Desapegos

Marta Morais da Costa

A palavra apego, embora de origem latina pela forma verbal adpegare, tem sido uma constante no léxico do idioma falado no Brasil. Não por sua versão positiva: apego como sentimento de afeição, de simpatia, de dedicação e estima. Mas especialmente por sua forma negativa, dita e escrita em forma afirmativa, quando não imperativa: desapego e desapegue.

Em sua versão recente é uma palavra tangencial de livre-se, livramento, fique mais leve, passe adiante. E aí os objetos diretos da frase ou do complemento nominal (desapego de…) podem estar contidos nos mais diversos campos semânticos: coisas, pessoas, sentimentos, ideias.

Desapegue de suas roupas sem uso, desapegue dos sentimentos frustrantes, desapegue de pessoas pessimistas ou fofoqueiras e até o extravagante e abusado desapegue dos livros que já leu, que ainda não leu, que jamais lerá.

É um tal de distribuir, dividir, compartilhar, livrar-se do que foi atado e que compõe a base sólida e segura de sua vida, para lançar-se a novas bases a serem, por sua vez e futuramente, desapegadas.

Para algumas pessoas desapegar-se é apenas trocar os móveis e tapetes, livrar-se dos eletrodomésticos antiquados (sem timer nem lâmpadas led), colocar em outras mãos tudo aquilo que um dia foi uma sinalização, uma identificação e a memória pessoal.

Desapegar é um ato heroico e um grito de liberdade. Em termos. Cortar laços, representados por objetos e pessoas, não é (ou não deveria ser) uma atitude inócua, irresponsável, desestruturante. Um lançar o passado na bacia das almas, apagar as provas do vivido, esquecer os exemplos de um tempo, talvez mais feliz.

Desapegue, dizem tantos: reconheça que eram coisas e pessoas efêmeras em sua vida, trocados que a atualidade da abastança despreza e destrói. Eram fúteis, vaidades tolas, pecados a serem escondidos. Desapegue rapidamente, antes que a hesitação habite seu desejo ou sua obediência. Lance longe, encaixote e envie sem remetente, cubra, embrulhe, despache. Sem remorsos, vire as costas ao que estava e não é mais, abra asas de liberdade e voe para o novo, o diferente, o que não era e passa a conviver com você.

Assim, tendo a alma leve e o passo rápido, entre em um novo mundo de consumo e povoe sua casa, sua vida e seus afetos como um renascer. Isso tudo não deixa de ser um apelo imantado, irrecusável, embriagador.

Algo como a água de uma fonte de juventude e um eldorado existencial.

Coragem: deixe os vinis rodarem ladeira abaixo, ponha no freezer do esquecimento os presentes de casamento, as lembranças de viagens, os desenhos dos filhos-crianças, os livros que guardam pó e peso nas estantes, as imagens dos amigos da escola, da formatura emocionante, do primeiro beijo, ah, e os documentos com mais de cinco anos de emissão!

Crie um marco zero em sua caminhada, alivie seu coração dos afetos do bem, do remorso e da culpa. Ponha tudo em uma caixa bem decorada, feche com fitas e enderece para uma rua ladrilhada onde sua vida passou.

E voe mais leve e mais vazio.

 

Foto por Mauro Torres V em Pexels.com

2 comentários sobre “Desapegos

  1. Avatar de helomam humblemindfullyb2d69b1c59

    A natureza como metáfora, com seus ciclos de renovação, pode ser uma fonte inspiradora para poemas sobre o desapego x a liberdade. Penso em folhas caindo, pássaros migrando ou a força de um rio…

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