A imaginação pede passagem na formação de leitores

Marta Morais da Costa

Pergunte ao professor se as crianças gostam de ouvir histórias. Pode apostar que de 100 entrevistados, 100 deles dirão que elas adoram. Nem importa muito a qualidade dessas histórias, nem a do contador. Vale muito mais a dose de fantasia que elas trazem. Em 2006, saiu publicado “Sobre histórias de fadas”, livro de Tolkien, autor de “O senhor dos anéis”. Éum texto excelente sobre esse gênero literário, com um estudo sobre a diferença entre magia, encantamento e fantasia, termos que não se equivalem integralmente. Para o referido autor, a magia finge produzir uma alteração no Mundo Primário, aquele que atinge os sentidos mais concretos. Corresponde a narrativas de mundos imaginários, muitas vezes fora da realidade, mas que acabam em situação conhecida: tudo não passara de um sonho da personagem! O extraordinário se reduz a um sonho, por isso Tolkien o considera magia, resultado de um truque que tem explicação lógica.

Acima do Primário, o autor posiciona o Mundo Secundário, sustentado pela necessidade de ficção e de fantasia. Nele é que habita o encantamento, objetivo buscado pela fantasia, uma “atividade humana natural”, que não destrói nem nega a razão. “A fantasia criativa está fundamentada no firme reconhecimento de que as coisas são assim no mundo como este aparece sob o Sol.”, afirma o escritor. Para ter acesso ao Secundário, a imaginação é a chave, e consiste na capacidade da mente humana em “formar imagens mentais de coisas que não estão presentes de fato”.. Quando se aplica a operações mais complexas, pode ser denominada fantasia. É no imaginário que mora o encantamento; não no mágico. O mundo natural – Mundo Primário, segundo Tolkien – quando necessariamente transformado pela capacidade imaginativa dos seres humanos, deixa de ser primário. No Secundário, impera a ordem da fantasia, ou seja, é um mundo comandado por imagens mentais que buscam encantar, construído sobre bases semelhantes ao Primário, mas sem a necessidade de materializar-se. Vivo e real à sua maneira.

Essa rede de significados e conceitos nos auxilia a entender alguns comportamentos infantis e como eles se relacionam com histórias inventadas –  ouvidas, escritas ou lidas. Essa compreensão auxilia o trabalho pedagógico dos mediadores de leitura e o processo de formação do leitor.

Ao querer ouvir muitas vezes a mesma história, a criança deixa agir sua imaginação, suspende voluntariamente a incredulidade sobre os fatos narrados e passa a acreditar no que ouve como se fosse realidade. É a voluntária adesão do leitor ao imaginário contido no texto literário. É sua caminhada pelo Mundo Secundário.

Como pode o letramento aproveitar-se da natureza da fantasia infantil e traduzi-la na aprendizagem dos escritos e da leitura?

Foto por Daria Shevtsova em Pexels.com

Em um primeiro momento, o ato de contar histórias, que dá vida à literatura, aproveita essa inclinação da criança para o imaginário.

A segunda etapa consiste em transpor a voz do professor para o livro – seja na versão impressa, digital ou em audiolivro – permite à criança visualizar os sons que ouviu. Deve-se cercar o ambiente com quadrinhos, ilustrações, recortes, desenhos, livros, CDs, DVDs, vídeos. Não é desse modo que as histórias vivem no cotidiano?

Em uma terceira etapa, deve-se evitar que a escola transforme a fantasia em um exercício apenas, seja gramatical ou de conteúdo, seja um desenho. A escola tenta dominar o imaginário infantil, seja separando o imaginado e a realidade (“isso é sonho”, “só na historinha”, dizem os professores). Os contos são usados para moralismo, lição, direcionamento para o real. São considerados mágicos, como se essa fosse uma qualidade positiva para a imaginação humana. Ao contrário, tem forte cunho reducionista. Tudo fica primário, explicável, uma extensão do real.

Uma quarta etapa refere-se à escola que, pragmática, transforma a fantasia em elementos de trabalho pedagógico, em “atividade”, termo que esconde a intenção de cobrança, avaliação e controle.

Ouvir narrativas tem destacado papel na formação de esquemas narrativos mentais, que permanecem na memória das crianças, e retornam quando são evocadas por outras narrativas, lidas ou ouvidas. Explica porque as crianças acostumadas às narrativas aprendem a ler e a escrever com maior facilidade e criatividade.

Quando o adulto lê para a criança, em especial textos de literatura, não apenas a introduz no mundo da escrita e de suas funções, como oportuniza momentos de intimidade com as letras, que podem converter-se em desejo de ler, de decifrar as letras por conta própria. E a literatura age emotivamente sobre o leitor

Se um quadro com motivos alimentares (frutas, comidas, temperos) estimula o apetite, por que não acreditar em resultado semelhante com textos escritos literários e a leitura? A exposição da criança aos textos do mundo cria a necessidade de ler. E pode causar crises de abstinência quando a necessidade não for atendida.

Não há receitas infalíveis para a passagem da alfabetização ao letramento, mas não se consegue autonomia sem práticas, sem um progressivo e contínuo exercício em que o leitor vai aprendendo a lidar com diferentes esquemas e normas que os textos naturalmente contêm. Basta associar a dificuldade que os mais velhos sentem ao lidar com a leitura de quadrinhos ou na tela do computador.

A criança se comporta diante dos textos que lhe são desconhecidos como o ancião: precisa aprender, exercitar-se – e muito – para descobrir os sentidos, para compreender os mecanismos de organização e funcionamento textual.

Neto e avô vivem realidade em espelho nessas duas situações. O que vai impelir um ou outro ao atendimento da carência é a consciência da falta. Se me faz falta, busco eliminá-la. A leitura carece deixar de ser luxo, para tornar-se necessidade, preenchimento de vazios na alma.

Daí, bró? Beleza, Machadão?

                                                                                              Marta Morais da Costa

Machado de Assis, por Stegun

Um terço do corpo tatuado, os lóbulos esbanjando enormes botões pretos assemelhados a bodoques, fones devidamente posicionados nos ouvidos para curtir um heavy metal altissonante, skate nas mãos e boné de pala reta – colocado ao contrário, é claro – e  a última gíria na boca: tudo isso me permitiria, anciã provecta, divar na tchurma do meu neto?

Segundo alguns equivocados (vá lá, talvez bem intencionados) lidadores culturais, atitude e ação semelhantes podem ser adotadas com textos machadianos com o objetivo meritório de conquistar leitores.

Depois da morte do autor, constatada e epitafiada por Foucault e Barthes, estaríamos vivendo os lúgubres tempos da morte da autoria e da autoridade escrevente. Nada de a linguagem expressar um tempo e uma cosmovisão históricos. O importante agora é travesti-la em garota-propaganda para seduzir o mercado de leitores. Diriam os anjos do Mal: bem feito para quem colocou o leitor como juiz absoluto! Tal como nas famílias condescendentes, o adolescente bate o pé e as chaves do carro deslizam para suas mãos. Então, adolescente e leitor viram rei.

Queremos conquistar leitores? Sim. Temos recursos para isto? Sim. Até mesmo trocar autoria e estilo dos maiores escritores da língua portuguesa para adequar obras à compreensão tida como rastaquera e rasteira dos adolescentes e dos jovens? Sim e não! Sim, para a finalidade de prolongar, aprofundar e manter a imbecilidade cultural reinante. Não, se entendermos que a leitura é também desafio e conquista, e não é acomodação.

A formação de leitores para a literatura pela escola tem produzido resultados esquizofrênicos. Alguns poucos alunos se dizem leitores por causa de seus professores. A maioria foge entediada da leitura obrigatória, dos livros considerados clássicos ou de qualquer texto que exija um razoável espaço de tempo e concentração, uma reflexão de profundidade mínima, um trabalho de compreensão mais apurado. Essa realidade é flagrada nos índices nacionais e internacionais a respeito da leitura de qualidade, é flagrada na absurda ausência de usuários de bibliotecas e frequentadores de livrarias.  Talvez seja arcaísmo pensar bibliotecas e livrarias físicas. Pensemos, então, em celulares, tablets e e-readers. Basta averiguar o que fazem os aficionados de produtos de alta tecnologia que, alheios ao entorno, se dedicam a teclar e alisar telas o tempo todo. Quantos deles estão lendo algum livro digital?

Para consertar esse mundo quase sem literatura, pensam alguns que basta aplicar aos textos a mesma idiotia pedagógica da facilitação, uma metodologia de facilitação.  Pois é preciso ler os clássicos – porque sempre são eles os bodes expiatórios de programas e professores que, para formar leitores, servem-se da papa fina da literatura, usando-a como angu. Então, para que a pretensa e, segundo eles, a intransponível dificuldade de leitura seja amenizada, não se furtam a resumir, adaptar, extrair palavras, sinonimizar pobremente os textos literários de qualidade. Há tempos a escola vem operando essa mutilação. Agora, a intenção, a metodologia e os recursos ganham notoriedade na imprensa com o aval do governo federal.

Relato uma experiência do início dos anos 90 do século passado.  Em União da Vitória, cidade do interior do Paraná, uma professora, orientada por Sandra Konell, na época mestranda da Universidade Federal do Paraná, trabalhou com alunos de NOVE anos textos de Kafka (“A ponte”) e de Guimarães Rosa (“A menina de lá”) entre outros da literatura infantil e adulta. O resultado foi do choque e catatonia iniciais ao deslumbramento e aprendizagem finais. Onde esteve a varinha de condão desse sucesso? No trabalho professoral de mediação qualificada, na crença de que os alunos mesmo muito jovens não são estúpidos e incapazes, e, não menos importante, na certeza de que a literatura de qualidade (mesmo que não seja Machado de Assis, vítima contumaz de citações sem leitura) pode abrir horizontes de compreensão do mundo.

Uma perguntinha me atormenta: o cáustico, desvendador e elegante humor machadiano precisará ser transformado em deboche, em stand-up comedy, em cômico de séries televisivas para ser melhor compreendido?