No estilo Marley e eu…

Marta Morais da Costa

Gostava de dirigir e de sair por aí sem saber aonde ir e sem ter hora de chegar. Logo que a profissão lhe permitiu, entrou em uma concessionária e comprou um carro zero. Comprometeu por quatro anos o orçamento reduzido, mas pôde exibir um semblante pacífico e de meio sorriso, típico das pessoas contentes consigo e com o que veem ao redor.

É verdade que, rodando pela cidade, viu muitas cenas tristes de gente morando em calçadas, de casebres com placa em neon, oferecendo serviços como conserto de sapatos, pintura, tarô e flores artificiais.

Viu também o empilhamento de pessoas e casas com vinte, trinta andares e um jardim frontal de 5mx10m com calçadas ocupando o triplo de espaço. Viu transeuntes apressados, carregados, solidários, gritantes, cabisbaixos, atônitos, suplicantes e, acima de tudo, aguerridos sobreviventes das batalhas urbanas.

Viu quadras em ruínas, parques coloridos, pontes de vários tamanhos, árvores e tocos, bosques e areais, dejetos e placas de projetos, flores nas janelas e muros pichados.

Ouviu palavrões, buzinas, ameaças, assaltos, pedidos de dinheiro e oferta de balas. Admirou os artistas de esquina, os motoristas cuidadosos e os prestadores de serviços públicos em ação. Não parou em acidentes, foi parada em proximidade de incêndios e em manifestações em prol de bandeiras variadas.

Nada diferente do que qualquer motorista vê, ouve, contempla e vive quando se aventura nas ruas de uma cidade.

Mas tinha uma identidade peculiar: a cada quatro anos, entrava em uma concessionária, deixava ali o automóvel em uso e saía com a nota fiscal de um novo carro. Zero, é lógico.

Não o fazia por exibicionismo, superstição ou pelo mau estado do velho companheiro. Apenas cumpria o conselho que havia recebido do pai: troque de carro a cada quatro anos – ou menos- já que você não entende e nem quer aprender sobre mecânica; carro novo costuma não dar problema durante esse período.

Pontualmente fez isso durante toda a vida. E a cada nova aquisição batizava a máquina com um nome-síntese do que considerava ser a identidade do veículo, muita além e mais significativa do que a placa obrigatória.

Passou pelo Grama, verde, baixinho, macio; pelo Estácio, que um dia transportou uma caixa de vinis de samba, que ganhou de uma prima que foi morar em Salvador; pela Madame de Sévigné, uma perua amarela, que lembrava as cores dos Correios; pela Madá, também conhecida por Madalena, com quem viveu de modo que “nem tão pouco se admite/que do nosso amor duvide”; o Sabiá, um potente fusca que cantava os pneus e os pinos que era uma beleza, tanto nos lás como nos cás; um corcel preto, Batman, que subia a serra em voos noturnos e amanhecia apaziguado na caverna do subsolo do prédio.  

Mas o maior conflito, a dúvida entre espada e caldeirinha, a escolha de Sofia está sendo neste momento. Cumprem-se quatro anos de vida amigável com uma onda civilizada, a Frozen, prateada e com termostato desregulado, que se mantém invariável na temperatura ártica de 16 graus. Mais-dia-menos-dia, entrará na concessionária para trocar, talvez, pela derradeira máquina de sua vida útil de motorista amadora.

Tem que ser um carro coroação, um ser significativo de uma trajetória de medos e surpresas, de paisagens e rostos, de multas e prestações, de desapego e dependência, de conversas a vidros fechados e brigas entre pedais. Não sabe como será essa máquina: dependerá do contato elétrico, faísca de descoberta: é esse! Tem cara de the end!

Venha na cor que vier, no tamanho que tiver, na potência pequena ou maiúscula do motor, bebendo álcool ou descarregando bateria, será seu amor derradeiro. O nome, este, já escolheu.

Consulta o saldo bancário, veste seu melhor traje “vou comprar um carro zero”, entra na Frozen e se dirige à concessionária.

Vai se encontrar, certamente, pela vez primeira com o Adieu, mes enfants!

Foto por Caio em Pexels.com