Marta Morais da Costa
“Ele foi chegando de mansinho.”
A frase não me saía da cabeça. Lia textos, arrumava a casa, aguava as flores, passava a roupa. E ela continuava a martelar o cérebro e a memória.
Quem era “ele”? Chegava aonde? Por que de “mansinho”?
A frase foi ganhando boca e olhos, uma silhueta desenhou-se e ele veio andando para dentro de mim. Sem nome, sem perfil, somente andando.
Passei a emoldurar um rosto: cabelos negros, encaracolados. Abundantes. E uma fala tranquila e clara: “Cheguei.”
Ainda não consigo distinguir um nome e qual é nossa relação. Mas é de amor, sinto.
Aos poucos descubro que ele morou comigo por um tempo. Ocupou um espaço. E meu pensamento. Mais do que isso: conheceu meus desejos e meus desamores. Nutriu-se de um modo de olhar para o mundo e para as pessoas, que encontrava pontos de semelhança com o meu. Mas diferente em arestas e colorido. Como se o menino quisesse mostrar independência, sem provocar divergências.
Aos poucos desfiava-se um rosário de sons: ora falas, ora cantigas. E a gente brincava, se divertia e silenciava. Mas logo depois a conversa fazia uma curva e retornava mais lenta, com fendas e desvãos. A gente pensava que pensava em um e no outro. Até nem precisar falar, olhando, de mansinho. Rindo, de mansinho. Amando.
Agora sei quem ele é. Por ele, conheci outras frações de mim.
E talvez ele saiba que partes são essas.

Em 9 de maio de 2022