Marta Morais da Costa
O dia amanheceu úmido, neblinoso. A chuva havia lavado a calçada, os ninhos, as folhagens. A água levara com ela a secura dos olhos, da boca, do coração. O poder sonoro dos pingos saindo das calhas, pingando do telhado, escorrendo folhas abaixo, derramando-se pelo chão trazia conforto e sonolência.
Era um dia outro. As paredes calaram as ofensas, os móveis guardaram a violência do olhar e das mãos. O rosto marcado suavizou-se. Havia ainda esperança.
Que passava longe da presença dele, da frieza do olhar, da rudeza da fala.
Era feita de pedaços de lembranças felizes, de toques sedutores, de carícias de fogo. Era uma presença tênue do passado que se agigantava enquanto o presente projetava uma pequenez ameaçadora.
“Sua vadia! Preguiçosa! Enquanto eu ralo pra trazer comida pra casa, você se esbalda nesse sofá o dia inteiro! Cadê meu almoço?”. A ladainha era longa, os gritos alcançavam a vizinhança. Quando saísse à rua tinha certeza o olhar dos vizinhos teria a mesma frieza e desprezo que rondava os quartos, a sala, a cozinha de sua casa.
Não saía.
Consolava-se com o vídeo da cerimônia de casamento a rodar em sua solidão os momentos de alegria, de beijos e abraços, de valsas e cantorias, de um noivo carinhoso e de amigos risonhos. Vivia nas imagens o que a vida lhe roubara no cotidiano.
Não se defendia.
Jamais mostraria a ele, em palavras ou atos, a dor da solidão, a mesquinhez da vida sem horizontes, os sonhos derrotados.
Lembrava as queixas da mãe, as confissões das amigas. Por onde andam essas mulheres? Terão rompido os grilhões, cavado seu túmulo em vida, escolhido a cabeça baixa, o sim senhor? Escalaram o muro e vivem do outro lado, sorrindo suas dores, os olhos brilhando e o coração em sossego?
Culpa sua se nada sabe delas. Escolheu sua solidão e o prazer em humilhar-se e silenciar.
Mas um dia…
Quem sabe um dia após uma tempestade. Um dia após um dilúvio. Outro amanhecer e uma nova neblina…
Levanta do sofá, desliga o televisor, esconde o vídeo e se propõe a caprichar no almoço. Para quem? Sem perceber, desvia da cozinha e se descobre no quarto. Vazios os cabides, a sapateira. Foram-se ternos camisas gravatas e os pijamas. O guarda-roupa sorri entre as falhas das prateleiras. Vazios se completam.
Coloca sapatos altos, vestido novo, maquilagem o quanto baste. A chave da casa à mão. Sai e fecha a porta da rua, chaveia, guarda a chave em lugar protegido na bolsa. Talvez um dia volte. Ou não.