

            Já a função persuasiva está apoiada em dois tipos de imagem: as motivadoras e as estéticas. A função final, a catalisadora, eu a vivi naquele primeiro contato com a possibilidade de organizar as imagens para transformá-las em material vivo, móvel, docente.

Mas, ao longo de minha experiência, tenho assistido a um uso preferencialmente informativo e pouco estético dessa tecnologia. A cor, as formas, os recursos de som e movimento são utilizados muitas vezes em si mesmos. A fala docente que os acompanha tornou-se repetição da imagem. Não foram poucas as ocasiões em que o professor leu o texto tal qual inscrito na imagem da tela. A função de facilitação redundante, concretizada no uso da multimídia como um retroprojetor animado e colorido, sempre me dá a impressão de uma rubra e macia cereja enfeitando um bolo insosso e pétreo. Enfeite tecnológico para criar um ambiente de modernidade, mascarando conteúdo e prática docente primitivos, deficitários e enganadores.

A associação imediata que um leitor crítico dessa nova linguagem, proposta pelo computador, faz é com a televisão, cheia de recursos de imagem, cor e movimento, tratando do óbvio com obviedade, persuadindo pela redundância, estimulando o olhar catatônico com uma enxurrada de signos visuais primários.

Quando o ensino supervaloriza a tecnologia (por mais rápida e universal que possa ser) em detrimento do saber, podemos estar seguros de que o conhecimento foi se alocar num canto escuro da biblioteca, em livros ainda fechados, fáceis de abrir e movimentar porque não precisam de cliques e teclas.

(crônica publicada em “O Estado do Paraná” em 10 de março de 2006) 

A imaginação pede passagem na formação de leitores

Marta Morais da Costa

Pergunte ao professor se as crianças gostam de ouvir histórias. Pode apostar que de 100 entrevistados, 100 deles dirão que elas adoram. Nem importa muito a qualidade dessas histórias, nem a do contador. Vale muito mais a dose de fantasia que elas trazem. Em 2006, saiu publicado “Sobre histórias de fadas”, livro de Tolkien, autor de “O senhor dos anéis”. Éum texto excelente sobre esse gênero literário, com um estudo sobre a diferença entre magia, encantamento e fantasia, termos que não se equivalem integralmente. Para o referido autor, a magia finge produzir uma alteração no Mundo Primário, aquele que atinge os sentidos mais concretos. Corresponde a narrativas de mundos imaginários, muitas vezes fora da realidade, mas que acabam em situação conhecida: tudo não passara de um sonho da personagem! O extraordinário se reduz a um sonho, por isso Tolkien o considera magia, resultado de um truque que tem explicação lógica.

Acima do Primário, o autor posiciona o Mundo Secundário, sustentado pela necessidade de ficção e de fantasia. Nele é que habita o encantamento, objetivo buscado pela fantasia, uma “atividade humana natural”, que não destrói nem nega a razão. “A fantasia criativa está fundamentada no firme reconhecimento de que as coisas são assim no mundo como este aparece sob o Sol.”, afirma o escritor. Para ter acesso ao Secundário, a imaginação é a chave, e consiste na capacidade da mente humana em “formar imagens mentais de coisas que não estão presentes de fato”.. Quando se aplica a operações mais complexas, pode ser denominada fantasia. É no imaginário que mora o encantamento; não no mágico. O mundo natural – Mundo Primário, segundo Tolkien – quando necessariamente transformado pela capacidade imaginativa dos seres humanos, deixa de ser primário. No Secundário, impera a ordem da fantasia, ou seja, é um mundo comandado por imagens mentais que buscam encantar, construído sobre bases semelhantes ao Primário, mas sem a necessidade de materializar-se. Vivo e real à sua maneira.

Essa rede de significados e conceitos nos auxilia a entender alguns comportamentos infantis e como eles se relacionam com histórias inventadas –  ouvidas, escritas ou lidas. Essa compreensão auxilia o trabalho pedagógico dos mediadores de leitura e o processo de formação do leitor.

Ao querer ouvir muitas vezes a mesma história, a criança deixa agir sua imaginação, suspende voluntariamente a incredulidade sobre os fatos narrados e passa a acreditar no que ouve como se fosse realidade. É a voluntária adesão do leitor ao imaginário contido no texto literário. É sua caminhada pelo Mundo Secundário.

Como pode o letramento aproveitar-se da natureza da fantasia infantil e traduzi-la na aprendizagem dos escritos e da leitura?

Foto por Daria Shevtsova em Pexels.com

Em um primeiro momento, o ato de contar histórias, que dá vida à literatura, aproveita essa inclinação da criança para o imaginário.

A segunda etapa consiste em transpor a voz do professor para o livro – seja na versão impressa, digital ou em audiolivro – permite à criança visualizar os sons que ouviu. Deve-se cercar o ambiente com quadrinhos, ilustrações, recortes, desenhos, livros, CDs, DVDs, vídeos. Não é desse modo que as histórias vivem no cotidiano?

Em uma terceira etapa, deve-se evitar que a escola transforme a fantasia em um exercício apenas, seja gramatical ou de conteúdo, seja um desenho. A escola tenta dominar o imaginário infantil, seja separando o imaginado e a realidade (“isso é sonho”, “só na historinha”, dizem os professores). Os contos são usados para moralismo, lição, direcionamento para o real. São considerados mágicos, como se essa fosse uma qualidade positiva para a imaginação humana. Ao contrário, tem forte cunho reducionista. Tudo fica primário, explicável, uma extensão do real.

Uma quarta etapa refere-se à escola que, pragmática, transforma a fantasia em elementos de trabalho pedagógico, em “atividade”, termo que esconde a intenção de cobrança, avaliação e controle.

Ouvir narrativas tem destacado papel na formação de esquemas narrativos mentais, que permanecem na memória das crianças, e retornam quando são evocadas por outras narrativas, lidas ou ouvidas. Explica porque as crianças acostumadas às narrativas aprendem a ler e a escrever com maior facilidade e criatividade.

Quando o adulto lê para a criança, em especial textos de literatura, não apenas a introduz no mundo da escrita e de suas funções, como oportuniza momentos de intimidade com as letras, que podem converter-se em desejo de ler, de decifrar as letras por conta própria. E a literatura age emotivamente sobre o leitor

Se um quadro com motivos alimentares (frutas, comidas, temperos) estimula o apetite, por que não acreditar em resultado semelhante com textos escritos literários e a leitura? A exposição da criança aos textos do mundo cria a necessidade de ler. E pode causar crises de abstinência quando a necessidade não for atendida.

Não há receitas infalíveis para a passagem da alfabetização ao letramento, mas não se consegue autonomia sem práticas, sem um progressivo e contínuo exercício em que o leitor vai aprendendo a lidar com diferentes esquemas e normas que os textos naturalmente contêm. Basta associar a dificuldade que os mais velhos sentem ao lidar com a leitura de quadrinhos ou na tela do computador.

A criança se comporta diante dos textos que lhe são desconhecidos como o ancião: precisa aprender, exercitar-se – e muito – para descobrir os sentidos, para compreender os mecanismos de organização e funcionamento textual.

Neto e avô vivem realidade em espelho nessas duas situações. O que vai impelir um ou outro ao atendimento da carência é a consciência da falta. Se me faz falta, busco eliminá-la. A leitura carece deixar de ser luxo, para tornar-se necessidade, preenchimento de vazios na alma.

Daí, bró? Beleza, Machadão?

                                                                                              Marta Morais da Costa

Machado de Assis, por Stegun

Um terço do corpo tatuado, os lóbulos esbanjando enormes botões pretos assemelhados a bodoques, fones devidamente posicionados nos ouvidos para curtir um heavy metal altissonante, skate nas mãos e boné de pala reta – colocado ao contrário, é claro – e  a última gíria na boca: tudo isso me permitiria, anciã provecta, divar na tchurma do meu neto?

Segundo alguns equivocados (vá lá, talvez bem intencionados) lidadores culturais, atitude e ação semelhantes podem ser adotadas com textos machadianos com o objetivo meritório de conquistar leitores.

Depois da morte do autor, constatada e epitafiada por Foucault e Barthes, estaríamos vivendo os lúgubres tempos da morte da autoria e da autoridade escrevente. Nada de a linguagem expressar um tempo e uma cosmovisão históricos. O importante agora é travesti-la em garota-propaganda para seduzir o mercado de leitores. Diriam os anjos do Mal: bem feito para quem colocou o leitor como juiz absoluto! Tal como nas famílias condescendentes, o adolescente bate o pé e as chaves do carro deslizam para suas mãos. Então, adolescente e leitor viram rei.

Queremos conquistar leitores? Sim. Temos recursos para isto? Sim. Até mesmo trocar autoria e estilo dos maiores escritores da língua portuguesa para adequar obras à compreensão tida como rastaquera e rasteira dos adolescentes e dos jovens? Sim e não! Sim, para a finalidade de prolongar, aprofundar e manter a imbecilidade cultural reinante. Não, se entendermos que a leitura é também desafio e conquista, e não é acomodação.

A formação de leitores para a literatura pela escola tem produzido resultados esquizofrênicos. Alguns poucos alunos se dizem leitores por causa de seus professores. A maioria foge entediada da leitura obrigatória, dos livros considerados clássicos ou de qualquer texto que exija um razoável espaço de tempo e concentração, uma reflexão de profundidade mínima, um trabalho de compreensão mais apurado. Essa realidade é flagrada nos índices nacionais e internacionais a respeito da leitura de qualidade, é flagrada na absurda ausência de usuários de bibliotecas e frequentadores de livrarias.  Talvez seja arcaísmo pensar bibliotecas e livrarias físicas. Pensemos, então, em celulares, tablets e e-readers. Basta averiguar o que fazem os aficionados de produtos de alta tecnologia que, alheios ao entorno, se dedicam a teclar e alisar telas o tempo todo. Quantos deles estão lendo algum livro digital?

Para consertar esse mundo quase sem literatura, pensam alguns que basta aplicar aos textos a mesma idiotia pedagógica da facilitação, uma metodologia de facilitação.  Pois é preciso ler os clássicos – porque sempre são eles os bodes expiatórios de programas e professores que, para formar leitores, servem-se da papa fina da literatura, usando-a como angu. Então, para que a pretensa e, segundo eles, a intransponível dificuldade de leitura seja amenizada, não se furtam a resumir, adaptar, extrair palavras, sinonimizar pobremente os textos literários de qualidade. Há tempos a escola vem operando essa mutilação. Agora, a intenção, a metodologia e os recursos ganham notoriedade na imprensa com o aval do governo federal.

Relato uma experiência do início dos anos 90 do século passado.  Em União da Vitória, cidade do interior do Paraná, uma professora, orientada por Sandra Konell, na época mestranda da Universidade Federal do Paraná, trabalhou com alunos de NOVE anos textos de Kafka (“A ponte”) e de Guimarães Rosa (“A menina de lá”) entre outros da literatura infantil e adulta. O resultado foi do choque e catatonia iniciais ao deslumbramento e aprendizagem finais. Onde esteve a varinha de condão desse sucesso? No trabalho professoral de mediação qualificada, na crença de que os alunos mesmo muito jovens não são estúpidos e incapazes, e, não menos importante, na certeza de que a literatura de qualidade (mesmo que não seja Machado de Assis, vítima contumaz de citações sem leitura) pode abrir horizontes de compreensão do mundo.

Uma perguntinha me atormenta: o cáustico, desvendador e elegante humor machadiano precisará ser transformado em deboche, em stand-up comedy, em cômico de séries televisivas para ser melhor compreendido?