Vento

Marta Morais da Costa

 
Vento que balança as palhas dos coqueiros
vento que encrespa as ondas do mar
vento que assanha os cabelos da morena
me traz notícia de lá
(Prece ao vento, de Luiz Fernando Câmara, Gilvan Chaves e Alcy Pires Vermelho.)

– Hoje o vento está para chuva, disse a mãe.

– Mas o rádio falou que vai ter sol, mãe! , retrucou sem titubear Julieta.

– Eu sei que a moça do tempo falou, mas é só olhar para o céu. Vento mais nuvem rabo de galo não dá outra. Até amanhã será uma chuvarada…

Julieta nada falou, mas confiava mais na meteorologia. Afinal, havia aprendido na escola o valor da ciência e a fé no progresso.

A mãe voltou à costura. Estava cansada, os olhos doíam, mas sentia muito prazer em costurar vestidos para a filha, Sempre inventava um tipo diferente de mangas, às vezes alterava o modelo do corte da saia, a posição dos botões, as fitas, o formato dos decotes e, sobretudo, as nervuras. O resultado de tanto trabalho a deixava tão realizada! Ainda mais que no corpo da filha qualquer roupa caía bem. Parecido com ela: quando moça não tinha páreo para sua elegância. Fosse na missa, na matinê no Cine Palácio, na visita às amigas, nas festas de aniversário, no baile da Sociedade 7 de Abril. Procurava um jeito modesto de olhar, meio cabisbaixa, mas, como uma onda de admiração, os olhares dos outros atravessavam sua modéstia e batiam forte em seu coração orgulhoso.

Um rápido cruzar de nuvem carregada toldou suas lembranças. A vida difícil e o tempo consumiram aquele pequeno orgulho e a modelagem de seu corpo. Hoje os quadris largos e o andar inseguro soterram a elegância juvenil. Mas sua filha, ah, tão linda, apaga esse desgosto!

Corta, alinhava, costura, desmancha, costura novamente, coloca os aviamentos finais. Está nessa labuta há três dias, mas o resultado certamente ficará bom.

– Mãe, vou sair. Até a casa da Nieta. Volto logo.

Sozinha, a mãe coloca no trabalho maior atenção. Ouve-se apenas o ritmo descompassado da agulha da máquina, ligando bobina e lançadeira, cumprindo o percurso que a mão desenha. As horas convertem-se em minutos. O vestido toma forma e encanto.

Aos poucos, enquanto as mãos enfrentam a tarefa de terminar a costura, o pensamento dança entre lembranças ao som da máquina de costura. Tia Filomena ocupou de imediato o nascer da memória: aprendera com ela a costurar. Ainda adolescente fora morar na casa da tia por alguns meses, “pra mode aprendê as custura”, segundo a mãe. Chegou ressabiada, com a sacolinha de roupas poucas e já gastas, com o jeito de menina da roça, olhar baixo, magrela, sandálias rotas. Tia Filomena a recebeu como filha: para aprender, para trabalhar, para receber conselhos e corretivos. No começo, as mãos mal controlavam os anéis das lâminas da tesoura e muito menos a direção do corte. Insistia, refazia, ensaiava os moldes em papel, firmava os pulsos. Aos poucos, juntando as duas paciências, ela e a tia começaram a trabalhar em dupla. Do alinhavo à costura final, cada uma fazia uma parte. Os vizinhos começaram a gostar das roupas que saíam da Filomena: saias de organdi, vestidos de chita e flanela, camisas de algodão, blusas de seda.

A máquina parece conversar com as lembranças da mãe: o tecido do vestido engancha-se na teia dos pensamentos e o passado redesenha-se a cada ponto e corte. O prazer de apender é agora o de criar e fazer: tia Filomena, que Deus a tenha, sempre soube que a menina franzina se tornara mulher de valia por sua graça e ajuda.

Voltou outra para a casa de seus pais. Ali sentiu que sua vida estava em outro lugar e foi embora para a cidade no carro de tio Anselmo para trabalhar na loja dele, vendendo coisas de enfeitar a casa. Enquanto vendia, sonhava com a sua casa, a família que iria criar, o marido de quem cuidar. Não sonhou muito. A realidade veio na pessoa do Antônio, boa pinta, operário da fábrica de autopeças, papo firme.

A máquina de costura silencia para ouvir um suspiro profundo. A mãe é tomada por uma lembrança morna de desejo. Ah, que rapaz cheiroso! Aquele sorriso infantil somado ao olhar de menino travesso mudou o rumo de sua vida. A primeira camisa que fez para ele teve que passar por umas cinco ou seis provas porque o melhor da testagem era deixar a mão escorregar pelo tecido das costas em forma de carinho com se fosse uma investigação de falhas na costura. Tinha de acabar como previsto: altar e cama.

O que ficou apenas no desejo foi a família grande, de muitos filhos. O tempo e o desamor fizeram da mãe mais uma peça defeituosa, descartada na lixeira da fábrica. Em uma das curvas da vida se viu sozinha mais Julieta. Mas a mãe não dá tempo para a tristeza. A máquina volta a ritmar o trabalho e o vestido remexe-se sobre o calcador, espalhando-se sobre a mesa e enxotando as lembranças de volta ao passado.

Julieta retorna antes de o trabalho estar pronto. Ao passar pela porta do quarto de costura, lança um olhar despreocupado, mas de imediato suspende a respiração e o olhar. O vestido é um primor! Nem tem tempo de segurar a autocensura: as amigas iriam morrer de inveja! Nieta, Bibi, Aléssia, Ciça, todas iriam querer um parecido ou igual. Mais forte veio o olhar de admiração do Alex. Julieta sorriu, prevendo um casinho de provocar carinhos e, quem sabe, ardências menos infantis.

– Mãe, que lindo! Posso provar?

– Ainda não terminei, Julieta. Faltam os acabamentos.

Percebendo a ansiedade da filha, consente. Julieta roda o quarto, expande-se para a sala, usa todo o corredor, desfilando a la Giselle, contente de si, agradecida à mãe, fazendo planos.

A noite toda a casa parecia estremecer com a ventania: janelas, portas, paredes. A tarde traz a tormenta, a inquietude e mais temor. Fechadas em casa, mãe e filha, correm a socorrer goteiras, a reforçar janelas, a impedir a água de passar sob as frestas das portas.

De nada adiantou: a casa não resistiu ao ciclone bomba e desabou. Na correnteza da enchente ficou a boiar, desvalido, de braços abertos, saia em roda e todo ataviado um lindo vestido vermelho, vazio de sua dona e da fada de mãos habilidosas que o criara.

“Vento diga, por favor,
aonde se escondeu o meu amor.”