Marta Morais da Costa
No alto da escada, ela cantava. Não o sucesso do momento, nem a cantiga de seus amores perdidos ou da esperança do reencontro. Cantava a alegria de estar viva e a beleza da natureza. Trazia do mundo pássaros cantores, brilhos de sol, esperança de chuvas, plantas a germinar.
A garganta abria sons de poesia, rimas alternadas, perfeitas, compassos de canções antigas de um povo assinalado pela alegria. O ar ganhou cores e sentidos. Os minutos ficaram congelados em relógios ocultos, mas implacáveis. A quentura da canção inundou o ar gélido da manhã.
O degrau me congelou no espaço. Os ouvidos me içaram. Foi-se sorrateira a ansiedade das horas que fechariam o dia. Nem compromissos, nem promessas, nem programas. A vida suspensa em lábios e sons e ritmo.
No encontro da música a cortina de um palco abrindo-se afoita e leve. Vinha do passado o reconhecimento: era o canto melancólico e suave da infância longínqua. Lábios maternos a acalentar a filha rebelde, a recusar adormecer-se em um tempo de agitação, a anular no sono as horas de brincar, a recusar o apelo dos jogos em companheirismo infantil.
As palavras adocicadas pelo afeto entravam, então, em ouvidos inquietos que pediam exclamações e interjeições. Vinham falando de prados e pássaros, de amores distantes e luares brilhantes. Promoviam o encontro do dedicado amante e cavaleiro e sua dama distante e altaneira. Construía em palavras castelo e caminhos, trazia nos sons o desejo do amor e da perda de si.
Eu, criança, nada entendia daquele enredo, mas entendia da presença, do afeto, dos sons cálidos, da suave calma que aos poucos fechava os olhos e expandia a paz. E adormecia sonhando amores outros, ainda inatingíveis e já plenos.
O canto se interrompe. Uma risada estilhaça o ambiente. Ao lado da voz, um homem, desses trabalhadores braçais, magro, negro, pobre. Em sorriso franco, olhar travesso, as palavras ecoaram a claridade do canto: “Eu gosto tanto quando você canta para mim: o dia fica azulzinho.”
Terminei de subir a escada e, sorrindo, atravessei a porta de vidro. O dia ficara azulzinho.
